O segundo turno das eleições presidenciais está quase chegando e eu não estou só preocupado como também decepcionado. Explico. Não tive decepções com Bolsonaro; a gente só tem decepções com quem um dia contou com nosso crédito, o que definitivamente não foi o meu caso, pois em relação a tal personagem nunca pintou um clima para mim. Com Lula, parafraseando Guimarães Rosa, tive sentimentos do tipo segundas e sábados, em função das oportunidades que creio terem sido perdidas na Saúde e também na Educação, nos 14 anos de governo do PT. Mas votarei nele, mais uma vez, com o coração. E também com o fígado, digamos assim, pois creio que o afastamento do sujeito que hoje ocupa o poder no país não seria apenas uma questão de escolher o menos pior, ou de querer o bem contra o mal, mas sim algo higiênico e até estético, uma opção entre a civilização e a barbárie. Simples assim. Mas a minha decepção, relativa à Saúde, é ver aquele lá, na sua habitual catarse visceral, falar apenas de suas fixações, mentiras e calúnias para se calar ou se defender com desfaçatez diante do que fez ou do que não fez. Já o outro fala do que realmente fez – e que tem substância, realmente – mas se cala diante do que poderia fazer no futuro, eis que tudo anda mal agora, por obra e (des)graça de inominável, mas que já no governo Dilma mostrava fraturas expostas, com necessidade de reparos urgentes. Mesmo sem deixar de reconhecer os avanços nos governos petistas, lamento que no financiamento e nas relações federativas na Saúde tivemos um quadro estacionário e até regressivo. Mas vamos tentar avançar nessa discussão, lembrando que debate e lives recentes não mudaram em nada minhas disposições a respeito do assunto aqui em pauta (e nem sei se terá mudado em alguém).
Creio que nos ajudarão a avançar nessa discussão as visões diferenciadas sobre o SUS e propostas para seu aprimoramento, a partir de três visões diferentes, embora convergentes em alguns aspectos, que provêm de José Temporão, ex-Ministro da Saúde no governo Lula; Anna Maria Malik, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas e Nelson Teich, empresário da saúde e brevíssimo Ministro da Saúde no governo federal atual. A matéria está publicada no site do Valor Econômico (ver link ao final deste texto).
Em primeiro lugar, há uma feliz concordância dos três em relação a alguns pontos, por exemplo, quanto à necessidade de se aprimorar a eficiência do sistema ou de rever as bases atuais da regionalização, trocando a municipalização pura e simples que foi a tônica dessas primeiras décadas do SUS pelo foco na instituição de verdadeiras regiões de saúde, além de resgatar a credibilidade do sistema público, deteriorado pelo desgoverno geral e em particular pelas gestões desastrosas de Pazuelo e Queiroga.
Teich, como bom empresário e liberal, aposta mais fortemente na questão da eficiência, associada à liderança e comunicação, itens em que na sua curta passagem pelo MS, aliás, não foi muito capaz de se mostrar capaz. É polêmica, todavia, a ideia que ele aponta na frase seguinte: “É um erro achar que melhorar a atenção primária vai diminuir a necessidade de aprimoramento das áreas de média e alta complexidade. Na verdade, vai aumentar. Não adianta criar um grande programa de diagnóstico se depois não tiver cirurgião para operar. Faz mutirão para diagnóstico, mas não para o tratamento. Não é possível resolver por partes. Tem que resolver toda a linha de cuidado”.
Malik argumenta, como muita propriedade aliás, que não é possível querer uma política de saúde unificada para um país com tão grandes variações econômicas, políticas, demográficas e culturais como o Brasil. Acerta também em clamar para um planejamento em saúde que seja capaz de abarcar mais generosamente o futuro, apontando para o imediatismo de algumas propostas presentes no cenário. Assim como Temporão, ela aponta as incongruências do atual pacto federativo. Ela lembra ainda: “O sistema requer governança forte e respeitada. Se não houver conversa entre os três níveis, não anda. Quando se fala em governança, precisamos pensar mais em cooperação e não competição”.
Temporão, que tem boa formação acadêmica em gestão e foi Ministro da Saúde por um período significativo, naturalmente produz argumentos de maior abrangência. Ele detalha este novo pacto federativo, reclamando um papel de liderança para o MS, coisa que se perdeu nos últimos anos, com a associação de medidas que confiram maior responsabilização de estados e municípios, sem descuidar do financiamento correspondente. Chama atenção para a miséria do gasto público em saúde no Brasil, muito inferior ao de outros países em iguais condições sociais e econômicas. Neste campo, denuncia o efeito nocivo sobre o financiamento da saúde das chamadas emendas parlamentares, verdadeira moeda de troca no governo atual, conferindo aos interesses em jogo a categoria de meramente “paroquiais”. Faz também uma boa análise do atual déficit tecnológico da área da saúde, com foco especialmente nos campos da informatização das redes e telemedicina, além de lembrar da depauperação de programas de saúde pública antes bem sucedidos no Brasil, como saúde mental e imunizações.
O ex-Ministro arremata sua fala lembrando: “O primeiro desafio do próximo governo será recuperar a credibilidade política e técnica do Ministério da Saúde, que foi completamente perdida desde a saída de Mandetta, com deterioração e perda total de liderança. É necessário reabrir as portas para a ciência, que foi expulsa do ministério”.
Cada um no seu campo, não deixam de estar corretos, salvo a citada questão levantada por Teich, que certamente é equivocada.
De minha parte, levanto algumas questões adicionais, já mencionadas em post anterior neste blog (ver link), sintetizadas em quatro tópicos: (a) a tensão entre necessidades financeiras e sustentabilidade do SUS, frente ao baixo nível de gasto público na saúde; (b) a estagnação da expansão da Estratégia de Saúde da Família em anos recentes; (c) a piora recente de diversas políticas públicas de saúde, como é o caso da saúde mental e das imunizações; (d) a pressão dos procedimentos represados durante a pandemia, que elevarão a demanda por saúde e pressionarão o SUS por mais financiamento e organização mais eficiente.
Assim, de acordo com a Agenda Mais SUS já mencionada aqui anteriormente (ver também link) alguns caminhos devem ser encarados pelo Estado brasileiro, no curto prazo, para superar tais desafios e assegurar um acesso à saúde de qualidade e equitativo, de forma eficiente aos seus cidadãos. São eles:
1. Ampliação dos recursos e orientar o financiamento para induzir a universalização do SUS: elevar o gasto público em saúde de 3,96% para 5% do PIB até 2026 e 6% até 2030, reformular o modelo de financiamento da Atenção Primária à Saúde e instituir uma nova instância de financiamento regional.
2. Expansão da Atenção Primária com qualidade, para garantir um SUS universal, eficiente e resolutivo: ampliar a cobertura da Estratégia de Saúde da Família (ESF) até 100% da população, considerando a conversão de modelos tradicionais para ESF e garantindo completude das equipes; inovar no modelo assistencial da APS com foco no enfrentamento a doenças crônicas não transmissíveis, considerando a incorporação de ferramentas de saúde digital.
3. Fortalecimento dos mecanismos de governança regional do SUS: iniciativas para um progressivo aprimoramento da gestão regional, incluindo a ampliação de investimentos para reduzir as disparidades na dotação de serviços de saúde das regiões; desenvolvimento institucional das Secretarias Estaduais de Saúde, e; avaliação técnica e contínua das modalidades de organização regional.
4. Garantia de disponibilidade e efetividade de Recursos Humanos no SUS.com a criação de unidade de inteligência, monitoramento e avaliação de RH no Ministério da Saúde; reformulação da regulação do ensino em saúde; reestruturação da Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNEPS); desenvolvimento de estratégias complementares para induzir interiorização profissional, além da construção de agenda para expansão da atuação multiprofissional e ampliação do escopo de práticas da enfermagem.
5. Valorização e promoção da Saúde Mental, com monitoramento e fiscalização das políticas públicas de saúde mental, aprimoramento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), promoção de estratégias para capacitação e valorização dos profissionais que interagem com pessoas em sofrimento ou com transtornos mentais e recuperação de estratégias e diretrizes de resgate e avanço da Reforma Psiquiátrica.
6. Fortalecimento do SUS para o enfrentamento de emergências de saúde pública, através de estrutura de governança técnica e qualificada que centralize funções relacionadas a emergências sanitárias; desenvolvimento de instrumentos de planejamento e normativos e de uma estratégia nacional de comunicação, que sejam transparentes e baseados em evidências, além de implementação de estratégias de reconhecimento e incentivo aos trabalhadores da saúde.
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Por hoje é só. Que no dia 30 vindouro o grande vazio, o verdadeiro buraco negro, que presenciamos na área da saúde e em muitas outras ações de governo possa começar a ser preenchido – à custa de muito esforço pela frente, é claro.
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Saiba mais:
- https://saudenodf.com.br/2022/08/31/saude-nas-eleicoes-para-presidente/
- https://agendamaissus.org.br/downloads/
- Especialistas propõem reformulação do SUS | Brasil | Valor Econômico (globo.com)
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Memória curta?
No meio de manifestos anódinos, como lançaram algumas entidades médicas na última semana, por ocasião do Dia do Médico, vale a pena trazer aqui o sentimento indignado de um desses profissionais. Acho que seria o mais adequado para o momento atual, quando coisas como genocídio e infrações éticas parecem se tornar naturalizadas.


