Os Evangélicos e a Saúde

Ultimamente, quando se discute no país política, liberdade religiosa, costumes e outros temas, se impõe logo uma questão que em outros tempos era pouco relevante: e os Evangélicos, o que pensam sobre isso? Sim, porque o que assistimos no Brasil é este grupo se tornar cada vez mais numeroso e influente, mas ao mesmo tempo e de maneira geral contribuindo para o estreitamento ou mesmo retrocesso no horizonte dentro do qual tais discussões deveriam acontecer. No tema da Saúde, independente de existirem preceitos bíblicos que imponham alguma ortodoxia nas discussões, o modo evangélico de pensar e agir se mostra nas posturas públicas que estes vêm assumindo, marcadas pelo negacionismo e pela intolerância face a quem tenha uma normatividade diferente. Tudo isso, é claro, moldado pelo mito que reverenciam e em sintonia com as recomendações dos pastores, no seio daquelas numerosas igrejas-negócio. Mas neste assunto caberia lembrar também da operação das numerosas “comunidades terapêuticas” que o grupo evangélico sustenta no país, tendo como foco as pessoas que têm problemas com alcoolismo e uso de drogas, para as quais defendem o poder de cura da leitura dos Evangelhos e do trabalho forçado. Assim vêm obtendo cada vez maior sucesso em angariar verbas públicas, ainda mais agora que o mandatário que detém o poder no governo federal se mostra alinhado com tal pensamento. Assim, trago aqui uma reflexão sobre as tais Comunidades Terapêuticas, como marca da atuação religiosa dos evangélicos na saúde, esperando abrir caminho para discussões posteriores mais aprofundadas, inclusive com o convite a especialistas.

São dois os trabalhos que apresento para conhecimento dos leitores. O primeiro deles foi publicado na Revista Questão de Ciência (ver link ao final) e chama atenção para assunto pertinente ao momento brasileiro atual, no âmbito de um projeto de poder que mistura militarismo, autoritarismo e religião. Dentro de tal foco, se analisa a questão do uso/abuso de drogas enquanto objeto de respostas simplistas, com ênfase na defesa da abstinência e na criminalização e estigmatização dos usuários, aspectos marcantes na atuação das chamadas “comunidades terapêuticas” (CTs), que são em grande parte mantidas e administradas por organizações religiosas. Elas têm sido alvo de diversas denúncias de violações dos direitos humanos de seus “internados”, ao mesmo tempo que os gastos públicos com sua utilização explodem. Assim, duas pesquisadoras da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, realizaram um profundo estudo sobre tais práticas, destacando que as CTs vêm conquistando espaço neste campo, graças, sobretudo, à sua aproximação com órgãos públicos e à sua inclusão privilegiada nas políticas de drogas nacionais e locais, com a consequente possibilidade de obter recursos do Estado, em um processo repleto de tensões e ambivalências, com ações mais superficiais do que estruturais, além do mais  inclinadas a conservar o sentido de tais espaços de difusão de princípios morais e religiosos tradicionais, como se isso fosse necessário e suficiente para o processos de cura ou recuperação desses pacientes.

As autoras destacam também que ainda que as comunidades terapêuticas possam ser o único recurso à disposição de famílias pobres para atendimento de pessoas com uso abusivo de drogas, não há evidências de que o “tratamento” oferecido por elas – baseado na abstinência total, no isolamento social, na imposição de fé e na “reforma moral” – seja eficaz, tampouco há meios de medir seus resultados, já que ele está longe de pautar-se por critérios técnicos de avaliação. Advertem as autoras: “Não se trata – é importante lembrar – de um questionamento das boas intenções que certamente animam operadores das CTs, muitos deles voluntários. Trata-se de questionar se o Estado deve investir recursos para promover ‘tratamentos’ altamente controvertidos, oferecidos por instituições privadas de origem confessional e de legalidade duvidosa, ou garantir a todos os cidadãos o acesso a serviços públicos de qualidade, diversificados e capilarizados, que respeitem direitos e necessidades individuais. A menos que se revogue a Constituição de 1988, e que o Brasil se transforme num Estado teocrático, a segunda opção é seguramente a mais adequada”.

O segundo trabalho foi realizado por uma equipe do IPEA e tem foco no Distrito Federal e, portanto, nos interessa de perto. Seu link também é também mostrado ao final, juntamente com um resumo do mesmo.

O texto refere-se a uma pesquisa qualitativa realizada em sete Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas do Distrito Federal (CAPS AD), tendo em vista observar a implementação da Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas, de 2003. Ao mesmo tempo, explora a controvérsia que opõe, de um lado, defensores do modelo de cuidado preconizado por esta política – cuidado de base territorial, orientado pela redução de danos – e, de outro, empreendedores das Comunidades Terapêuticas (CTs) – instituições da sociedade civil, muitas vezes religiosas, que proveem assistência a pessoas que fazem usos problemáticos de álcool e outras drogas, por meio de internações e com o objetivo de promover a abstinência.

A pesquisa revela que, de forma um tanto paradoxal, no âmbito das práticas cotidianas dos CAPS AD, a cooperação com as CTs é bastante frequente, a despeito das diversas críticas que os operadores de ambas instituições não se cansam de dirigir-se reciprocamente. São achados empíricos que certamente poderão contribuir para aprofundamento de reflexões teóricas e conceituais relativas ao campo pouco explorado da cooperação interinstitucional e da coordenação de políticas públicas. Os autores falam de um antagonismo cooperativo, no qual se mesclam pressupostos de consenso e coerência, os quais, aliás, fazem parte costumeira do campo da saúde mental e podem ser considerados como requisitos fundamentais para o enfrentamento dos problemas públicos complexos e para a produção e manutenção da atuação conjunta e integrada de diversos atores e instituições.

Tal antagonismo cooperativo revelaria algumas outras possibilidades de sustentação da ação coletiva, erigidas em torno de relações de interdependência, mesmo que marcadas por conflitos, disputas e animosidade. Além de partir de bases essencialmente contraditórias, tal estratégia contaria com formas próprias e diferenciadas de atuação processual, em termos de conteúdos e resultados. Mas de toda forma, com suas potencialidades ou seus riscos, tal antagonismo cooperativo pode ser um importante tema para uma agenda de pesquisa sobre o papel do conflito no processo de produção de políticas públicas, contribuindo para o avanço da compreensão e das práticas da gestão interinstitucional.

Os autores defendem, ainda, que tal cooperação decorre das falhas que a rede pública de Atenção Psicossocial do Distrito Federal apresenta, com os necessários dispositivos de acolhimento residencial praticamente ausentes. Acrescentam que não obstante os antagonismos revelados, alguns profissionais dos CAPS defendem que as CTs podem ser utilizadas na assistência a usuários de álcool e drogas como serviços complementares aos mesmos.

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Não quero generalizar nem ser preconceituoso. Devo dizer que já ouvi de um pastor da Assembleia de Deus uma corretíssima prédica sobre prevenção e promoção em saúde, inspirada em preceitos do Velho Testamento, em uma Conferência Municipal de Saúde bem aqui no Entorno do DF. Mas para mim, infelizmente, isso seria apenas exceção que confirma regra geral.

Penso que a situação que presenciamos no Brasil, em relação ao papel e à influência social dos evangélicos, de certa forma é análoga ao que se verifica em várias partes do mundo, a respeito dos muçulmanos. Ou seja, se haveria apenas um segmento barulhento e agressivo, de feição ideológica retrógada, que possui mais visibilidade do que o restante do movimento ou seria uma característica inerente a eles? No meu entendimento, trata-se daquilo que realmente pensa a maioria deles, o que está sendo demonstrado pelo ruído que provocam no cenário político do país. Suas grandes lideranças, como os malafaias, felicianos, claudio-duartes, damares e outros menos cotados, em sua estridência habitual, representam reais focos de ameaça à democracia, à convivência pacífica entre os cidadãos, à tolerância religiosa e ao necessário respeito às diferenças. Penso que isso não pode ser de fato negado na realidade brasileira atual.

Há tempos atrás, antes de 2018, quando eu via as pessoas de esquerda deblaterando contra a manipulação realizada pela Rede Globo, eu já me perguntava: será que não estão vendo o que (também) acontece no outro lado da mídia, ou seja, no terreno supostamente “nanico” da Record e da SBT? Não defendo que uma manipulação anule ou justifique a outra, mas quem venceu esta batalha em favor do obscurantismo e da imposição de pensamento único foi esta parte da imprensa que parecia secundária e por isso mais poupada pelas críticas da esquerda.   

E pensar que neste país se instaurou o medo do comunismo… Eu tenho medo, de verdade, é da intolerância religiosa e do obscurantismo que tem nome e endereço conhecidos, quais sejam as igrejas evangélicas, particularmente as empresas neopentecostais de exploração da fé.

Mas de toda forma uma lição podemos sem dúvida retirar desses dois trabalhos de investigação sobre as comunidades terapêuticas. Refiro-me ao que o texto dos pesquisadores do IPEA denomina de antagonismo cooperativo. É preciso realmente encontrar um modo de superar divergências. Eu, particularmente, considero difícil, se não impossível, conciliar antagonismo e cooperação frente a pessoas do padrão damares, feliciano ou malafaia. Mas nas frestas do cotidiano, como já o fizeram os trabalhadores em saúde mental aqui do DF, talvez seja possível avançar em direção à cooperação, mesmo em ambiente de dissensos. Isso valeria especialmente para a disputa eleitoral vindoura, sob o risco da barbárie provocada pela atuação da vanguarda do atraso representada pelos evangélicos de vários naipes.

Será preciso aprender a conversar com esta gente – não sei como – mas certamente deve ser feito. Que haja luz para iluminar o lado certo da História, que certamente não é aquele representado por eles.

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PS. Eu já havia escrito o texto acima quando li na imprensa as estapafúrdias declarações da escalafobética Damares em um templo da Assembleia de Deus em Goiânia, a respeito de “violência sexual na infância”. Ela nos deixou em dúvida se agiu por compulsão à mentira, má fé, falsidade ideológica, terrorismo ou campanha política. Ou tudo isso junto. Para quem vê aparições em goiabeiras, a tal narrativa é a que seria de se esperar. Mas devo declarar que isso não muda em nada, só amplifica, o juízo que faço da atuação nefasta dos tais pastores evangélicos no Brasil de hoje.

“Cristofobia” de minha parte? É o cac*te!

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Para informações completas acessar:

9 respostas para “Os Evangélicos e a Saúde”

  1. Flávio, ao ler seu texto lembrei-me daqueles que apontam para o soft power no Brasil. Parece-me que a religião integra esse tipo de poder.
    Na falta de alinhamento ao eixo da acumulação (trabalho x capital), o soft power domina a dinâmica, personificada na atuação de seus líderes: o militar, o juíz, o pastor, etc

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  2. Meu amigo difícil comentar!
    Tema mega complexo e tramado em vários níveis da complexidade.
    Há muito o que se considerar.
    Uma pitada:
    Tendo a achar que assim como as milícias… um serviço de segurança duvidoso e coberto de interesses não públicos, marginais e não republicanos; creio que as comunidades terapêuticas encontraram as brechas para prosperar.
    Um país que não consegue colocar suas políticas públicas em diálogo e alinhamento cultural com sua realidade desafiadora, estruturalmente cativa e sistemicamente degradada. Um país que os serviços públicos não conseguem servir de forma coerente com as expectativas de seu povo (que vive em flerte com a barbárie e em estado de abandono) pelas classes médias profissionais (de corte colonial e com fortes tendências fascistas).
    Tendo precipitadamente a sentenciar que as comunidades terapêuticas são serviços pobres para pobres acolhidos e patrocinados de forma lamentável por um Estado que insiste em manter empobrecido o ambiente público das políticas públicas. Empobrecido não só materialmente, não só em termos de gestão, mas também em termos dê pretensões epistêmicas e de engajamento sócio cultural. Os evangélicos encontraram uma picada capaz de romper o até então intransponível cipoal tramado nas práticas profissionais em saúde. Do jeito problemático deles… mas conseguiram. Será que temos lições a aprender? Será que podemos qualificar essas formas de prestar serviços de saúde “de base” (note bem que não estão falando de atenção básica… mas sim atenção de base)? Teremos nós em um país pobre que lançar mão de forma laica e republicana de força de trabalho com essa extração e pertencimento para… em apoio e orientação, muito além de ACS, poder trabalhar a interface serviços social, saúde e cultura de forma comunitária, engajada e de base? Muitas perguntas! Questão ultra fértil! Obrigado por postá-la e desenvolvê-la! Abraços amigo!

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  3. Flávio, parabéns, novamente, pelas suas reflexões, mais uma entre muitas que nos traz informações relevantes.
    Um abraço,

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  4. Obrigada por nos trazer tema tão caro e pouco debatido. Não tem como ser otimista. Nossa sociedade está se tornando reacionária e fundamentalista. Não há luz e nem razão nesse caminho. Nossa Senhora venha nos socorrer!!

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