Covardia e abuso contra as mulheres: o que os serviços de saúde podem oferecer? 

[O post de hoje conta com a valorosa colaboração da querida Henriqueta Camarotti] Disse o Papa Francisco: “Pelo modo como tratamos o corpo da mulher, vê-se o nosso nível de humanidade”. Isso nos leva à indagação de por que as reações face aos assassinatos, espancamentos e outras violências contra mulheres são muitas vezes pouco expressivas na sociedade? É o caso de se questionar também por que somente pequena parte desses crimes encontra abrigo da mídia? Seria porque a vítima eventual não pertenceria a uma classe média afluente ou alta, tendo, assim, um ciclo de relações no qual, certamente, há advogados, jornalistas e outras pessoas bem relacionadas? Da maioria de tais casos, não há como negar, só se lembram as famílias e os amigos mais próximos. Nenhuma nota no jornal, ou talvez apenas uma, dando conta de seu desaparecimento ou do achado do cadáver. Depois, silêncio. E sua cúmplice imediata e íntima, a omissão. Pois é, quando eu (Flavio) estive no Quebec, alguns anos atrás, fiquei impressionado com o fato de que, na primeira página de um jornal de ampla circulação, havia uma notícia sobre uma ignota mulher que fora espancada pelo marido no dia anterior. E era uma matéria detalhada, com fotos da vítima e do agressor, além de depoimentos de vizinhos. A primeira impressão foi que se tratava de provincianismo midiático, nada mais. Com certa ironia mórbida, imaginei que se a moda chegasse ao Brasil os jornais abririam suas edições com o caderno de classificados, contendo os espancamentos do dia de mulheres, de Abigail a Zulmira. Mas logo compreendi que aquilo era um abuso que maltratava não apenas aquela pobre mulher, seus parentes e amigos mais próximos, mas afetava a sociedade como um todo. Já aqui entre nós há um permanente séquito de marias, de helenas, de isabéis, de antônias, de penhas e tantas mais, em um cortejo, anônimo, silencioso, imerso nas sombras, distante dos holofotes. E dói vê-lo passar, ou, pelo menos saber de sua existência. O fato é que os assassinatos de mulheres praticados por homens, muitas vezes seus companheiros (ou ex), deveriam chocar o imaginário dos brasileiros. Mas será que de fato estarrecem? Impressionante como isso é feito de maneira covarde por homens com que essas mulheres mantinham alguma forma de relacionamento. O que mantinha esses casais juntos antes de tal tragédia acontecer? Lamentável, como todos os crimes contra a vida; mais ainda se as vítimas não têm como se defender, como mostram as evidências factuais.


Nos últimos tempos, cerca de quatro mil mulheres são assassinadas no Brasil anualmente. Há uma pequena redução em anos recentes, seguindo aquela relativa a homicídios em geral. Isso inclui tanto o que se denomina de feminicídio, ou seja, mulheres vitimadas em razão de sua condição feminina, em decorrência de violência doméstica ou familiar ou quando há menosprezo ou discriminação à condição de mulher, como também pela violência urbana geral, como roubos seguidos de morte e outros conflitos. Aqui no DF a taxa de mortalidade feminina por 100 mil habitantes era de 3,3 no final da década passada, versus 3,5 no Brasil como um todo. O maior expoente se deu em RR, com 12, 5 e o menor em SP, com 1,7. Cabe observar também como esta taxa variou ao longo da década: no DF se reduziu em mais de 40%, acompanhando a tendência do Brasil e igualando-se em tal aspecto aos estados de RJ e PR. Do outro lado, mostraram marcante crescimento AM, MA, CE, RN e AC, chegando, neste último, a inacreditáveis 69,5%. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF apenas na primeira semana de 2023, foram registrados quatro casos de feminicídio. Durante todo o ano passado, no DF, 17 mulheres foram assassinadas e entre 2015 e 2013 ocorreram 148 feminicídios. Segundo a OPAS, uma em cada três mulheres e meninas de 15 a 49 anos nas Américas sofreu violência física ou sexual por um parceiro ou ex-parceiro. Sobre essa forma de violência contra as mulheres as Nações Unidas definem “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou mentais para as mulheres, inclusive ameaças de tais atos, coação ou privação arbitrária de liberdade, seja em vida pública ou privada”.  

Por que isso, afinal? Certamente as razões são variadas, mas podem ser enfeixadas dentro de uma categoria: o desrespeito – contra a vida, contra as mulheres, contra os direitos humanos, contra a maternidade, contra os mais vulneráveis. Para isso concorre a cultura machista e truculenta, mas também o silêncio e a omissão da sociedade. E mais: além da violência física ou feminicídio, a violência psicológica contra as mulheres é muitas vezes de difícil identificação até mesmo pela própria vítima e está presente em muitas relações conjugais aparentemente normais de forma independente de classe social, idade, etnia ou religião. Ela é também muitas vezes silenciosa, mas com um grau enorme de destrutividade, que ceifa os sonhos e a capacidade de realização da pessoa que sofre. O pior é que essa forma de violência se perpetua nos filhos, pois muitas vezes inconscientes do que está acontecendo, incorporam o padrão, quer reproduzindo a violência nas futuras companheiras, quer, quando mulher, naturalizando o comportamento de ser violentada psicologicamente.

 A pergunta que se faz é por que as mulheres se submetem aos vários tipos de violência, mesmo quando elas têm autonomia social, intelectual ou financeira? Por que diante de tal sofrimento e desrespeito, essas mulheres não tomam uma atitude? A literatura demonstra que muitos são os motivos que mantem essas mulheres na relação, mas citemos alguns exemplos: o medo de perder a guarda dos filhos, o constrangimento perante os amigos e família, a culpa por não conseguir manter sua relação, acreditar que sempre o parceiro irá melhorar, a falta de capacitação profissional para sobreviver sozinha, a dependência emocional e afetiva do companheiro, medo das ameaças que surgem quando desejam romper a relação, e em muitos casos a falta de recursos financeiros para assumir tudo sozinha, porém a essa questão está atrelada a subsistência dos filhos e não de si mesmas.Estamos realmente diante de uma questão que ultrapassa a esfera jurídica ou policial, tendo raízes fortemente fincadas na cultura, o que torna seu controle uma tarefa multidimensional e complexa. E é claro que envolve diretamente o campo da saúde pública muito a ver diretamente com isso, não apenas na cura de suas sequelas, mas também em sua prevenção e abordagem cultural. Mas, com efeito, o que se observa na prática dos atendimentos médicos e psicológicos, bem como nas práticas de apoio social, é que mesmo que a mulher seja a mantenedora da família, do cuidado com os filhos, nas responsabilidades do grupo, ela ainda assim se submete, embora com enorme sofrimento.

O movimento feminista tem proporcionado muitos avanços, inclusive a possibilidade de identificação dos danos causados às mulheres nas relações toxicas, além de ser uma fonte de denúncia pública para essa questão tantas décadas ou séculos escondida e naturalizada pelo comportamento machista introjetado na sociedade. As vítimas de violência conjugal tendem ao isolamento e ao silêncio, comportamento esse mantido pela tentativa de evitar conflitos e não se sentir envergonhadas diante dos familiares e amigos. Ocorre também que as ameaças sofridas, a tortura mental e psicológica detona o sistema de defesa emocional das mulheres, levando ao desânimo, depressão e outras doenças psicossomáticas. A convivência cotidiana com o medo e o terror aniquilam a autoestima e a capacidade de reagir, provocando traumas e cicatrizes profundas, quem sabe para toda vida e por vez transmitidas para os descendentes.

Assim, torna-se preciso difundir essa consciência, pois a superação da situação de violência requer, necessariamente, uma rede de apoio e proteção, traduzida em serviços, que a auxiliem nesse processo, por isso as políticas públicas são fundamentais para inclusão dessa situação como prioridade. Na área da saúde, especificamente, diante das evidências estatísticas da violência física e psicológica, diante dos sentimentos de intimidação e constrangimento vivenciados pelas mulheres, quais seriam as atribuições e responsabilidades dos respectivos agentes, não só na sua identificação precoce, como na orientação das vítimas? Enfim, como preparar esses profissionais no acolhimento às pessoas que sofrem tal violência?

Os especialistas apontam e eu mesma (Henriqueta) em minha prática psiquiátrica observo que muitas mulheres procuram os serviços de saúde com queixas de dores ou sofrimentos indefinidos, que muitas vezes resultam de maus tratos ou são sintomas psicossomáticos consequentes à violência e abuso psicológico. Essas pessoas geralmente são (re)encaminhadas de consulta em consulta, de um especialista a outro e acabam por não ser ouvidas, de fato, quanto às dores e sofrimentos reais que lhes trazem ao serviço. É grande, assim, a responsabilidade de um dado profissional, aquele que de fato deveria se constituir como depositário da confiança da paciente, acolhê-la em seu sofrimento e assim buscar as causas e fatores envolvidos em tal quadro clinico. Isso implica em desenvolver relações terapêuticas mais empáticas, incluindo a compreensão mais profunda de tais questões e que isso perpasse transversalmente as várias instâncias do atendimento, não só em termos da escuta, mas também da orientação cabível, cabendo ainda desmistificar o constrangimento de se expressar ou falar do assunto; ao contrário, estimular o direito da mulher buscar ajuda.

Ainda na minha experiência cotidiana de psiquiatra percebo que o cerne do sofrimento dessas mulheres é o descaso e a violência que sofreram e sofrem nas relações com seus parceiros. São pessoas que, em sua maioria, trabalham como domésticas, faxineiras, cuidadoras; acordam ainda na madrugada, deixam pronta a comida da família, sustentam a casa e pagam o aluguel e ainda assim sofrem violência, inclusive física, de homens que muitas vezes são alcoolistas, desempregados, além de moralmente questionáveis.

 “Por que você não se separa desse homem?  – é uma pergunta habitual a essas mulheres. Elas quase sistematicamente respondem: “já falei para ele sair, mas ele não sai”. Depois se vê que tal homem violento e muitas vezes inútil possui um papel simbólico na vida sofrida delas, o de lhe trazer o suposto status de mulher “casada”, o que poderia representar uma defesa em relação a outros homens agressivos da comunidade. Mas quem sabe, isso não seria também uma baixa absoluta de autoestima e de empoderamento suficientes para se sentirem merecedoras de uma vida digna? Seria o peso da cultura machista impregnada no psiquismo feminino – ou talvez da sociedade como um todo?

Na minha lida em serviço ambulatorial público, constatando essa realidade e cheia de perguntas sem resposta, implantei com ajuda de colegas de outras profissões de saúde o que denominamos de “grupo de fala e escuta”, com frequência semanal. Procurávamos não nos ater a “conselhos” pois, percebemos que as próprias mulheres encontravam um jeito de se nutrir umas com as outras em termos de autovalorização. Começaram a comparecer ao grupo mais alegres, melhor arrumadas, vaidosas de sua feminilidade, satisfeitas com a descoberta de novos caminhos.

Neste sentido, a tecnologia social denominada de Terapia Comunitária Integrativa (TCI), da qual sou defensora e propagadora entusiasmada, hoje desenvolvida em todos os estados brasileiros e também em outros países, representa uma ferramenta preciosa na criação de tais espaços de troca e de promoção da resiliência grupal. Um depoimento lapidar de uma dessas mulheres, Maria Luiza, depois de alguns meses de participação em rodas de TCI: “Hoje não sou mais a mesma, me valorizo, invisto na minha saúde e cuido dos meus filhos com alegria; ele continua bebendo, caído pelas ruas, mas eu mudei, não aceito mais nenhuma desqualificação”. 

Penso, então, que grupos de ajuda mútua, como a TCI, constituem espaços de construção de redes solidárias nos quais as pessoas expõem seus sofrimentos, compartilham as estratégias de superação e nutrem sua autoestima, resiliência e cidadania. Esses grupos podem promover mudanças na autoestima e no enfrentamento de situações ameaçadoras derivadas da violência contra mulheres, uma vez que cada uma delas possa se identificar com as demais em situação semelhante, compartilhando estratégicas e realizando a travessia para a superação de tais condições. Não tenho dúvidas de que se trata de uma estratégia que poderia ser utilizada nos serviços da atenção básica de saúde pelo Brasil a fora, capaz de oferecer a essas mulheres sofridas no silêncio da sua dor um espaço de compartilhamento de sofrimento e de soluções coletivas. Isso é totalmente contrário à mera medicalização de tal sofrimento pessoal, social e cultural, representando de fato a criação de redes solidárias de partilha de experiências e descoberta de soluções coletivas para tal situação crítica e devastadora da qualidade de vida das mulheres.

Menos mal que temos agora temos uma lei (L. 13.931/2019) que obriga os profissionais de saúde a registrar no prontuário médico da paciente e comunicar à polícia, em 24 horas, indícios de violência contra a mulher. É bem verdade que o governo infame que se encerrou em 31 de dezembro de 2022 tentou vetá-la, mas teve tal intento derrubado pelo Congresso Nacional. Tal comunicação é obrigatória de deve ser registrada para fins estatísticos, valendo para serviços de saúde públicos e privados.  

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Saiba mais:

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A Saúde nos primeiros 100 dias de Lula

Ao longo dos primeiros 100 dias do governo Lula o Ministério da Saúde anunciou o apoio a políticas anteriores dos governos do PT, tais como: (a)    O relançamento do Programa Mais Médicos com perspectiva de contemplar um contingente de cerca de 28 mil médicos no Programa até o final de 2023; (b) A criação de um movimento nacional de vacinação, intensificando as campanhas para aumentar a cobertura vacinal para diversas doenças evitáveis que foram reduzidas nos últimos anos; (c)   A redução das filas de espera para cirurgias, exames e consultas médicas no SUS que foram drasticamente aumentadas ao longo dos anos de pandemia; (d)   A intenção de retomar a política de desenvolvimento industrial da saúde, com a expectativa de produzir 70% dos equipamentos e insumos médicos demandados pelo SUS e reduzir a dependência de importações para o setor saúde – uma das maiores lutas enfrentadas pelo SUS junto à pandemia de Covid-19, até o final de seu governo, além de (e)   A busca de recursos orçamentários para financiar os gastos criados pela legislação aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 2022, que estabeleceu o piso salarial nacional para enfermeiros dos setores público e privado, em R$ 4.750, e estabeleceu que o salário-mínimo dos técnicos, auxiliares e parteiras de enfermagem será calculado com base nesse valor. Como foi o alcance de tais metas? Veja com mais detalhes o artigo dos renomados especialistas André Medici e Joaquim Cardoso no link abaixo. Oportunamente voltaremos ao assunto aqui no blog.  

http://monitordesaude.blogspot.com/2023/04/os-primeiros-100-dias-do-terceiro.html?m=0

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