A Saúde que devemos ter

Tenho em minha tela mais um documento firmado por representantes do setor privado em saúde (mas não só eles) com propostas para o novo governo que se inicia. Isso é motivo de regozijo e esperança para mim, pois acredito realmente que a separação “água e óleo” que historicamente domina a relação entre tais atores não mostra o melhor dos caminhos para resolvermos a problemática que nos cerca. Tenho escrito muito sobre isso aqui (ver alguns links ao final) e a pergunta que não se cala é: seria possível confiar nas associações do setor privado com o Poder Público? Sem querer dizer sim ou não, creio ser preciso não imaginar apenas que estaremos sempre enfrentando lobos em pele de cordeiro nesta questão. Sem dúvida, as distorções que a realidade mostra em toda parte e que dominam o imaginário dos militantes do SUS, não dependem apenas da voracidade empresarial capitalista, mas também de um somatório de corrupção, ineficiência e morosidade do Estado em cumprir seu papel. Com efeito, isso inclui ingredientes como monitoramento, rigor, ação just-in-time, assunção de noções como valor, economicidade, responsabilização, etc; além, é claro, de competência específica em fiscalização, auditoria e controle. Com este Estado frouxo (quando lida com poderosos, pelo menos) com que convivemos historicamente no Brasil, seria pouco provável obter sucesso em parcerias com o setor privado. É assim que muita gente pensa se não seria melhor deixar apenas aos cuidados do Poder Público aquela assistência rústica (para não usar palavras mais grosseiras) que ele oferece, deixando de lado, sempre e acima de tudo, o setor privado, por supor que com ele as coisas correriam de forma ainda pior. E feito este preâmbulo, vamos ao documento de propostas que foi citado acima.

Pois bem, o documento que está em pauta se denomina A Saúde que devemos ter e tem como signatária uma entidade denominada Iniciativa FIS, auto intitulada o maior ecossistema de lideranças da Saúde da América Latina, declarando como objetivo principal promover transformações no setor a partir de um encontro entre atores públicos, privados e das academias, através de conexões e debates e inovações. O documento foi elaborado a partir de entrevistas, webinars, podcasts e discussões presenciais. Suas diretrizes apontam preferencialmente para temas como a redução das iniquidades, facilitação do acesso e qualidade da oferta em saúde. Alertam ainda que a menos que sejam implementadas mudanças substanciais, o SUS se tornará insustentável nos próximos anos.

Em seu preâmbulo o documento declara o seguinte:

É senso comum que estamos diante de um modelo assistencial de Saúde obsoleto que requer profundas mudanças e atualizações, seja no público, no privado ou no terceiro setor, que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS): dificuldade de acesso, qualidade não medida, custos crescentes, baixa efetividade, baixa eficiência e resolutividade. Os gestores públicos e privados necessitam agir em conjunto para garantir o acesso a quem necessita e entregar serviços de Saúde mais resolutivos e sustentáveis.

Uma súmula de tal documento, que poderá ser acessado integralmente no link abaixo, mostra os seguintes tópicos de abordagem:

  1. Definir ações que garantam o acesso de forma equânime por toda população brasileira aos serviços de saúde;
  2. Realizar levantamento imediato da capacidade instalada dos serviços assistenciais de Saúde existentes no país;
  3. Construir um data lake que permita orientar as políticas públicas de Saúde com base em dados e na utilização da inteligência artificial;
  4. Propor a estruturação de uma Rede de Atenção à Saúde ao nível dos cuidados básicos, integrada para os setores público, privado e terceiro setor;
  5. Propor a implementação de uma política pública de Saúde digital que possa ampliar o acesso da população aos métodos diagnósticos e terapêuticos;
  6. Implantar, monitorar e aprimorar o desenvolvimento das regiões de saúde;
  7. Estruturar programas e ações para o acompanhamento de subpopulações estratificadas por riscos a partir da utilização de predições analíticas construídas pela inteligência artificial;
  8. Propor a criação de um sistema único de regulação pública para a rede federal, estadual e municipal;
  9. Ampliar a participação do setor privado na formulação das Políticas de interesse coletivo de modelos assistenciais da Saúde;
  10. Discutir o financiamento e a criação de incentivos para atrair investimentos privados na área da Saúde;
  11. Garantir o acesso aos profissionais de Saúde de todo o país a programas de treinamento e capacitação profissional.

A discussão é elaborada mediante quadros de definição de Modelo Vigente versus Propostas de Ação, conforme o modelo abaixo, relativo à Gestão da Oferta, além dos demais apresentados em seguida: Modelo de Assistência, Financiamento e Saúde Digital:

SITUAÇÃO ATUAL MODELO VIGENTEPROPOSTAS DE AÇÃO
1. Opera com uma população vinculada às Redes de Atenção à Saúde (RAS) no nível dos cuidados básicos. 2. Opera com subpopulações estratificadas por riscos. 3. Utiliza parâmetros epidemiológicos que expressam necessidades da população. 4. Enfrenta o desequilíbrio entre oferta e demanda dos serviços, buscando racionalizar a demanda e a oferta e, somente se necessário, aumentar a segunda. 5. Criação de um data lake e utilização da inteligência artificial, como suporte a tomadas de decisão1. Foco no prestador de serviços. 2. Opera com indivíduos isolados, sem estratificação de riscos. 3. Utiliza parâmetros estabelecidos por séries históricas. 4. Enfrenta o desequilíbrio entre demanda e oferta, com viés de aumento de oferta. 5. Inexistência de dados confiáveis para tomadas de decisão.  

A ênfase em Saúde Digital parece estar traduzindo algum interesse diferenciado por parte dos propositores, com possível foco em produtos para um Mercado, sem impedimento de que seja também uma questão de alto interesse também para o setor público.  É bom lembrar que a origem do documento não é propriamente de profissionais de saúde, como o mesmo é apresentado, mas de representantes empresariais variados, que incluem inclusive produtores de medicamentos, serviços e equipamentos. Não há nele nenhuma benemerência, certamente, mas sim interesses. Mas de toda forma, pode-se conversar. Por que não?

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Alguns tópicos divulgados neste blog sobre a mesma questão (Parcerias Público-Privadas).

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