Por que não uma saúde baseada em Valor(es)?

Em artigo recente neste blog, intitulado com alguma ironia de Conta de mentiroso (ver link abaixo) delineei alguns princípios que deveriam nortear as ações do novo governo a ser eleito em dois de outubro (mesmo que seja o mesmo…). Nele, apontei alguns princípios que deveriam nortear o modelo de gestão da SES-DF, com ênfase na noção de VALOR. Sobre isso, adianto alguns detalhes aqui. Como todo mundo sabe, no SUS e nas questões de saúde e em geral, tudo é tratado com base em números. O que importa são quantidades, seja de consultas, exames, horas trabalhadas, leitos ocupados, altas concedidas, recursos transferidos, pagamentos de serviços – seja lá o que for. Mas existem outras maneiras de se aferir o trabalho realizado pelos sistemas de saúde. Mas esta discussão deve se iniciar com uma premissa inarredável, a de que o que se almeja é recompensar, seja instituições ou pessoas, pelo favorecimento real que oferecem aos pacientes (que devem estar no centro da equação), no sentido de melhorar sua saúde, reduzir a incidência e os efeitos das doenças, viver vidas mais saudáveis, enfim. Sempre de forma baseada em evidências, não em “achismos” de qualquer natureza.

O modelo gerencial inovador referido acima, é baseado em princípios e diretrizes (que aliás fazem parte da Política Nacional de Humanização (se é que ela ainda sobrevive ao vendaval autoritário ora em curso no Brasil). E alguns desses princípios são: a valorização dos diversos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, sejam eles pacientes, seus familiares, trabalhadores dos diversos níveis e profissões, além dos gestores da instituição; as diretrizes da transversalidade e transdisciplinaridade;  o protagonismo de cada um dos sujeitos envolvidos; a não-separação entre as funções de atenção e gestão; a gestão descentralizada e participativa; os cuidados com os ambientes onde se vive e se cuida ou é cuidado; a utilização de contratos de gestão baseados em resultados e impactos positivos reais sobre a saúde; a ampliação do acesso; no caso dos hospitais, as práticas de visita aberta e de participação das famílias, além de foco no monitoramento e na avaliação.

A noção de valor, mencionada acima, deriva, então, da mensuração de resultados em saúde, relativos aos custos que correspondem aos mesmos, seja para o sistema de saúde, prestadores, trabalhadores, financiadores e, principalmente, para a sociedade e para os pacientes em geral.  Entre as noções associadas então eficiência, controle de custos, transparência, redução de riscos, definição de indicadores, personalização de cuidados, adequação de tecnologias, trabalho em equipe, responsabilização, compartilhamento de informações, coordenação do cuidado, entre outras.

É claro que coisas assim, vamos admitir, não fazem parte dos sonhos das corporações de médicos e de servidores da saúde em geral.

Porém … Não são poucos os desafios de natureza cultural, política e institucional, para tanto, como, por exemplo, a intolerância das corporações face à avaliação de trabalhadores e associação de salários a desempenho ou produtividade; a complicada aceitação de processos de avaliação de desempenho; a questão da métrica a ser utilizada na definição dos indicadores de resultado; os cálculos relativos à factibilidade (o que medir, por que medir, quem vai medir, quando e como), além das dificuldades na realização de contratos entre governos, unidades de saúde e trabalhadores, no sentido de se definir cláusulas justas entre uma parte fixa de vencimentos e a bonificação associada a resultados.

No Brasil, pelo menos no caso do setor privado, mas de certa forma no público, é comum a remuneração de prestadores por procedimentos em tabelas padronizadas e de pessoal por salário ou produtividade, o que gera preocupações, com a mudança do sistema (para valor) de se estimular ainda mais o volume de produção do que a qualidade dos serviços prestados, sem oferecer reais benefícios para o usuário.

No caso da remuneração de pessoas, ou seja, de servidores, principalmente médicos, mediante tal sistema, que cria responsabilidades e obrigações novas, o quadro é um tanto mais sombrio, dado o habitual interesse corporativo em focalizar com exclusividade o que impacta cada segmento, e não a população como um todo.

Mas existem casos bem-sucedidos, sem dúvida. O mais notável é o da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, que instituiu, desde há alguns anos, instrumentos e estratégias de gestão através do planejamento compartilhado, negociação de metas, monitoramento continuo de processos de trabalho, assegurando resultados e premiando méritos, atingindo mais de duas centenas de gestores de níveis estratégico, gerencial e operacional e aproximadamente 6,5 mil trabalhadores em saúde (dados de 2015). Assim, são definidas ações, metas e processos de trabalho transformados em cláusulas contratuais e pactuada as responsabilidades de cada nível, com subsequente formalização de um termo de compromisso anual entre gestores, equipes e representantes de usuários, com 81 indicadores para monitoramento. É estabelecido um Incentivo ao Desenvolvimento da Qualidade-IDQ, com remuneração variável em função da para qualidade dos serviços prestados, vinculados a avaliação do desempenho e metas e indicadores monitorados no período ou até que se consolidem a sua execução.

No exterior já existem experiências consolidadas. No quase finado Plano Obama para a saúde (Obamacare ou Patient Protection and Affordable Care Act – ACA, 2010), atualmente sob fogo cerrado do governo Trump, com base em conceitos semelhantes, o reembolso do hospital ou o salário do médico passam a refletir seu desempenho baseado na adesão a processos de atendimento, pontuações em pesquisas de satisfação do paciente, ou nos resultados da melhoria da saúde dos pacientes. Assim, resultados são medidos através de 12 indicadores de processos clínicos, que refletem adesão aos protocolos de tratamento, bem como aos resultados dos inquéritos de satisfação do paciente e há indicativos de que isso vem funcionando bem.

E para o futuro, o que se espera dessa “saúde baseada em valor”? Os especialistas admitem que passar do sistema atual de taxação de serviços e procedimentos para valor levará tempo, com uma transição que parece ser mais difícil do que o esperado. Há de fato um cenário de saúde continua em evolução, no qual os prestadores devem aumentar a adoção de modelos baseados em valor, já que podem vislumbrar vantagens financeiras de curto prazo antes do declínio dos custos a longo prazo. No entanto, a transição de serviço para valor mostra ser o melhor método para reduzir os custos de saúde, aumentando o cuidado de qualidade e ajudando as pessoas a levar vidas mais saudáveis.

Resta discutir aqueles aspectos simbólicos, referidos acima, os tais valores, assim no plural. Quando é que as instituições públicas e privadas vão se importar, de fato e com consequências objetivas, com aspectos como ética; comprometimento; competência; solidariedade; trabalho em equipe; humildade; humanização?

A questão de tratar bem os pacientes, por exemplo, é um de um valor verdadeiro e legítimo. Depende de muitos fatores, entre os quais está a satisfação dos usuários, mas não apenas ela. Assim, em termos de compromissos individuais é necessário ser acolhedor e humano com os usuários, ser produtivo, ter assiduidade, se relacionar bem em equipe, atender as normas e protocolos dos serviços. Isso normalmente é tratado pelas corporações de forma superficial, para não dizer evasiva, ao culparem a falta de “condições materiais” para trabalharem e incriminarem os “governos” pelos males da saúde (quaisquer governos, aliás).

Nas equipes, além da somatória disso tudo, é preciso programar, ter compromisso e promover melhorias reais na saúde da população atendida, isto é, trazer resultados concretos na saúde da mesma, mediante indicadores a serem acompanhados devidamente, sem manobras escusas corporativas. Isso tudo vai muito além da emissão de portarias burocráticas, nascidas para serem descumpridas e esquecidas.

E é preciso também pensar em investimento educacional, em responsabilização de fato e de direito, em incremento na participação de usuários, em exercício real do poder e da autoridade por parte de quem comanda, mediante parcerias sociais diversificadas, por exemplo, com sindicatos, organizações sociais, Ministério Público, Defensoria, ONGs de Defesa da Cidadania, entre outros.

Ah, sim… é imprescindível a existência de uma sociedade civil organizada, consciente e que reivindique de fato seus direitos essenciais – e que use seu direito de votar de forma mais consciente.

E tem mais…

https://wordpress.com/post/saudenodfblog.wordpress.com/3302

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