Conceitos de Saúde e doença: uma breve história

Há várias maneiras de se fazer um pão. A mais simples é adicionar água, farinha, sal e um pouco de fermento. Outro modo é juntar tudo isso e mais óleo, manteiga, castanhas, frutas, temperos, além de aditivos diversos. A diferença entre um produto e outro será notável, naturalmente. Digo isso porque a interpretação de o que é saúde e o que é doença obedece a uma lógica semelhante. Existem métodos simples de fazê-lo, mas se pode também adicionar certos temperos que acabarão por trazer ao resultado uma potência explicativa maior. Afinal de contas, se o organismo humano já é complexo por si só, os fatores que o ofendem, vindos de fora ou mesmo de dentro, também existem dentro de cenários que não são nada simplórios, ou lineares. Assim, por exemplo: em uma concepção simplificada, um organismo, humano ou não, adoece quando é atacado por um vírus, bactéria, trauma ou uma alteração química interna. Alguns podem pensar ser uma interferência de outro tipo de fator externo, de natureza sobrenatural ou outro nome que se queira atribuir a tanto. Como resposta a isso, o ser atacado pode ser recuperado – ou não – pela própria natureza, mas como é mais comum nos dias de hoje, através do recurso a algum fator curador, que pode ser – e geralmente é – um médico ou outro profissional igualmente qualificado. Eventualmente também algum xamã, pajé ou curandeiro. Há lugar para todos esses personagens. Até aí tudo bem, mas tal equação (agente + hospedeiro = adoecimento) tem natureza muito mais complexa do que aparenta, sendo que cada uma de suas varáveis também está ligada a uma sequência extremamente variada de fatores próprios. Assim, o que seria apenas uma forma linear, na visão mais simples, (a + b = c) se transforma em uma figura que lembraria mais uma árvore, e muito ramificada. É sobre a história e algumas ramificações em torno dos conceitos de Saúde e de Doença que vou falar aqui, sem necessariamente esgotar o assunto.

CONCEITOS DE SAÚDE E DOENÇA: UMA BREVE HISTÓRIA

Flavio Goulart (Médico, Doutor em Saúde Pública, Docente-Professor Titular (aposentado) – Faculdade de Medicina – Área de Medicina Social – Universidade de Brasília.

Sumário

CONCEITOS DE SAÚDE E DOENÇA NA HISTÓRIA (Página: 1)

Saúde e Doença na Antiguidade. 2

Idade Moderna. 3

A fundação da Saúde Pública. 4

SAÚDE E DOENÇA NO SÉCULO XX. 5

História Natural da Doença. 6

Lalonde e a Promoção da Saúde. 7

A Declaração de Alma Ata. 8

A Atenção Primária à Saúde. 9

Os Determinantes Sociais em Saúde. 10

Conceitos de saúde e doença: uma síntese evolutiva. 10

CONCEITOS DE SAÚDE E DOENÇA E SEUS DESDOBRAMENTOS NA ORGANIZAÇÃO DOS CUIDADOS À SAÚDE. 11

Uma breve história dos Sistemas de Saúde. 11

Saúde e Participação Social 13

Valor em saúde. 13

Novos intérpretes do processo de saúde e doença. 14

Um cenário de transições. 14

O FUTURO DA SAÚDE. 15

Não ao “mais do mesmo”. 17

Saúde e Doença na Antiguidade

Saúde e doença, além das respectivas práticas de saúde, sempre tiveram em sua origem e determinação a influência dos modos de conceber e agir da sociedade face ao corpo humano e a respectiva valorização concedida à saúde e à doença. Os diversos modelos daí advindos, ao variarem intensamente ao longo da história, mantiveram correlação com a estrutura da sociedade, em cada período, em face da visão de mundo dominante.  Por outro lado, em toda a história das sociedades humanas, os problemas de saúde enfrentados tiveram, em sua origem, uma relação com a vida em comunidade e, embora com ênfases diferentes, com as variadas maneiras com que tais sociedades procuraram resolvê-los, por exemplo controlando as doenças e melhorando as condições ambientais.

Já na antiga Babilônia, por exemplo, como também acontecia em outras sociedades antigas, códigos como o de Hamurabi prescreviam a necessidade de se cuidar da saúde da coletividade, mediante o controle das condutas dos médicos. Há, por exemplo, relatos sobre a história de um médico mesopotâmico, chamado Arad-Nana, que serviu à corte do rei assírio Asarhaddon, cerca de 670 a. C., na qual se destacou como clínico e conselheiro, atendendo não só ao rei como a sua mulher e a seus filhos. O historiador grego Heródoto, em sua famosa viagem pelo Egito, em torno do ano 450 a. C., descreveu a prática de verdadeiras especialidades médicas na sociedade de então, mas observações posteriores, a partir de lápides de pedra encontrados em túmulos reais do Vale das Pirâmides, mostraram que, na verdade, em períodos tão remotos quanto o da IV dinastia (cerca de 2500 a. C.), era grande o prestígio dos médicos generalistas, como foi o caso de um deles, Iry, médico da corte do faraó e uma espécie de autoridade sanitária da época. No Egito antigo havia, também, médicos contratados para prestar assistência integral aos trabalhadores mobilizados para a construção das pirâmides.

Na Grécia antiga, Platão justificava a presença dos médicos na Polis, insistindo na necessidade de que os cidadãos, como um todo, fossem pessoas sadias. Na sociedade grega os termos mais associados com a saúde eram higiene, harmonia, bem, equilíbrio, organização; os praticantes, naturalmente, deveriam ser bastante imbuídos dos mesmos. Já havia serviços públicos rudimentares de drenagem e suprimento de água nas cidades. Os médicos gregos tinham seu salário fixado por um imposto especial e possuíam uma base territorial de ação, tendendo a se concentrar, de forma permanente, apenas nas cidades maiores, onde estabeleciam o iatréion, uma espécie de consultório. Nos vilarejos havia, por vezes, a figura de médicos itinerantes, e era comum que os mesmos batessem à porta das famílias, oferecendo seus trabalhos. Cerca de 600 a. C., passou a ser comum a nomeação pública de médicos para atuarem nas cidades, garantindo proventos anuais, mesmo que não houvesse enfermos para tratar – uma forma primeva do que hoje se conhece como capitação. A medicina grega, por influência de Hipócrates, que viveu em torno de 450 a. C., tinha também como aspecto marcante a prática generalista dos médicos.

Houve marcante migração de médicos gregos para Roma, nas décadas próximas ao nascimento de Cristo, sendo em alguns casos oferecida a eles a cidadania romana – uma notável distinção para a época. Em Roma, os médicos trabalhavam em bases territorializadas, ou seja, com populações adscritas, estabelecendo-se, por decreto, o numerus clausus, que limitava seu número dentro de cada cidade. Era costume, também, que as famílias estivessem ligadas a um autêntico médico de família, com atuação integral referente a todos os membros da mesma, recebendo um salário mediante cotização de seus assistidos. A partir do segundo século, aparece um serviço público de atenção à saúde, com a nomeação de funcionários médicos, os archiatri, com responsabilidades de atenção à pobreza.

A Idade Média mostra uma inflexão da tendência de cuidado e manutenção da saúde por parte de profissionais médicos. Em primeiro lugar, a doença passou a ser concebida como purificação e graça, um privilégio proporcionado por Deus. Como consequência, a prática médica se recolheu aos mosteiros, limitando-se a processos curativos, ainda assim mais voltados para a alma do que para o corpo. Contudo, no final deste período, os médicos leigos aumentaram de número e passaram a ter sua atuação tolerada e até mesmo estimulada pela Igreja, que havia mudado sua conduta em relação ao corpo humano, agora considerado “morada da alma”. No século XIII, em Salerno (atual Itália), verifica-se um primórdio de intervenção estatal em saúde, com a publicação de decretos imperiais sobre a prática e a formação médica. Ainda na Idade Média, ocorre na Suíça o advento de uma espécie de médico de família, inspirado no modelo de profissional que prestava atendimento à nobreza e à aristocracia eclesiástica – o médico de câmara. É possível encontrar também neste período histórico um rudimento de sistema de saúde pública nas cidades, dirigido por um conselho seleto, dotado de um mandato temporário e geralmente formado por não-médicos. Tais organismos tiveram destaque, particularmente, na França, nos Países Baixos e na Inglaterra. O enfoque das práticas de saúde, em toda a Idade Média, foi sempre o do cuidado à pobreza, com forte influência religiosa. Apesar de todo o atraso científico e social da época, havia certa ênfase na educação e na promoção de hábitos higiênicos e de saúde, conforme se aprecia no Regimen Sanitatis Salernitanun).

Idade Moderna

Embora algumas das bases das práticas de saúde modernas calcadas na proteção social coletiva já estivessem lançadas desde a Antiguidade e a Idade Média, como se viu acima, as transformações que ocorrem a partir do século XVI é que se tornam cada vez mais expressivas. Neste período, os acontecimentos da Inglaterra passam a ter especial relevância, dada a ocorrência precoce, em relação a outras nações, da ascensão da burguesia ao poder e suas decorrências políticas econômicas e sociais. Entre tais eventos, podem ser destacados: (a) a revolução tecnológica (Primeira Revolução Industrial); (b) a urbanização acelerada; (c) a formação gradual de uma nova classe, o proletariado urbano; (d) o advento de legislação de proteção social, tendo como parâmetro a Lei dos Pobres Elizabeteana, de 1601; (e) o aparecimento de um pensamento social em saúde; (f) a transição gradual entre a responsabilização local das freguesias (parishes) pela proteção social e a do Estado Moderno – o Leviatã de Hobbes. Inaugura-se assim o que já se denominou de Era do Homem Econômico, de marcantes influências nas políticas de proteção social até os dias de hoje. É o que Darcy Ribeiro chama de novo processo civilizatório, enfatizando a compulsoriedade dos processos de integração entre culturas e nações, tendo como mediador o mercado e, também, o aparecimento da força de trabalho assalariada, com novas funções atribuídas aos trabalhadores pelos detentores dos meios de produção, tendo como parâmetro principal a produtividade.

Os séculos XVI e XVII, geralmente considerados como um autêntico “período de gestação” da modernidade, constituíram um período de intensas mudanças em toda a civilização ocidental, com base particularmente na Europa. Uma das marcas deste novo período da história humana é o declínio da lei divina, que até então governara o pensamento e a ação da sociedade e da qual derivava toda a noção de autoridade conhecida, seja secular ou religiosa. Resulta daí o declínio do domínio feudal, ao mesmo tempo em que nas cidades adriáticas (por exemplo, Veneza), aflorava uma nova classe de comerciantes, pré-figurando o que seria, mais adiante, a sociedade burguesa. Assim, o surgimento de novos conceitos, de homem, de negócios, de religião, ou seja, uma nova racionalidade, marcaram presença neste momento crucial da história, e foi assim que a velha ordem social, fixa e imutável, construída durante quase um milênio, começou a desabar.

Mas os avanços de maior monta vêm a ocorrer, ainda segundo após a instauração da maneira de pensar iluminista, e pelo desenvolvimento do mercantilismo, ao longo dos séculos XVI a XVIII, que produzem uma grande evolução da ciência, particularmente da ciência médica, nos campos da anatomia, da fisiologia e da patologia, com Vesalius, Harvey, Morgagni e tantos outros. Os novos conhecimentos permitiram avançar, não só sobre o entendimento mais profundo da estrutura e do funcionamento do corpo humano, como também em relação à sua aplicação sobre a saúde das coletividades. É uma fase de avanço de um enfoque quantitativo sobre os problemas de saúde, com o desenvolvimento da chamada aritmética política – disciplina mãe da bioestatística. Começa a tomar forma, também, a ideia da existência de organismos diminutos como causadores de inúmeras doenças. Para o autor citado, é também esse o período em que aparecem as ideias de que seria essencial uma população numerosa e sadia para garantir a riqueza e o poder da nação.

A fundação da Saúde Pública

As mudanças políticas ocorridas na Europa na primeira metade do século XIX, denominadas por Hobsbawn de Era da Revolução acabam por favorecer uma mudança qualitativa do caráter da ação política em saúde, transformando as noções de concessão e repressão, anteriormente vigentes, em noções de direito e justiça social. Neste particular, os anos transcorridos entre 1840 e 1854, são bastante expressivos com relação a tais mudanças, configurando verdadeiro surgimento de um movimento social e de uma profissão, correspondendo às grandes mudanças políticas e culturais em todo o mundo ocidental Assim, a saúde se transformou em assunto público, e o estado de saúde, doença e bem-estar da população passa a ser considerado um reflexo da ação política. É construída, assim, a Saúde Pública moderna sob a égide da justiça social, na visão dessas autoras. O quadro abaixo mostra alguns dos acontecimentos políticos, culturais e sanitários da era da fundação da saúde pública.

EVENTOS POLÍTICOS E CULTURAIS 
1840-1847                                               EVENTOS SANITÁRIOS
Primeiras leis de limitação do trabalho infantil na Inglaterra e nos Estados UnidosRevoltas populares contra a fome na IrlandaMovimentos anti-escravagistasVillermé publica seu estudo sobre as condições de saúde dos trabalhadores na FrançaChadwick (1842) e Smith (1847) publicam estudos semelhantes na Grã-BretanhaGriscom, idem em Nova IorqueEngels publica Conditions of Working Class in England
1848
Movimentos revolucionários anti-monarquistas em vários países europeusRevolução na França Primeira convenção dos direitos femininos nos EUAH. Thoreau publica Civil disobedienceMarx e Engels publicam o Manifesto ComunistaEpidemias de cólera em todo o mundoVirchow publica Medicinische Reform na AlemanhaCriação de um Comitê de Saúde da Segunda República na FrançaFirst Act of Public Health na InglaterraCriação de um comitê de Higiene Pública na recém fundada American Medical Association
1849-1854
Aprofundamento da luta pela libertação dos escravos nos EUAElizabeth Blackwell cria o primeiro dispensário para mulheres e crianças pobres em NYFundação da London Epidemiological SocietyJohn Snow publica On Cholera e bloqueia a transmissão da doença em áreas de Londres (Broad Street)

Por muitas razões, a Inglaterra tem no seu caso de formação de políticas de proteção social e à saúde, uma expressão paradigmática, por ter sido este o primeiro país industrial moderno. Neste período os ingleses ampliaram sobremaneira seu poderio naval e o sistema de capitalismo mercantilista nele assentado, acumulando, além disso, grandes inovações tecnológicas, com base científica empirista, dando origem a uma economia industrial-urbana, que superou inteiramente as raízes agrárias anteriormente vigentes, e gerou transformações radicais na estrutura social da nação.

SAÚDE E DOENÇA NO SÉCULO XX

Saúde, doença e suas interrelações representa um tema extenso e complexo, com variadas abordagens possíveis. Tomarei aqui apenas o que considero os principais movimentos relacionados aos conceitos de tal desenvolvimento, nominalmente: (a) História Natural da Doença; (c) Declaração de Alma Ata (b) Carta de Otawa e Promoção da Saúde; (d) Atenção Primária à Saúde; (e) Determinantes Sociais em Saúde.

História Natural da Doença

Leavel & Clark, pensadores norteamericanos da saúde estabeleceram as bases, ainda nos anos 60, de uma história natural do controle e da prevenção das doenças, defeitos ou invalidez no ser humano e que tal conhecimento envolveria as condições naturais e específicas em que tais distúrbios aparecem e persistem, assim como das circunstâncias e condições em que elas não ocorrem. Aqui, o vocábulo natural tem a conotação de progresso sem a intervenção do homem, que pode modificar o curso da doença por medidas preventivas e curativas. Assim, tal conceito se refere a uma descrição da progressão ininterrupta de uma doença em um indivíduo desde o momento da exposição aos agentes causais até sua recuperação ou a morte.

No centro de tal pensamento estão os estudos epidemiológicos descritivos ou observacionais, abrangendo três classes de fatores gerais descritivos do então denominado processo saúde-doença: o agente, o hospedeiro e o ambiente. Tal abordagem acarretaria, assim, através da utilização da epidemiologia e da descrição das doenças, uma abertura para a prevenção, mesmo quando a patogênese da doença ainda não é de todo conhecida.

São definidos de tal forma os níveis de aplicação de uma medicina preventiva. A doença é vista, assim, desde um período de pré patogênese, com desdobramentos de promoção da saúde e proteção específica, caracterizando o que tais autores denominam de prevenção primária. São definidas quatro fases de evolução, associados por sua vez à distintos níveis de prevenção por ações de saúde, a saber:

FASE INICIAL OU DE SUSCEPTIBILIDADEPeríodo que antecede às manifestações clínicas das doenças, reconhecido por associação de possíveis fatores causais às posteriores manifestações clínicas ou epidemiológicas das distintas patologias, considerados a partir como fatores de risco. Aqui se aplicam medidas preventivas diversas, como atenção primária, imunização, higiene pessoal, utilização de equipamentos de proteção etc. Em tal momento, de pré – patogênese, são aplicáveis, também as medidas de promoção da saúde, envolvendo condutas individuais como alimentar-se bem, fazer exercícios, não fumar, além de ações de de Estado como saneamento, construção de escolas, melhora de transportes coletivos etc.
FASE PATOLÓGICA PRÉ-CLÍNICA Clinicamente, a doença ainda está no estágio de ausência de sintomatologia, embora o organismo já apresente alterações patológicas, com determinadas inter-relações dinâmicas envolvendo componentes econômicos, ecológicos e condições intrínsecas do sujeito, evoluindo no sentido de uma configuração de fatores propícios à instalação da doença. Aqui se aplicam tecnologias como as de rastreio (screening), os exames periódicos de saúde. a procura de casos (vigilância), como exemplos adequados de intervenções de diagnóstico precoce ou prevenção secundária.
FASE CLÍNICA Ainda no período da patogênese tal fase de manifestação clínica corresponde à expressão em diferentes estágios de dano. As medidas profiláticas nessa fase são também denominadas prevenção secundária e correspondem ao tratamento adequado para interromper o processo mórbido e evitar futuras complicações e sequelas. Isso envolveria, por exemplo, a garantia do acesso amplo da população aos serviços de saúde.
FASE DE INCAPACIDADE RESIDUAL Corresponde à adaptação ao meio ambiente como as sequelas produzidas pela doença e/ou ao controle (estabilização) das manifestações clínicas das deonças, a esta altura denomiandas de crônicas. A ela se aplica a prestação de serviços de reabilitação em nível hospitalar ou ambulatorial para re-educação e utilização máxima das capacidades restantes. Inclui também por exemplo, a disponibilização de órteses e próteses, a utilização de abrigos, a terapia ocupacional e a reabilitação psicossocial,como exemplos de prevenção terciária.

A História Natural das Denças de Leavell & Cark abre caminhos para uma compreensão mais abrangente do processo saúde-doença, ao fazer com que a atuação dos serviços e dos profissinais de saúde ocorra mesmo antes de aparecerem as manifestações patológicas, se estendendo também para além de uma eventual cronificação. Consequência  imediata disso é a percepção do campo da saúde não apenas como responsabilidade médica, mas também de outros profissionais, sob o escopo de variadas políticas de Saúde Pública. 

Lalonde e a Promoção da Saúde

A Promoção da Saúde é um campo de conhecimento relativamente recente na história da Saúde Pública, porém em rápida expansão, tendo se transformado em campo de inovação e experimentação em saúde. Seu marco essencial é a I Conferência Internacional em Promoção da Saúde da OMS, realizada em Ottawa, Canadá, em 1986, em cujo relatório (Cata de Ottawa) teve participação especial do então Ministro da Saúde do país, Marc Lalonde, cujo nome fica definitivamente associado a tal movimento.

Seu postulado central é o de que os pré-requisitos fundamentais para a saúde são a paz, a educação, a habitação, o poder aquisitivo, um ecossistema estável, e conservação dos recursos naturais e a equidade. A promoção da saúde foi então conceituada como “o processo de capacitação na comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo”. A Carta assume que a equidade deve ser um dos focos da promoção da saúde, ou seja, da necessidade de se reduzir as diferenças no estado de saúde da população, e no acesso a recursos diversos para uma vida mais saudável.

A promoção da saúde não diz respeito exclusivamente ao setor saúde, mas sim como resultado de ações intersetoriais sobre os determinantes gerais da saúde e da qualidade de vida. Assim, cada um dos diferentes setores de educação, geração de trabalho e renda, habitação, lazer e cultura, transportes, meio ambiente, assistência social, etc. deverão ter suas estratégias de atuação, através do que se denominou de “políticas saudáveis” ou, posterirormente “saúde em todas as políticas de governo. Isso não impediria, todavia, que setor saúde tenha diretamente importante papel em processo, que ultrapassa a simples provisão de serviços clínicos e assistenciais para abranger o apoio e o cuidado a indivíduos e comunidades para uma vida mais saudável, de forma articulada com diversas instâncias sociais, políticas, econômicas e ambientais.

Promoção da Saúde, assim, deve ser vista como “o conjunto de ações, intervenções, propostas, processos e movimentos que, atacando as causas mais básicas das doenças e apontando para novas formas ou condições de trabalho, de vida e de relacionamento do homem consigo mesmo, com seus semelhantes e com o meio ambiente, podem influenciar decisões individuais, grupais e coletivas que objetivem melhorar a qualidade de vida dos seres humanos” (Lefévre).

Em síntese que se tornou seminal, Lalonde estabeleceu o conceito de Campo da Saúde, composto por quatro determinantes: biologia humana, ambiente (natural e social), estilo de vida e organização da assistência à saúde, o que tem marcado o que tem sido considerado um grande avanço no campo da compreensão do processo saúde-doença.

A Declaração de Alma Ata

Em 1978 a Organização Mundial da Saúde (OMS) convocou a Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, realizada na cidade de Alma Ata, no Cazaquistão, sendo produzido ali um relatório que sintetiza um novo momento para a saúde pública mundial, conhecido como Declaração de Alma Alta. Embora o tema dos cuidados primários em saúde fosse o orientador das discussões, há inúmeras outras diretrizes referentes à saúde geral das comunidades. Assim é reafirmado que que a saúde representa um estado de bem estar não apenas físico, mas também mental e social, não apenas a ausência de enfermidade, sendo considerado em direito humano fundamental. O alcance do mais alto nível possível de saúde deve ser a meta mais importante dos governos, envolvendo, além da saúde, também outros setores sociais e econômicos. Deplora-se a desigualdade existente no estado de saúde dos povos, considerada chocante, entre os países em desenvolvimento e mesmo nos desenvolvidos. Para tanto, apela-se por uma ordem econômica internacional voltada para a plena realização da meta de saúde para todos e para a redução da lacuna entre o estado de saúde dos países em desenvolvimento e dos desenvolvidos. Como meta essencial propõe-se que os países do mundo atingissem um nível de saúde compatível com uma vida social e economicamente produtiva.

É enfatizada a importância dos cuidados primários de saúde, baseados em métodos e tecnologias práticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e a um custo que a comunidade e o país podem manter em cada fase de seu desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e autodeterminação. Isso deve fazer parte essencial do sistema de saúde, como função central e foco principal, mas também do próprio desenvolvimento social e econômico das comunidades. Tais cuidados devem, além do mais, representar o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e da comunidade com o sistema de saúde e uma maneira de levar os cuidados de saúde o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham, tendo como fundamento resultados relevantes da pesquisa social, biomédica e de serviços de saúde e da experiência em saúde pública.

São considerados como integrantes dos cuidados à saúde elementos diversos como: educação no tocante a problemas prevalecentes de saúde e aos métodos para sua prevenção e controle; promoção da distribuição de alimentos e da nutrição apropriada; provisão adequada de água de boa qualidade e saneamento básico; cuidados à saúde materna e infantil, inclusive planejamento familiar;  imunizações; prevenção e controle de doenças endêmicas e das doenças e lesões comuns; fornecimento de medicamentos essenciais.

Do ponto de vista político, os cuidados primários à saúde devem envolver, além do setor saúde, todos os setores e aspectos correlatos do desenvolvimento nacional e comunitário, mormente a agricultura, a pecuária, a produção de alimentos, a indústria, a educação, a habitação, as obras públicas, as comunicações e outros setores. É recomendada e valorizada a promoção da autoconfiança e da participação comunitária. Da mesma forma, recomenda-se uma ampliação do plantel de praticantes, para além de médicos, enfermeiras, parteiras, auxiliares e agentes comunitários, contemplando também os tradicionais, convenientemente treinados, ao lado da equipe de saúde e para responder às necessidades expressas de saúde da comunidade.

A Atenção Primária à Saúde

A Atenção Primária à Saúde (APS) é uma estratégia de intervenção em saúde derivada diretamente das ideias lançadas em Alma Ata. No Brasil é também conhecida como Atenção Básica, tem na Estratégia de Saúde da Família sua representação operacional. Ela vem sendo implantada desde 1994 e alcança hoje cerca de 70% da população nacional, havendo consenso geral sobre as melhorias apreciáveis por ela produzidas, como, por exemplo, nas reduções das hospitalizações, no decréscimo da mortalidade por algumas condições, além da melhoria de muitos indicadores de saúde.

Estratégia Saúde da Família (ESF) visa à reorganização da atenção básica no Brasil, de acordo com os preceitos do Sistema Único de Saúde, representando assim um processo de expansão, qualificação e consolidação que favorece a reorientação do processo de trabalho, amplia a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade. Ela tem como aspecto essencial uma equipe multiprofissional composta por, no mínimo: médico e enfermeiro generalista; auxiliar ou técnico de enfermagem, além de agentes comunitários de saúde. Tal equipe pode ser acrescentada de profissionais de Saúde Bucal: cirurgião-dentista generalista, auxiliar e/ou técnico.

Cada equipe deve ser responsável por, no máximo, 4.000 pessoas, sendo a média recomendada de 3.000 pessoas, respeitando critérios de equidade para essa definição, recomendando-se que tal número de pessoas por equipe considere o grau de vulnerabilidade das famílias do território.

Uma APS de qualidade deve conter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de complexidade alta e baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território (que podem chegar a 90% do total).

Na APS verdadeira, a atenção à saúde é oferecida tanto a condições agudas como crônicas, no âmbito de uma rede de atenção, com objetivos definidos de melhoria da saúde da população, com resultados clínicos e econômicos aferidos e, além do mais, tendo uma população sob sua responsabilidade, estratificada por grupos de risco, com os pacientes considerados não como entes passivos, mas como corresponsáveis pelo tratamento. Seu modo de operação é acima de tudo proativo e contínuo, baseado em planos de cuidados individualizados mediante ajuste entre profissionais e usuários, com práticas de busca ativa. As intervenções se abrem em caminhos de promoção, prevenção e cura, além de reabilitadoras e paliativas. Leva-se em consideração os determinantes sociais da saúde e da doença, resultando em ações integradas, com estratificação dos riscos e territórios sanitários definidos pelos fluxos sanitários da população que busca atenção.

Os Determinantes Sociais em Saúde

Determinantes Sociais da Saúde (DSS) são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. Isso inclui fatores diversos, tais como renda, educação, emprego, desenvolvimento infantil, cultura, gênero e condições ambientais. Está implícita a ideia de que pessoas e famílias em boa situação socioeconômica ou com bom acesso à educação têm menor risco de adquirirem ou serem afetados por doenças, devido ao maior conhecimento e acesso aos meios pelo qual as doenças podem ser tratadas.

Existem diversos modelos para esquematizar os DSS, sendo o mais usual aquele desenvolvido por Dahlgren e Whitehead, através da OMS, que discrimina diferentes camadas, desde uma camada mais próxima considerando as características individuais e a camada mais distal, apresentando os chamados macrodeterminantes. Em tal modelo as camadas se apresentam, sucessivamente, como: (a) idade, sexo e fatores hereditários; (b) estilos de vida; redes sociais e comunitárias; (c) condições de vida, de trabalho, educação, saneamento, alimentação, habitação e acesso ao serviço de saúde; (d) condições socieconômicas, culturais e ambientais gerais.

Conceitos de saúde e doença: uma síntese evolutiva

Como se viu, os conceitos relativos à saúde e à doença mudaram substancialmente ao longo da história da humanidade.

Recuperando tal trajetória em linhas bem gerais, chama a atenção o progressivo domínio histórico de uma racionalidade objetiva, deslocando o foco explicativo da esfera das divindades ou dos fenômenos sobrenaturais, ou naturais, em geral, para chegar finalmente ao campo dos agentes patogênicos biológicos, físicos ou químicos, para não falar da compreensão dos mecanismos de funcionamento da mente humana, cujo aprofundamento tornou-se possível dentro do contexto da revolução científica, a partir de meados de século 19.

Da mesma forma, é nítida a relação que tal evolução conceitual tem com o processo civilizatório em geral, fazendo com que as conquistas da capacidade racional humana através das ciências se mobilizassem de forma a conduzir o pensamento sobre Saúde e Doença em direção não só à cura e prevenção, mas também a intervenções de melhoria das condições de existência das pessoas e dos grupos humanos.

A instauração de uma era do homo economicus, no século 18, introduz no cenário uma relação que não mais será desfeita, entre a Saúde e a Economia, estabelecendo uma ponte duradoura e ainda íntegra, entre a medicina e a ação política, correspondendo à criação da nova disciplinadaSaúde Pública e das profissões correspondentes.

Em tal panorama surge a Epidemiologia como ciência auxiliar da medicina e das profissões de saúde em geral, associando agora ao cenário as contribuições das matemáticas e da geografia, até então totalmente estranhas a ele.

Um salto qualitativo no pensamento então se impõe, movendo definitivamente a discussão do foco individual ao coletivo na interpretação do fenômeno da Saúde e Doença. O campo da Saúde perpassa, desde então, aquele de diversas políticas, que adquirem, como fator diferencial, o caráter de tentarem ser também “políticas saudáveis”, em sua denominação contemporânea, mas que na verdade marca uma guinada qualitativa nas mesmas. Tal é o caso das intervenções públicas no saneamento, básico, nas vias de transporte, nas moradias, na distribuição de alimentos, nos medicamentos de interesse coletivo etc. É verdade que nem tudo posto em cena sem alguma carga de autoritarismo e seletividade vertical em termos de necessidades reais das pessoas.

Valoriza-se, assim, embora de forma progressiva e não linear, pelo menos em seus primórdios, a concepção de uma determinação social dos processos de adoecimento, abrindo caminho para uma desejável e progressiva ação interprofissional e intersetorial em saúde, com toda uma linha de pensamento aberta sobre isso.

Decorrência visível é a verdadeira quebra da hegemonia médica na condução dos processos de cura e reabilitação, como os médicos passando à condição de trabalhadores sociais, formando um conjunto com muitos outros e o crescimento expressivo do conceito e também da prática de trabalho em equipe, com incorporação de numerosos novos praticantes e também da incorporação dos próprios pacientes, através de processos de autoajuda e autocura.

CONCEITOS DE SAÚDE E DOENÇA E SEUS DESDOBRAMENTOS NA ORGANIZAÇÃO DOS CUIDADOS À SAÚDE

Uma breve história dos Sistemas de Saúde

A organização dos cuidados à saúde da população, sob a forma de sistemas racionais conduzidos pela ação estatal é relativamente nova na história da humanidade, correspondendo seu desencadeamento ao pensamento iluminista europeu do século 19. Neste período se destacam as propostas de uma polícia medica, na Alemanha; na medicina urbana de matriz francesa, além do sanitarismo inglês. Longe de qualquer um desses modelos apenas a proteção dos desvalidos. Ao contrário, deve ser considerada a sua vinculação aos mecanismos de controle necessários ao fortalecimento do capitalismo nascente sobre sua força de trabalho, para que esta adoecesse menos e gerasse mais lucros, além de contê-la em seu ímpeto reivindicatório.

As diversas ações pontuais e ligadas seja ao interesse corporativo ou de solidariedade social, vão dar lugar a reforma importantes do sistema de saúde, com foco especial na Inglaterra, onde já nas décadas iniciais do século 20 já se forma um corpo teórico que vai desaguar nos sistemas de saúde regionalizados, hierarquizados e sob gestão estatal, entre os quais se incluem, de forma inaugural os Serviços Nacionais de Saúde (NHS) do Reino Unido, o próprio SUS no Brasil, além de outros semelhantes em vários países.  

A noção de Direito à Saúde é também recente no panorama da história dos conceitos de saúde e doença. Com efeito, na Antiguidade e mesmo em boa parte da Idade Moderna, a saúde era considerada como concessão ou favorecimento, particularmente aos mais pobres, seja a partir dos governos, das corporações capitalistas ou religiosas, mas não como direito. Ela nasce junto com a noção de cidadania. Esta, segundo seu estudioso referencial Marshall, estaria associada com o conceito de participação na vida comunitária e seria a decorrência de uma herança social inerente aos membros da sociedade. Marshall era inglês e se debruçou sobre a história da formação social de seu país, procurando, entretanto, trilhar um caminho diferente daquele percorrido pelos seus ancestrais intelectuais economicistas. Para ele, as bases de tal conceito estão fundadas em: cidadania civil (direitos necessários à liberdade individual, originada no século XVIII); cidadania política (direito de participar no exercício do poder político, característica marcante do século XIX)e cidadania social (admissão a um mínimo de bem estar econômico, cultural e de serviços sociais, configurada apenas no século XX).

É dentro de tal contexto, que se coloca a noção de Direito em Saúde, representando um tópico fundamental da legislação do SUS.

Mercado x Estado x Sociedade: antes que vigorasse um verdadeiro estatuto de cidadania, os mais pobres, eram estigmatizados e não tratados como verdadeiros cidadãos. Na sociedade capitalista primordial, a riqueza se constituía em prova de mérito, cabendo, todavia, evitar pobreza excessiva, ameaçadora aos mais ricos. A cidadania significava bem mais do que uma concessão mas, antes, um atributo funcional para a sociedade, indispensável para a constituição de um mercado competitivo, no âmbito de um sentimento de comunidade e um patrimônio comum. Assim se constituem as instituições de proteção social ao longo.

O caso da saúde tem suas particularidades, com uma primeira ondade reformas, com um modelo dito beverigdgeano baseado no financiamento por fundos  públicos fiscais e de direito universal se antepondo ao modelo bismarckiano, baseado em seguro e pagamento compartilhado entre sociedade e Estado, com acesso condicionado pela condição de emprego e mérito. Um terceiro modelo, dito de mercado, também ocorre, tendo como características principais a organização a partir das capacidades de compra e consumo de seus usuários (cidadãos-consumidores) ou das empresas às quais estes estão vinculados – este é o padrão que vigora, ainda hoje, nos EUA e no Japão.

Nenhum desses modelos tem primazia absoluta em qualquer país do mundo, vigorando uma combinação entre eles. O que se verifica, então, é uma tensão entre a ação do Estado e a força do Mercado. Em alguns, como os EUA e o Japão, o modelo de mercado domina. No Canadá e na Inglaterra, por exemplo, embora o sistema seja misto, o predomínio é beveridgeano, ou seja com forte presença estatal. No Brasil se tem o SUS de corte essencialmente beveridgeano e regulado pelo Estado, porém imerso em um ambiente misto nos quais os planos de saúde (a la Bismarck) possuem grande poderio.

Saúde e Participação Social

Segundo Norberto Bobbio, em sua obra A era dos direitos, depois de uma primeira geração de direitos individuais (liberdade, igualdade), veio uma segunda, de direitos coletivos (educação, saúde, por exemplo). Vigoraria atualmente uma terceira geração, baseada em igualdade, solidariedade e mesmo participação decisória nas políticas públicas, embora tais quesitos não possam ser absolutos ou imutáveis, sendo, ao contrário, permanentemente transformados. Assim, não seria apenas a criação de direitos que importa, mas a necessidade de que sejam protegidos, ao variarem entre as sociedades humanas.

Tal discussão tem tudo a ver com o que os juristas chamam de fatos jurídicos, contrapostos aos fatos sociais. Isso diz respeito também à participação social, além da própria noção de Direito à Saúde. A participação em saúde, que consta da Constituição Federal brasileira representa, basicamente, um fato jurídico, em possível transição para um dia se transformar em fato social concreto.

Esta noção faz parte do repertório de política sociais do Século 20, afetando não só a área pública como a empresarial. São muitos os avanços obtidos, mas todo o cenário deve ser considerado como ainda em formação.

Valor em saúde

Faz parte do atual repertório de inovações em saúde o conceito de “saúde baseada em valor”, ou seja, um modelo de prestação de cuidados de saúde no qual os prestadores, incluindo as instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são remunerados ou de alguma forma incentivados na busca de resultados proporcionados aos pacientes, e não apenas em termos de quantidades, seja de consultas, de internações, de procedimentos ou custos. Caberia, assim, recompensar àqueles que prestam os serviços pelo que entregam após pacientes, no sentido de melhorar sua saúde, reduzir a incidência e os efeitos das doenças crônicas, viver vidas mais saudáveis, enfim.

Tal noção de valor deriva, então, da mensuração de resultados em saúde, relativos aos custos que correspondem aos mesmos, seja para o sistema de saúde, prestadores, trabalhadores, financiadores e, principalmente, para a sociedade e para os pacientes em geral.  Entre as noções associadas então eficiência, controle de custos, transparência, redução de riscos, definição de indicadores, personalização de cuidados, adequação de tecnologias, trabalho em equipe, responsabilização, compartilhamento de informações, coordenação do cuidado, entre outras. Em termos de remuneração individual ou coletiva, isso traria pagamentos por performance, dentro de uma cadeia de desempenho e voltada para a melhoria dos resultados e dos processos associados à relação entre financiamento e prestação de serviços. Tal conceito pode ser aplicado tanto à remuneração de trabalhadores de saúde, de conformidade com resultados alcançados, como na orientação de contratos entre entes públicos e privados.

Existem, todavia, alguns desafios para que uma coisa assim se concretize, de natureza cultural, política e institucional, tais como a relativa intolerância dos sindicatos face à associação de salários a desempenho ou produtividade; a aceitação de processos de avaliação de desempenho associada a negociação coletiva de salários, ainda mais se diferenciados por categoria; a métrica a ser utilizada na definição dos indicadores de resultado e o cálculo de sua factibilidade relativos ao que medir, por que medir, quem vai medir, quando e como; a própria definição dos contratos entre governos, unidades de saúde e seus trabalhadores. Mas se trata de um caminho que já começou a ser trilhado em toda parte.

Novos intérpretes do processo de saúde e doença

Há muitos pensadores ocupados deste campo na atualidade, rompendo a antiga imagem de que a saúde e suas profissões estariam obrigatoriamente voltadas para o bem estar das pessoas. Será tomado aqui como exemplo dessa nova tendência o trabalho do padre jesuíta Ivan Ilich, já nos anos 70 do século 20, que chamou atenção para o que denominou de medicalização da sociedade, ou seja, a influência cada vez mais forte da medicina em campos que antes lhe eram estranhos ou distantes. Isso fez com que o alcance da ação médica fosse ampliado, para além da ação direta sobre as doenças, fazendo com que aspectos inerentes à vida humana fossem considerados e sofressem intervenções como patologias ou algo fora do espectro do que seria considerado normal ou aceitável.

Em contrapartida Ilich propõe a promoção de autonomia e respeito às diferenças, fragilizadas pelo processo de medicalização. Um exemplo disso, entre outros, é o caso da luta feminina pelos partos domiciliares e não-cirúrgicos, vigente inclusive no Brasil. Atualmente existem incentivos oficiais, inclusive no Brasil, a políticas com uma visão ampliada de saúde, estimulando os pacientes a assumirem responsabilidades por sua saúde, além da possível contenção de custos.

Enfim, a percepção individual do corpo tem como fatores a aceitação pessoal, a autoestima, o julgamento crítico e a cultura, entre outras variáveis. O fato de alguém se sentir saudável ou doente transcende uma definição taxativa ou terminológica dos médicos ou dos serviços de saúde. Ao contrário, são os contextos histórico, social e econômico que interferem decisivamente no modo como os indivíduos lidam com o processo saúde-doença. Como lembrou Illich, nos tempos atuais se é paciente desde a vida pré-uterina, com os gametas manipulados em clínicas de fertilização, até após a morte, nos procedimentos de doação de órgãos, por exemplo.

A questão central assim é a seguinte: o indivíduo, como resultado de uma interseção bio-psico-social e espiritual merece ser percebido de modo holístico e complexo, exigindo permanente esforço para não se transformar em instrumento manipulado por diversos interesses e pressões sociais e midiáticas, evitando – embora em vão – o fim inexorável, ao custo que lhe for imposto de fora.

Um cenário de transições

Mas não é só. Os cenários demográficos, epidemiológicos, culturais e políticos também passam por profundas transformações nos tempos atuais. 

Assim, do ponto de vista demográfico, ou seja, das mudanças no perfil das populações, é clara a tendência, observada na maioria dos países, para uma população com indivíduos idosos em proporções crescentes, com diminuição da participação dos jovens e, ainda, o desenvolvimento de uma nova estrutura familiar, marcada pelos novos papéis da mulher na sociedade e no mercado de trabalho, bem como pela existência de mais e mais pessoas que já se retiraram da vida produtiva e que necessitam de estruturas sociais e de um sistema de saúde que respondam às necessidades especiais próprias de sua condição de idosos.

Por outro lado, quanto aos aspectos da transição epidemiológica, ou seja, da mudança do perfil das doenças hoje amplamente reconhecida e discutida, constata-se o acúmulo das doenças crônicas e degenerativas; a reemergência ou o permanecimento de doenças endêmicas, tais como a dengue e a malária; a situação da epidemia de AIDS, ainda em alta e sem evidência de controle no curto prazo e, ainda, a alta prevalência das diversas condições de doença derivadas dos estilos de vida insalubres (fumo, vida sedentária, por exemplo) ou resultantes da interação predatória entre o homem e o meio ambiente.

Se não bastassem os problemas derivados do processo de transição demográfica e epidemiológica, como vistos acima, os desafios aos sistemas de saúde tornam-se ainda mais complexos e problemáticos devido aos obstáculos políticos e institucionais ainda existentes nos países mais pobres (e mesmo entre os mais ricos). Tais dificuldade são caracterizadas pela conjunção de fatores negativos variados, tais como a carência de recursos financeiros e, a conseqüente  disputa acirrada pelos mesmos; a elevação progressiva dos custos dos serviços médicos, em boa parte, fruto da incorporação desmedida de tecnologia de alto custos; a cultura de hospitalização tão difundida e praticada nos sistemas de saúde; a existência de um quadro profissional limitado e pouco adequado, seja do ponto de vista qualitativo ou quantitativo em relação às necessidades da população, entre outros.

Tais cenários, no contexto brasileiro, nos levam a refletir sobre a necessidade de uma adequação dos objetivos institucionais do sistema de saúde e das funções e papéis que os profissionais de saúde terão que desenvolver nesse contexto de mudanças e ajustes. Assim, alguns aspectos tópicos que se esperam das estruturas de saúde de modo geral, incluem, por exemplo, a ampliação dos ambientes organizacionais, das jornadas de trabalho e das estratégias de atendimento, incentivando-se, por exemplo, como já vem acontecendo em alguns países, inclusive no Brasil, o cuidado domiciliar, além do incremento qualitativo dos processos de captação das necessidades sociais e sua tradução em ações de saúde, resposta que já vem sendo dada, também em nosso país, pela introdução oportuna da Estratégia de Saúde da Família.

O FUTURO DA SAÚDE

Uma boa questão para iniciar o tema seria: de que adoeceremos e morreremos no século que se inicia? Estudos baseados em novas metodologias de pesquisa epidemiológica, denominadas carga global de doença mostram alguns dados interessantes, ao fornecerem uma estimativa de cenários futuros para as doenças de hoje. Assim, demostram que para os próximos anos o grupo de enfermidades relacionadas ao subdesenvolvimento, que engloba aquelas de natureza transmissível, as doenças ligadas à maternidade, ao período perinatal e também as carências nutricionais, controláveis por medidas de proteção específicas ou promoção de hábitos saudáveis – todas estas têm perspectivas otimistas para a sua redução, embora com grandes diferenças entre as diversas regiões do planeta. Por outro lado, no que se refere as doenças não transmissíveis de natureza crônica e degenerativa, como é o caso das doenças cardíacas, vasculares, diabetes e câncer, bem como para aquelas decorrentes de lesões por acidentes, traumatismos e outras formas de violência individual e social, a tendência é nitidamente de incremento.

Frente a essa nova realidade no panorama das doenças que afetam a humanidade, torna-se necessário pensar de novo o quadro de profissionais, de práticas e de sistemas de saúde que dispomos, para adequá-los às novas exigências humanas, técnicas e científicas. É certo que a nova realidade exigirá profissionais de saúdecom formação mais complexa e ampla, com visão e prática social de promoção da saúde e maior qualificação e capacidade de responder ás múltiplas demandas geradas pela transição do padrão de doenças. Além disso, pode ser antecipada a necessidade cada vez maior de incorporação e ampliação dos quadros de novos profissionais no campo da saúde e entre estes podem ser citados alguns já tradicionais, tais como nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, mas também outros, como uma vasta gama de praticantes de outras habilidades no campo social e da saúde, como os terapeutas de família, cuidadores domiciliares, terapeutas de várias especialidades e até mesmo pessoas das próprias famílias a serem colocadas no papel de cuidadores (mães, mulheres em geral, irmãos mais velhos) – treinados para tanto. Enfim, gente que trabalhe com uma visão mais ampliada não só de assistência, mas principalmente de promoção da saúde. É fundamental que estes profissionais para o século XXI entendam e pratiquem ações de saúde que incluam aspectos culturais, sociais e, fundamentalmente, compreensão e promoção de estilos de vida saudáveis para aqueles que buscam a atenção à saúde.

É possível, portanto, fazer uma estimativa a respeito daquilo que trará doença e morte ao longo do século XXI, conforme explicitado a seguir:

  • Os dados sobre doenças psiquiátricas têm sido subestimadas nas estatísticas de saúde.
  • As desigualdades entre as regiões pobres e ricas do mundo são imensas e não se reduzirão substancialmente, mesmo no caso das doenças crônicas e degenerativas, consideradas, indevidamente, como decorrência do “desenvolvimento” das sociedades.
  • O uso do fumo continuará contribuindo para a morte de mais pessoas do que qualquer outra doença, inclusive AIDS.
  • Embora a maioria das doenças transmissíveis em geral apresentem tendência à redução, o mesmo não vem ocorrendo com a tuberculose.
  • Sexo não seguro continuará sendo um grande fator de risco para o futuro, principalmente nas regiões mais pobres.
  • A expectativa de vida crescerá, no entanto os homens continuarão com níveis mais baixos que as mulheres, sem que isso signifique que viver mais seja viver com mais saúde.
  • Continuarão como temas centrais da agenda da saúde como grandes fatores de riscos para a humanidade: a desnutrição, a falta de saneamento básico, o sexo não seguro, o uso do tabaco, o stress, a violência urbana, além de fatores ligados ao processo de trabalho.

A partir dos cenários de doenças e de mudanças do perfil populacional, mas também das transformações que estão ocorrendo nas próprias instituições de saúde, podem ser previstas, também, algumas implicações para a práticas dos profissionais de saúde, bem como para a estrutura dos sistemas de saúde como um todo, configurando, assim, a necessidade de reais modelos inovadores de prestação de cuidados, nos quais diversas tendências já se mostram, a saber:

  • Mudança de enfoque dos cuidados, basicamente de doença agudas em jovens para doenças crônicas em idosos;
  • Deslocamento do objeto das práticas, ou seja, de indivíduos para famílias, de cura para prevenção e o enfoque da promoção da saúde;
  • Desenvolvimento de novas abordagens voltadas para hábitos e estilos de vida;
  • Novas concepções e práticas educativas, com especial ênfase no papel feminino, buscando o auto-cuidado e apoio ao grupo familiar;
  • Necessidade de capacitação de provedores de cuidados na própria família, com especial ênfase no cuidado ao idoso, à maternidade e ao período perinatal;
  • Ênfase na ação social (além da ação sanitária), visando a preservação da estrutura familiar;
  • O desenvolvimento dessas ações em novos cenários: domicílios, locais de trabalho, creches, lares de idosos, etc., promovendo assim uma efetiva política de promoção da saúde.

Não ao “mais do mesmo”

Novas estruturas organizacionais terão que surgir em resposta à necessidade de se ter estruturas mais flexíveis nos órgãos gestores de saúde. Desta forma, os quadros profissionais terão que adaptar-se as normas e regras organizacionais dessas instituições responsáveis (ou responsabilizadas), que terão que prestar contas socialmente dos serviços prestados. Em outras palavras, isto constitui resultado da operacionalização de um conceito muito difundido nos sistemas de saúde atuais, que é a responsabilização (ou accountability), que inclui não apenas o controle social realizado nos Conselhos e Conferências como também as chamadas ouvidorias de saúde e outras inovações congêneres além de, acima de tudo, uma postura política de petição e prestação de contas, a ser exercida tanto pelos gestores como pelos Conselhos e sociedade organizada em geral.

A incorporação de novos agentes de saúde como por exemplo o incentivo ao papel da mulher como provedora de cuidados para a família, bem como outros, como monitores em saúde mental, terapeutas de família, além de outros profissionais alternativos certamente deverão ser dotados de mais ênfase do que foram até agora.

O trabalho programado, visando a atenção a grupos de risco, como estratégia de se obter a equidade deverá ser uma das tônicas dos novos sistemas. Assim, o estabelecimento de grupos-alvo para a atenção, como mulheres grávidas, crianças até seis anos e famílias de baixa renda deverão ocupar atenção especial dos tomadores de decisão em saúde. Da mesma forma, o desenvolvimento de estratégias e capacitação para atenção a idosos, adolescentes, desempregados, pessoas que vivem nas ruas, refugiados e outros grupos vulneráveis.

A ação inter-setorial, envolvendo educação, assistência social, judiciário, empregadores e a sociedade organizada em geral é outro aspecto a ser destacado. Neste campo se insere, ainda, o desenvolvimento de redes formais e informais de apoio. Clareza nas prioridades é fundamental: ações de promoção, prevenção e reabilitação face a problemas emergentes, tais como, violência doméstica, outras violências, órfãos da AIDS, doença mental, gravidez na adolescência e de alto risco, riscos ambientais, passam a ser considerados com uma ótica de compromisso de resultados.

Outro aspecto marcante dos novos sistemas de atenção à saúde deverá ser a criação de novos cenários para provisão dos cuidados (domicílios, locais de trabalho, etc.), com o conseqüente desenvolvimento de facilidades para desospitalização. Em tais estruturas, não seria demasiado insistir, a família passa a ter um papel diferenciado e estratégico. Em outras palavras, deve ser reconhecida como autêntica parceira do sistema oficial nos cuidados à saúde.

É fundamental, ainda, uma maior articulação entre os serviços de saúde e as «academias», ou seja, as universidades e as escolas formadoras de pessoal para a saúde. Tomado como exemplo, o processo de formação dos médicos na sociedade contemporânea se vê acuado por desafios imensos. As bases tecnológicas da prática, verdadeiro pilar da formação médica atual, enfrentam o dilema de produzirem pouco benefício para a maioria da sociedade, alijada que está do acesso aos mesmos, ou os recebendo apenas marginalmente. O apelo individualista, calcado na relação médico-paciente inspirada no juramento hipocrático e gerador de um modelo artesanal de prestação de serviços de indiscutível eficácia em épocas passadas, transformou-se em verdadeiro anacronismo. A medicina contemporânea é fortemente intermediada em termos institucionais, burocráticos e econômicos e as escolas médicas parecem não se dar conta de tal fato, realizando suas atividades docentes e assistenciais como se os tempos ainda fossem outros.

Trata-se de um panorama extremamente mutante, complexo, conflitivo, com soluções ainda mal vislumbradas no horizonte. Entretanto, não há motivo para se ser pessimista, principalmente se se acreditar nas possibilidades e oportunidades abertas pelo jogo das pressões, negociações e busca de consenso entre os atores sociais, entre eles, sem dúvida, as Conferências de Saúde e os outros organismos de representação de interesses coletivos hoje disponíveis. Apesar das dificuldades, o campo da saúde está aberto para mudanças, pela sua transcendência na existência de cada indivíduo e pelas implicações que possui na vida social.

Em suma: não basta mudar por mudar. Torna-se preciso fazê-lo com embasamento tecnológico, respaldo cultural, apoio político e material, além de aprendizado permanente a respeito do que já foi experimentado e deu (ou não deu) certo. Fazer mais do mesmo pode ser cômodo e isento de riscos, mas nem sempre que resolverá as questões derivadas das fortes demandas presentes e dos desafios da saúde, seja atual ou vindoura. 

*******

Sobre o SUS – YOU TUBE

Deixe um comentário