Leio no Boletim Informativo da SES-DF (ver link abaixo) sobre a realização de um treinamento para de enfermeir(a)os, visando capacitá-los a reforçar, padronizar e aprimorar na atenção primária, dentro de uma estratégia de escuta qualificada das demandas dos usuários e aumento da capacidade de resolução nas UBS. O curso tem dinâmicas participativas, com propostas específicas para suas UBS, a serem desenvolvidas pelos próprios alunos. A finalidade principal é preparar cerca de 250 enfermeiros em práticas de acolhimento, para que possam dar soluções às queixas de pacientes eventualmente não agendados, além de aprimorar e humanizar o atendimento. Ótimo! Melhor, impossível! Tenho defendido aqui um papel diferenciado e estratégico para as enfermeiras e enfermeiros no sistema de saúde e acredito que os propósitos da SES-DF estão em perfeita sintonia com isso. Chega de considerar tais profissionais apenas como “paramédicos”, palavra que mais confunde do que esclarece os verdadeiros e mais legítimos atributos de tal categoria. Afinal, este “para” é o mesmo de paralelo, ou seja, o que está apenas “ao lado de alguém ou alguma coisa”. Mas, convenhamos, que tal ao invés de paralelismo começarmos a pensar em convergência e até mesmo em liderança em muitas ações de saúde? Aproveito para trazer de volta algumas das discussões sobre isso, que já estiveram presentes as comunicações semanais deste blog.
ENFERMAGEM E LIDERANÇA
Como se sabe, as diversas profissões da Enfermagem, que representam mais de 2/3 da força de trabalho em saúde no Brasil, são reconhecidas mundialmente como componente humano fundamental para se alcançar acesso e a cobertura universal. Apesar de sua notória importância e de a enfermagem ser a categoria da saúde mais afetada pela pandemia de Covid no Brasil, na prática, ainda são tímidas as iniciativas de valorização e produção de mudanças substantivas de sua prática profissional, historicamente submetida a condições de trabalho inadequadas, baixa remuneração, vínculos contratuais frágeis, sobrecarga e alta rotatividade, o que muitas vezes culminam no êxodo da profissão. A recente polêmica em torno do piso salarial é bem um exemplo disso. Isso tudo se soma à noção equivocada, inclusive do ponto de vista semântico, de que são profissionais “para-lelos”, ou seja, “para servir” os médicos.
Cabe lembrar de alguns conceitos modernos de orientação das práticas dos profissionais da enfermagem, associando temáticas ao mesmo tempo clínicas, éticas e sociais, com foco especial na relação profissional-paciente, incluindo a otimização de custos e benefícios em saúde para as pessoas; as prioridades que devem ser assumidas na assistência; a composição e a qualificação das equipes; as questões de quantidade e qualidade da prestação de serviços etc. Isso faz com que seja cada vez mais fundamental a capacitação para uma nova inserção real de tais profissionais no sistema de saúde, atendendo às mutantes exigências epidemiológicas, humanas, técnicas e científicas, especialmente nos cenários que se abrirão pós pandemia de Covid.
Assim, os novos tempos exigirão profissionais de saúde, não só enfermeiros, técnicos e auxiliares, com formação mais complexa e ampla, com visão e prática social de promoção da saúde e maior qualificação e capacidade de responder ás múltiplas demandas geradas pelas transições epidemiológica e demográfica em curso no mundo. Além disso, haverá necessidade cada vez maior de ampliação e qualificação de outros profissionais, como nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e fisioterapeutas, além dos médicos, é claro, para o desempenho dessas novas responsabilidades. Sem esquecer de uma vasta gama de praticantes de outras habilidades no campo social e da saúde, como os terapeutas de família, cuidadores domiciliares, terapeutas de várias especialidades e até mesmo pessoas das próprias famílias a serem colocadas no papel de cuidadores (mães, mulheres em geral, irmãos mais velhos). E em tudo isso a Enfermagem terá papel fundamental em desenvolver conteúdos, capacitar e supervisionar.
Aliás, há mais de quarenta anos, a Declaração de Alma-Ata reafirmou alguns valores fundamentais na saúde, incluindo a necessidade de serviços de saúde abrangentes, em termos de promoção da saúde, prevenção, reabilitação e tratamento de condições comuns, cujo fulcro de atuação é a atenção primaria à saúde. E nisso, o papel da Enfermagem transcenderá o campo da assistência para se abarcar a gestão, a auditoria e a epidemiologia. Além disso, recursos humanos de tal natureza e com tal qualificação são também essenciais para atender às necessidades crescentes de saúde da população e alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, havendo, entretanto, lacunas importantes entre os perfis de competência dos profissionais de saúde, enfermagem aí incluída, e as necessidades na APS, em particular no rearranjo da formação em saúde e na capacitação em planejamento estratégico e gestão de recursos humanos para a saúde.
Atualmente se fala muito de atuação profissional e liderança integrativas dentro de verdadeiras redes de serviços de saúde – se não para já, pelo menos em futuro próximo. Tais lideranças integrativas seriam responsáveis por organizar, coordenar e administrar atividades relacionadas diretamente aos pacientes. Isso, sem dúvida, é a “cara da enfermagem”. E mesmo no âmbito não necessariamente hospitalar ou da APS, mas do sistema de saúde como um todo, cabe lembrar uma série de tarefas e funções perfeitamente compatíveis e até típicas dos profissionais de enfermagem. Exemplos, aliás históricos, não faltam: docência e supervisão pedagógica; análise epidemiológica; gestão de pessoas; implantação e supervisão de sistemas de qualidade e valor; gerência de programas de saúde, entre muitos outros. Sem esquecer das tradicionais atividades na beira do leito, por certo.
Veja o post completo: https://saudenodf.com.br/2021/07/16/enfermagem-e-lideranca-na-saude/
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PRÁTICAS AVANÇADAS EM ENFERMAGEM
Na mesma linha das discussões acima, a OPAS e a OMS vêm defendendo a ampliação do papel dos enfermeiros na atenção primária à saúde (ver link ao final), mostrando que a estes profissionais cabe, de fato, desempenhar um papel crítico no aprimoramento dos sistemas de saúde, a partir da APS. Enfermeira(o)s de prática avançada, eis como os mesmos são definidos, com novos perfis de atuação e foco especial, na promoção da saúde e na prevenção de doenças e cuidados. Isso implicaria não só em papéis diferenciados para a profissão, como a ampliação dos mesmos em relação à APS, dentro de um corpo de práticas realmente avançadas incorporadas aos sistemas de saúde.
É bom lembrar que, embora muito se fale do déficit de médicos no Brasil, isso tem especial relevo na enfermagem, com seus profissionais mais bem distribuídos nas zonas urbanas e com mais recursos econômicos. Da mesma forma, embora a profissão possa comprovadamente contribuir para o desenvolvimento e o bom funcionamento dos sistemas de saúde, seus membros ainda enfrentam situações limitantes, com seu potencial muitas vezes não reconhecido ou aproveitado.
A literatura internacional tem demonstrado que a ampliação do papel das enfermeiras e enfermeiros, mediante formação e regulamentação adequada, pode vir a ser medida que finalmente faça viabilizar o acesso universal à saúde, desde que os mesmos adquiram formação de nível avançado, com habilidades e conhecimentos baseados em evidências, com foco na promoção da saúde e na prevenção e controle adequados de doenças transmissíveis e não transmissíveis.
Os papéis ampliadores daquilo que já se denomina internacionalmente de Enfermagem de Prática Avançada (EPA) compreendem desde a atenção direta a pessoas à gestão de casos nas redes integradas de saúde, cabendo aos enfermeiros os atributos de conexão e integração do atendimento entre os diversos níveis da atenção, dentro de modelos de práticas que assumem e incentivam a delegação de tarefas e a combinação de habilidades.
A delegação de tarefas (task shifting) é outro processo no qual a enfermagem terá papel substancial, com reorganização da força de trabalho e aumento de sua eficiência, sendo aplicável a contextos de escassez de profissionais da saúde. Tal política tem sido exitosa em vários tipos de serviços e dentro dela os EPA exerceriam certas tarefas antes atribuídas apenas aos médicos, além de diagnóstico e o tratamento com base em modelo de assistência ajustado ao papel da enfermagem, sempre de fundo preventivo, de promoção, holístico e centrado no paciente, a ser exercido também locais remotos e nos grandes centros.
Este esquema se completa com a combinação de habilidades (skill mix), seja de substituição de um profissional por outro, visando aumentar a eficiência, melhorar os resultados e reduzir custos; seja de diversificação com a introdução de novos profissionais para ampliar o leque de habilidades disponíveis. Isso sem que seja necessário substituir ou se sobrepor a nenhuma profissão.
Há evidências internacionais de que a prática de EPA é efetiva e desempenha papel resolutivo na atenção primária, sendo seus papéis também avaliados no contexto do cuidado de pacientes crônicos e, entre os resultados, constatou-se uma redução da depressão, da incontinência urinária, de lesões por pressão e do uso de contenção mecânica, além de outros resultados. Adicionalmente, viu-se que a EPA melhora o acesso aos serviços de atenção primária ao mesmo tempo em que reduz os custos, com alta taxa de satisfação dos usuários, já que os enfermeiros tendem a passar mais tempo com o paciente e a proporcionar mais informações e assessoria. Em termos de custos, de quando os novos papéis implicam a substituição de tarefas, a tendência é a de reduzi-los ou neutralizá-los.
Saiba (muito) mais sobre isso em:
- https://saudenodf.com.br/2020/02/07/pela-atuacao-realmente-avancada-da-enfermagem-em-nossos-servicos-de-saude/
- http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/34960/9789275720035_por.pdf?sequence=6
- Acesse diretamente este link: ENFERMEIROS APS
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Obs. A jovem e bela senhora da imagem destacada acima é Florence Nightingale (1820 – 1910), fundadora da enfermagem científica moderna.
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Outras publicações deste blog sobre o mesmo assunto:
- https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/06/22/recursos-humanos-e-doencas-cronicas-no-brasil-2/?utm_source=newsletter#
- https://saudeempublico.blogfolha.uol.com.br/2021/05/28/profissionais-de-enfermagem-a-forca-de-trabalho-que-sustenta-a-saude-no-pais/?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2021/04/23/e-depois-do-covid-o-que-vira/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/09/14/de-navegadores-e-porteiros/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/21/prescricao-por-enfermeirao-sim-ou-nao/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/05/16/os-enfermeiros-e-a-atencao-primaria-a-saude/
- http://www.cofen.gov.br/oms-lanca-livro-sobre-ampliacao-do-papel-dos-enfermeiros-na-atencao-primaria_62794.html
Sobre a matéria citada no preâmbulo, relativa ao treinamento de enfermeiros na SES-DF:
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O SUS no Oscar…
E se o assunto aqui é (sempre) SUS não há como não comemorar a chance de que um documentário sobre o nosso sistema de saúde vá concorrer este ano ao prêmio maior da indústria do cinema . O que, aliás, tem tudo a ver com o nosso assunto de hoje: Enfermagem. Aplaque sua curiosidade em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcia-castro/2022/11/um-oscar-para-o-sus.shtml?utm_source=sharenativo&utm_medium=social&utm_campaign=sharenativo

