Na saúde, a casa se arruma é pela porta da frente: o caso do DF.

Leio no Boletim Informativo da SES-DF do dia 9 de novembro pp que em nossa cidade a estratégia Saúde da Família supera 1,9 milhão de pessoas cadastradas, tendo o atual governo duplicado o número de equipes, em ação assumida como busca de novos recursos federais para a cidade, o que não deixa de ser legítimo. Ali se divulga também que nos últimos cinco anos o número de pessoas cadastradas cresceu quase nove vezes, já que pouco passavam de 200 mil no início de 2018. E se acrescenta: o número das equipes saltou de 300 para cerca de 600 no mesmo período, subindo também a contratação de servidores públicos em tal área, que hoje somam mais de sete mil profissionais. Fico feliz em conhecer tais informações, as quais já procurei sem sucesso na página da SES, mas o que importa é que elas estejam assim disponíveis agora. Mas mesmo assim algumas perguntas não querem calar, por exemplo: estas equipes estão completas, de agentes comunitários a médicos e enfermeiros? Houve qualificação adequada das pessoas contratadas? A velha fórmula de contratar profissionais aposentados ou não especializados ou com escassa afinidade à área continua prevalecendo? Estão sendo obedecidos os parâmetros quantitativos da Política Nacional de Atenção Básica, que prevê uma equipe (completa) de SF para cada 3.500 pessoas? As instalações físicas da rede são adequadas? Receio que boa parte de tais indagações tenham respostas negativas, quando não evasivas. Trago aqui algumas informações adicionais, que a SES não divulga, e vou comentá-las adiante. Me acompanhem. 

Vale lembrar o que vem a ser uma Atenção Primária em Saúde realmente eficiente e também reafirmar que há consenso geral sobre as melhorias apreciáveis em tal estratégia no Brasil nas últimas décadas, traduzida por reduções nas hospitalizações, na redução da mortalidade de algumas condições, entre outros aspectos. Assim, uma APS de qualidade deve conter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de complexidade alta e baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território (que podem chegar a 90% do total).

Cabe lembrar também que a SES-DF costuma usar o termo genérico “Atenção Básica” para incluir não só o atendimento pelas equipes de SF como aquele realizado nos tradicionais “postinhos”. Nestes últimos, o atendimento é apenas “melhor que nada”, mas não se compara, em termos de qualidade e eficácia, àquele realizado (ou que deveria sê-lo…) pela verdadeira Saúde da Família.  Adaptei de E. V. Mendes (link ao final) uma análise das marcantes diferenças entre um modelo de ação e outro, conforme se vê nas linhas seguintes.

Para início de conversa, nos “postinhos” subsiste, sem muita convicção na verdade, uma organização hierárquica rígida, tanto no plano interno como em relação ao órgão de gestão, conferindo aos mesmos um papel periférico e desempoderado em relação à rede de atenção. Já na APS verdadeira, a organização se dá sob a forma de rede, com responsabilização horizontalizada e coordenação, pelo menos potencial, de toda a rede a partir da porta de entrada.

O foco da ação no modelo antigo é mais forte sobre condições agudas e é voltado essencialmente para indivíduos isolados e passivos, que aí auferem prescrições e encaminhamentos verticalizados e impessoais, cujos resultados via de regra não são medidos. É oposta a norma na APS verdadeira, na qual a atenção é oferecida tanto a condições agudas como crônicas, no âmbito de uma rede de atenção, com objetivos definidos de melhoria da saúde da população, com resultados clínicos e econômicos aferidos e, além do mais, tendo uma população sob sua responsabilidade, estratificada por grupos de risco, com os pacientes considerados não como entes passivos, mas como corresponsáveis pelo tratamento.

Nos postinhos, o modo de operação é reativo e mesmo episódico, definido pelas demandas, com intervenções curativas e reabilitadoras sobre condições preestabelecidas, dentro de um modelo de atenção fragmentado, sem estratificação de riscos, em territórios político-administrativos meramente formais. Já na APS ele é proativo e contínuo, baseado em planos de cuidados individualizados mediante ajuste entre profissionais e usuários, com práticas de busca ativa. As intervenções se abrem em caminhos de promoção, prevenção e cura, além de reabilitadoras e paliativas. Leva-se em consideração os determinantes sociais da saúde e da doença, resultando em ações integradas, com estratificação dos riscos e territórios sanitários definidos pelos fluxos sanitários da população que busca atenção.

A gestão no modelo antigo se exerce através de estruturas separadas (por exemplo, hospitalares, APS, especialidades), com planejamento – quando existente – focado apenas na oferta de serviços, mediante cálculos de séries históricas, sem maior definição epidemiológica ou por estimativa de necessidades populacionais. O cuidado profissional é centrado na figura do médico, da mesma forma que a valorização dos conhecimentos. Na verdadeira APS a governança é dita integrativa, exercendo-se sobre os diversos pontos de atenção à saúde, mediante sistemas de apoio e logísticos dispostos em rede, com planejamento definido pela situação das condições de saúde da população, seus valores e preferências e uma atenção prestada dentro de um padrão colaborativo, por equipes multiprofissionais, usuários e famílias, além da promoção do autocuidado.

Os processos e tecnologias de informação e comunicação são, no primeiro caso, fragmentados, pouco acessíveis e de baixa capilaridade, ao contrário da verdadeira APS, na qual eles devem ser integrados, com utilização de cartão informatizado de identificação de usuários e prontuários eletrônicos, de forma articulada entre todos os componentes da rede.

Finalmente, a participação social, quando existente no modelo dos postinhos é geralmente passiva, com a comunidade vista apenas como observadora, eventualmente consultada, mesmo assim de maneira formal, enquanto a modalidade desejável e correspondente à APS mais autêntica é ativa, formalizada por organismos representativos e associada a mecanismos de governança em rede.

Como se vê, tratam-se de processos completamente diferentes, não se justificando que sejam tratados como partes equivalentes de um mesmo um todo, conforme o modo habitual da SES-DF considera-los.

É claro que não temos por aqui tudo aquilo que o que preconiza esta APS verdadeira (Modelo de Saúde da Família) , mas isso, longe de justificar, não autorizaria ninguém a considerar o famigerado modelo Postinho como análogo ao modelo da verdadeira Saúde da Família.     

Mas tem mais coisas que contrariam essa atitude meio “triunfalista” da SES- DF. Acabo de ter acesso a uma publicação do IEPS, Instituto de Estudos em Política de Saúde, associado à FGV, intitulada A Saúde dos Estados em Perspectiva Comparada: Uma Análise dos Indicadores Estaduais (ver link ao final) e nela encontrei algumas informações reveladoras sobre a real situação da atenção básica no DF. Antes seria bom esclarecer que a comparação mais adequada deveria ser com as capitais ou núcleos urbanos maiores, não com os estados em si. Mas tal estudo demonstra que mesmo assim ainda é preciso caminhar muito para que o otimismo revelado pela SES-DF se concretize, pois se a comparação se desse diretamente entre cidades, talvez ficássemos em posição ainda mais desvantajosa.

Assim, por exemplo, na cobertura pela SF (verdadeira) os nossos míseros 58,7% constituem simplesmente a lanterna de popa do país, colocando-nos em companhias pouco lisonjeiras, com dimensões geográficas ou condições sociais e econômicas certamente mais impeditivas do que as nossas, como são os casos de MA, AC, PA e até mesmo RJ. Do outro lado da mesa os destaques de PI (99,2%), PB (97,8%), TO (94,6%), SE (92,7%), e nosso vizinho MG (88,8%). Nem todos de alta renda ou território pequeno, como é o caso daqui, sem falar do expressivo número de médicos e enfermeiros por mil habitantes existente no DF.    

Na cobertura vacinal para poliomielite, cuja baixa é das sequelas que nos deixa o desgoverno que ora exala seus últimos suspiros no país, até que não estamos muito mal na fita, com 81,5%. É o mesmo nível de ES, SP, MS, MT, RO e TO, estados com condições variáveis de otimização de tal indicador, mas alguns deles com dificuldades operacionais certamente muito maiores do que as do DF. Em suma: tínhamos obrigação de estar melhor em tal fita. Neste quesito, os campeões nacionais são SC e MG, com percentagens iguais ou acima de 88%.

Para completar a análise da atenção básica, vêm as cifras de cobertura por pré natal. O DF está com 70,8%, um valor modal em termos nacionais. Os destaques são: PR (82%), SP (79,5%), SC (78,0%), MG (77,5%).

Para resumir, no frigir dos ovos, o DF ocupa apenas um opaco vigésimo lugar em um ranking nacional de Atenção Básica. Sugiro, portanto, à dupla Ibaneis & Lucilene um pouco mais de contenção e modéstia em suas publicações. E que se mirem, por exemplo, no caso do Piauí, que aliás é a terra natal de sua excelência, o Governador…

E que aproveitem para arrumar a casa começando pela porta da frente.

Por hoje é só. Obrigado pela atenção.

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Saiba mais

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Dias movimentados na Saúde do país

Depois do marasmo, melhor dizendo, do retrocesso de quatro anos do inominável desgoverno que ora agoniza, o panorama da saúde está finalmente pra lá de movimentado no país. Eis uma síntese da semana, com o nosso tema de hoje, Atenção Primaria à Saúde, mostrando especial destaque..

*** A quatro semanas da posse de Lula na presidência da República, aconteceu, em Brasília, uma reunião que pode ser considerada mais um marco do movimento sanitarista e da defesa do SUS. Foi o encontro da equipe de transição da Saúde do novo governo com representantes da Frente pela Vida (FpV), rede que reúne as principais entidades em defesa da Saúde Pública no Brasil. Leia mais: https://saudenodf.com.br/2022/12/03/pela-saude-pela-vida/  

*** Uma contribuição da Unicamp à estratégia de Atenção Primária: Está sendo lançado pelo NEPP (Núcleo de Estudos em Políticas Públicas) da Unicamp em robusto texto versando sobre a atenção básica no Brasil, de interesse imediato para o novo momento político nacional. Seu pressuposto é o de que tal estratégia deve exercer a coordenação do cuidado e o ordenamento da rede de atenção à saúde e, reconhecendo que uma AB robusta e efetiva fará com que o SUS consiga responder de forma adequada às necessidades de saúde dos brasileiros na atualidade. Alguns temas essenciais para esse fortalecimento são abordados, relativos ao desenvolvimento da AB no SUS, em termos de diretrizes políticas, modelos de atenção, formação de profissionais, incorporação de equipamentos, promoção da saúde, integração com a vigilância em saúde nos territórios, cuidado em saúde mental e a idosos, unidades básicas como organizações, tecnologias de gestão do cuidado, entre outros aspectos. Acesse aqui o texto completo:

*** Estudo recente das entidades de São Paulo, IESP (Instituto de Estudos para a Política de Saúde) e UMANE (associação sem fins lucrativos que apoia iniciativas de prevenção e promoção de saúde) estimam que apesar de a cobertura integral da Estratégia Saúde da Família (ESF) abranger quase a metade dos municípios brasileiros, 72,69 milhões de cidadãos não estão cobertos pela mesma, o que representa 34% da população do país, das quais ao menos 33,3 milhões também não são atendidas por planos de saúde privados. A maior parte dessa população não coberta vive em regiões metropolitanas, mas também em um grupo de municípios vulneráveis em termos de cobertura, principalmente sediados nas regiões N e NE. Estima-se que 100% de cobertura da ESF poderia ser alcançada, demandando pouco mais de 25 mil novas equipes, com em torno 236,9 mil profissionais de saúde, ao custo de R$ 17,1 bilhões ao ano. O estudo define ainda diferentes cenários de expansão, que permitem planejar o esforço necessário para se alcançar 100% de cobertura em diferentes horizontes de tempo e, por fim, identifica o potencial de conversão de outros modelos de Atenção Primária à Saúde para Estratégia Saúde da Família.  Leia mais: https://ieps.org.br/34-da-populacao-nao-tem-acesso-a-atencao-basica-de-saude-aponta-novo-estudo-do-ieps/

E a semana mostra mais: veja o cardápio abaixo:

Uma resposta para “”

  1. Tem que se aumentar equipes, contratar principalmente técnicos de enfermagem, ACS, para que se faça um bom trabalho.
    Estamos sobrecarregados atendendo mais de 3,500 pessoas e fazer funcionar o acolhimento único, onde as equipes não tem condições de cobrir esse profissional no dia da sua folga.

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