A Saúde em Perspectiva: Brasil x Mundo; Situação 2022 x Tendências 2023

André Cezar Medici é mestre em Economia, doutor em história econômica e economista de saúde sênior do Banco Mundial. Tem se dedicado, há mais de 30 anos, a temas como economia e reforma de saúde, planejamento estratégico e prioridades de saúde, contribuindo para desenhar e melhorar as reformas de saúde em países da América Latina. No Brasil, desempenhou um papel fundamental no planejamento, desenvolvimento e implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Eu o conheço há pelo menos uns 30 anos e creio que na minha geração a maioria me acompanha na admiração por ele. Destaco aqui um artigo recente de André, no qual a situação atual da saúde no Brasil, que aqui neste blog é objeto de frequentes análises é destrinchada, da competente e muito bem escrita que lhe peculiar. Vamos ao texto, aqui resumido para facilitar o alcance dos leitores. O link para acesso completo segue ao final .

Antes de tudo, um feliz ano novo para todos. Mas quais são as reais chances de que 2023 venha a ser um ano feliz? Embora a felicidade seja sempre um aspecto subjetivo em nossas vidas, há fatores objetivos que nos fazem duvidar. As previsões dos organismos multilaterais para o crescimento da economia mundial em 2023 foram rebaixadas significativamente nos últimos meses. Embora ainda não apontem para decréscimos no PIB, já se registra forte desaceleração das economias que lideram o crescimento mundial, o que aumenta a probabilidade de uma recessão global em 2023. E as economias de renda alta e renda média não tem desenvolvido, como resposta, políticas econômicas sólidas e convincentes para evitar uma recessão global, fortalecer as estruturas macroeconômicas, impulsionar as perspectivas de crescimento de médio prazo e enfrentar as mudanças climáticas.

Esta postagem mostra que o ano de 2022 não foi fácil para a saúde global e brasileira e que ambas continuarão a ser problemáticas em 2023. Os desafios mostram uma dependência crescente entre a economia mundial e a performance do setor saúde. Envelhecimento populacional, ameaças aos regimes democráticos, extremismos ideológicos, desigualdades econômicas e sociais, populismos autoritários tentando travestir-se de democracias, promessas idílicas para os pobres sem bases estratégicas e evidências para tornarem-se realidade, guerras dispendiosas, sangrentas e intermináveis e crises de governabilidade reduzem as possibilidades de uma recuperação vigorosa da economia mundial e poderão trazer fortes consequências negativas para uma boa performance do setor saúde.

 A economia mundial e brasileira em 2022 e perspectivas para 2023

Ao longo de 2022, a economia mundial teve um crescimento menor do que o esperado e a inflação foi a maior das últimas décadas, trazendo aumentos no custo de vida e aperto creditício, com a elevação das taxas de juros na maioria dos países. A esperada recuperação pós-pandemia não ocorreu no ritmo desejado, em função dos altos custos trazidos pela injustificável guerra entre Rússia e Ucrânia e pelo surgimento da variante ômicron, que trouxe as mais elevadas taxas de infecção de toda a trajetória pandêmica ao longo dos primeiros meses de 2022, com efeitos graves na economia dos países de renda elevada e média.

Portanto, no frigir dos ovos, se pode dizer que entre 2013 e 2023, mesmo com a pandemia, a renda per capita mundial está projetada para crescer 17,1% enquanto a renda per-capita brasileira deverá apresentar uma queda acumulada de -5,1%, ao longo deste período, com base nas projeções do FMI de outubro de 2022.

Nenhum país merece uma queda tão prolongada de sua renda per-capita, e consequentemente do padrão de vida de seu povo, em um longo período de dez anos. Mas o que ocorreu no Brasil foi o resultado de poucas opções e más escolhas eleitorais e, também, do referendo (ora incompetente, ora inescrupuloso) das autoridades em todas as esferas e níveis de governo a políticas econômicas, sociais e ambientais equivocadas. A revisão dos estatutos jurídicos sobre a condução de processos legais e a tolerância no uso de conceitos distorcidos de ética e probidade no uso dos recursos públicos acabaram detonando os orçamentos governamentais, com a redução dos instrumentos legais que poderiam corrigir os problemas existentes e prevenir que outros similares (ou até piores) venham a surgir. Este rosário de malfeitos poderá continuar a trafegar a esburacada, lenta e perigosa estrada que leva a população brasileira ao seu destino ainda incerto nos próximos anos.

 O legado não inventariado da pandemia

Em 2022 a incidência do Covid-19 continuou a dominar o cenário dos principais problemas mundiais, apesar da clara tendência à redução do número de casos e de mortes associadas à pandemia. A dominância do Covid-19 derivou do fato de que muitos dos problemas enfrentados pelo setor saúde, ao nível mundial, continuam associados às consequências econômicas, sociais, epidemiológicas e demográficas trazidas pela pandemia no cenário global.

Como decorrência da pandemia, a esperança de vida, ao nível mundial, se reduziu em muitos países desde 2020, embora ainda não existam dados que permitam realizar uma estimativa sólida global de todos os efeitos sobre a mortalidade trazidos pela pandemia. Estudo realizado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido[3], estima que a redução da expectativa de vida nos dois primeiros anos da pandemia tenha sido a maior desde a segunda guerra mundial.

No Brasil, estudos realizados pelo CEDEPLAR-UFMG[6]  calcularam, somente em 2020, uma redução de quase dois anos na expectativa de vida dos brasileiros como reflexo do excesso de mortalidade trazido pela Covid-19, indicando que, uma vez computados os dados de 2021 e 2022, os resultados poderão indicar uma redução ainda maior na expectativa de vida como resultado do excesso de mortalidade trazido pela pandemia.

A verdade é que a pandemia do Covid-19 afetou substancialmente o modo de vida da população mundial com efeitos negativos que vão muito além da simples mortalidade e redução da expectativa de vida. Entre eles, os efeitos econômicos já mencionados nos países de renda alta e média, refletidos em excessos de gastos públicos para fazer frente às quedas acentuadas da renda per-capita, na rentabilidade das empresas e na descontinuidade no abastecimento das cadeias produtivas. Seguiram-se choques inflacionários que, como visto, ecoam até hoje, os quais serão difíceis de sanar a curto prazo dados os elevados graus de endividamento público, e os choques de oferta de produtos essenciais como energia e alimentos.

Tendências do Setor Saúde em 2023 no Mundo e no Brasil

Efeitos da Pandemia na Prestação de Serviços: Os efeitos da pandemia ainda trouxeram, entre 2020 e 2022, fortes desajustes na continuidade da prestação de serviços, no esgotamento físico e mental e na escassez de pessoal de saúde, na ruptura das cadeias de suprimentos, medicamentos e equipamentos. Hospitais e planos de saúde sofreram margens flutuantes ou decrescentes em seus rendimentos e tem dificuldades de encontrar um equilíbrio para atender a demanda contida por atendimentos médicos, exames e medidas de prevenção e controle durante os anos de pandemia. Parte destes problemas estarão presentes em 2023 e todos devem ter a consciência do que serão necessárias reformas na administração dos sistemas de saúde públicos e privados para enfrentá-los.  

Portanto, os períodos em que ocorreram os maiores volumes de óbitos por Covid-19 coincidem com os de maiores volumes de óbitos por outras causas, e com os menores volumes de atendimentos para causas não Covid-19, denotando claramente uma sobre mortalidade e um sub atendimento por doenças crônicas em decorrência dos problemas na utilização da rede regular do SUS durante a pandemia. A queda em ações de promoção e prevenção, as quais já apresentavam redução antes da epidemia, se intensificou durante a incidência elevada de Covid-19, agravando o quadro de doenças crônicas e o represamento dos atendimentos no SUS. Isto influenciou diretamente o crescimento de óbitos por outras causas, e trouxe dificuldades para a retomada dos atendimentos do SUS que necessitarão de investimentos para alcançar os níveis

 Inflação em Alta e Mudanças Regulatórias nos Planos de Saúde: Com a elevação das taxas de inflação, o setor saúde deverá ser fortemente afetado pelos preços dos insumos, da força de trabalho, dos medicamentos, exames e demais serviços em 2023. Os preços dos seguros e planos de saúde poderá impactar o custo de vida levando famílias a perderem seus seguros e, dessa forma, atrasarem os cuidados de rotina e exames, afetando negativamente os resultados de saúde.

No Brasil, em particular, um tsunami de normativas, tais como redefinições nas fórmulas de reajustes dos planos individuais de saúde, mudanças no rol de procedimentos da ANS (de taxativo para exemplificativo) fim das restrições de serviços associados a terapias, aumento do número de terapias orais para o câncer e outros, deverão impactar o funcionamento das operadoras de planos de saúde.

E tudo isto acontece num ano onde os planos de saúde já acumulam prejuízos operacionais de R$5,5 bilhões no terceiro trimestre de 2022. De acordo com os dados da ANS os planos de saúde já apresentam resultados negativos em suas receitas ao longo de seis semestres consecutivos, com uma sinistralidade que já ultrapassou os 90%[8]. Mesmo assim, o número de pessoas com acesso a planos de assistência médica voltou a ultrapassar os 50,1 milhões, retomando o contingente de segurados registrado em 2014 antes da crise que levou a uma forte redução no número de beneficiários dos planos de saúde.

Redução das Margens de Rentabilidade:   Muitos sistemas de saúde, ao nível mundial, sofreram reduções de receitas durante e no pós-pandemia e ainda não recuperaram os níveis pré-pandêmicos. Com o aumento dos custos de suprimentos e mão de obra, 2022 pode acabar sendo um dos piores anos nas finanças dos hospitais privados ao longo das últimas décadas. A receita dos hospitais e sistemas de saúde tem sido afetada pela inadimplência dos pacientes, maiores glosas dos seguros de saúde e atrasos nos atendimentos. Um número crescente de pacientes está mudando para centros ambulatoriais em vez de hospitais na busca por procedimentos não emergenciais que lhes representem, não apenas maior comodidade, mas também menores custos.

Se o tsunami de medidas regulatórias apertar ainda mais, as margens de rentabilidade dos planos de saúde em 2023 e outros indicadores correlatos poderão apresentar uma deterioração ainda maior.

Digitalização da Saúde: Com o aumento das taxas de juros, as organizações de saúde poderão ter dificuldades para fazer empréstimos destinados a modernizar sua tecnologia e adotar as transformações digitais. No Brasil, a pandemia avançou, por questões de necessidade, o uso da telemedicina e da telessaúde de forma muito rápida, mas com as restrições de rentabilidade, crédito e inflação, dificilmente se poderá esperar investimentos de grande porte no setor em 2023. A maioria dos dirigentes, tanto no setor público como no privado, não decidiram se realizarão investimentos ou de onde sairão os recursos que necessitam para fazê-los.

VBHC e novos modelos de remuneração:  Já faz alguns anos que se fala em mudanças nos modelos de pagamento em saúde, tendo em vista a transição de sistemas de remuneração por serviço para remuneração por valor e resultado (Value Based Health Care ou VBHC). Mas os avanços, até o momento, têm sido muito tímidos e se limitam a poucas experiências. A transição para novos modelos de pagamento via VBHC se anuncia como a principal prioridade entre os executivos de planos de saúde privados, mas eventuais restrições financeiras em 2023, associadas ao tsunami regulatório na saúde suplementar e a uma eventual continuidade na redução das margens de rentabilidade dos hospitais privados, poderão trazer dificuldades para que os planos de saúde, como pagadores, negociem estes processos. Eventualmente, seguros de saúde verticalizados, com suas próprias redes, terão mais graus de liberdade para negociar e implementar estes modelos.

No SUS é difícil dizer o que poderá acontecer. No âmbito federal, poderá haver uma certa dificuldade na aceitação de modelos de pagamento baseados em resultados. As regras que deverão reger a gestão do SUS no novo governo se fundamentam em processos corporativos, baseados no assalariamento e na progressão em carreira de profissionais, com remuneração não associada a resultados. Além do mais, consideram qualquer argumentação que busque, ao fim, aumentar a eficiência na saúde uma parte do discurso neoliberal. O que vale, nesse contexto, é um pretenso discurso de proteção ao profissional de saúde, mesmo que na prática lhe paguem baixos salários e não existam incentivos para que estes evoluam e se realizem profissionalmente através do alcance de melhores resultados para seus pacientes. No entanto, como o SUS é descentralizado, deve-se confiar que a bandeira do VBHC e dos resultados no setor público venha a ser levada a sério pelos secretários estaduais e municipais de saúde, e que estes coloquem o paciente como centro e garantam a melhoria da saúde de suas populações como meta. Nesse contexto, o VBHC no SUS poderá evoluir.

***

Para o texto completo, acesse:

***

Este é André Medici:

2 respostas para “A Saúde em Perspectiva: Brasil x Mundo; Situação 2022 x Tendências 2023”

  1. Muito sombria as consequências do modelo macroeconõmico e da pandemia no mundo inteiro. Mais do que nunca devemos pensar em soluções alternativas e comunitárias para proteger nossa população.
    Acredito que as politicas públicas deveriam definitivamente incluir tecnologias e soluções que passam por uma consciência de autosubsistência, autosustentabilidade e cooparticipação coletiva, aproveitando os recursos culturais dos povos para a promoção da qualidade de vida. Com certeza temos a disposição inúmeros recursos na saúde e nas várias áreas, como por exemplo a fitoterapia, as práticas de autogestão da saúde com medidas de promoção da saúde e prevenção de doenças, a cooperação entre pessoas e grupos, redução da ideologia de egoísmo e do consumo, solidariedade e fraternidade entre os povos, cuidado e educação básica para todas as crianças, entre outros. Acredito que esses índices de empobrecimento passam pelo egoismo crescente entre os povos, pela desigualdade exorbitante e pelo salve-se quem puder da pós-modernidade. A pergunta que me faço é: Quando e como iremos entender que a solução é coletiva e que somos um quando somos todos, parafraseando a filosofia Ubuntu ???

    Curtir

    1. Obrigado Keta, por mais esta contribuição! Mas convenhamos, a meu ver, “egoísmo” talvez não seja a palavra exata (ou, pelo menos, mais abrangente), para falar da atual situação da saúde. a questão é política, mas do que de índole individual e moral.

      Curtir

Deixe um comentário