A frase acima é minha mesmo e há anos venho refletindo e acrescentando exemplos a ela. Isso porque na Saúde, juntamente com o Futebol, o senso comum, ou, se quiserem, as opiniões de gente que não compreende e domina de fato tais atividades, sejam mais frequentes – e além disso, equivocadas. Não estou querendo dizer que saúde é coisa só para médicos, enfermeiros e outros profissionais. Nada disso! O que pretendo defender aqui e agora é que Saúde é algo que ultrapassa – e muito! – tais campos profissionais, mas que ao mesmo tempo depende de conhecimento e de coerência, em oposição àquelas afirmativas sem pé nem cabeça que a gente ouve desde sempre e por todo lado. Vox populi, vox dei, já diziam os antigos romanos (devem ter sido eles mesmos…), mas trocar Deus (ou a Ciência) pelo que diz o homem-da-rua, assim, tão simplesmente, sem maiores considerações e intermediações, é algo arriscado e que tem gerado muito mal entendido por aí. Os políticos, por exemplo, adoram repetir essas coisas e mesmo fazer delas suas plataformas eleitorais. Ter informação adequada é tudo – e nem todo mundo a tem! Dito isso, vai nas linhas seguintes uma série de afirmativas ao gosto do famigerado senso comum, que até pode ser coisa respeitável por um lado, mas por outro, não muito confiável em determinadas circunstâncias. Como tentarei demonstrar nos comentários a seguir, sob a forma de decálogo (que poderia contar, entretanto, com muitos outros tópicos).
O TRATAMENTO CORRETO DE UMA DOENÇA COMEÇA COM UM DIAGNÓSTICO PRECISO E AMPARADO CIENTIFICAMENTE.
· Bons diagnósticos com amparo científico são de fato relevantes nos serviços de saúde. Mas o que não se pode esquecer é que muitas vezes, principalmente nos serviços de porta de entrada, o que traz as pessoas à consulta não são doenças com perfil, digamos, diagnosticável, mas sim estados complexos que envolvem corpo e mente, nos quais muitas vezes os exames diretos e laboratoriais não mostram absolutamente nada, desafiando os médicos em sua busca frenética por uma confirmação laboratorial ou clínica, que simplesmente não se torna possível. É que as pessoas ali comparecem, muitas delas reiteradamente, por uma combinação de fatores socias, psíquicos, familiares, existenciais, ambientais – em outras palavras: por sofrimento. E isso os profissionais de saúde não conseguem tratar adequadamente e nem mesmo identificar sua causalidade, que está ligada condições de vida precárias, envolvendo renda, trabalho, alimentação, moradia, transporte. Em outras palavras, o tal “tratamento correto” – se é que isso existe – está totalmente fora da governabilidade dos serviços de saúde e o foco habitual destes deve ser mudado.
O MÉDICO SEMPRE DEVE SEMPRE SER OUVIDO E DETER PRIMAZIA NO TRATAMENTO DAS DOENÇAS.
· Podemos mudar a frase: o médico deve fazer sempre parte de uma equipe de saúde. Não deve haver nenhuma primazia, desta ou daquela profissão, mas sim distribuição de tarefas. O médico tem sua função ampliada e melhorada quando tem a seu lado enfermeiros, farmacêuticos, nutricionistas, odontólogos, assistentes sociais. A Enfermagem, por exemplo, ainda não exerce todos os papéis que lhe caberiam em tal equipe, na qual muitas vezes deveria assumir real liderança. De tal forma funcionarão os sistemas de saúde do futuro. Aliás, já é isso que ocorre em muitos países do mundo, mais avançados do que o nosso em questões de gestão da saúde e no próprio estado de saúde da população.
A DELEGAÇÃO DE TAREFAS DE CUIDADO AOS PACIENTES É ARRISCADA E REPRESENTA UMA FUGA DE RESPONSABILIDADES POR PARTE DOS MÉDICOS.
· Ledo engano, a promoção do autocuidado é hoje uma tendência universal. Ele deve ser tratado com seriedade e informação específica. O principal responsável pela saúde de alguém não é o médico, mas a própria pessoa, doente ou por adoecer. Isso não significa liberalidade, por exemplo, em relação à automedicação. Autocuidado é muito mais do que isso: é informação adequada, monitoramento, vinculação, comunicação interpessoal, respeito ao outro, negociação, responsabilização, trabalho em equipe. Significa também o uso ampliado de tecnologias de informação, como o celular e a internet.
DA MESMA FORMA, A TRANSFERÊNCIA DE RESPONSABILIDADES A PESSOAS LEIGAS OU QUE NÃO FIZERAM CURSOS ESPECÍFICOS NA ÁREA DA SAÚDE.
· O que foi dito acima se aplica diretamente a este tópico. Isso é também uma tendência universal, a ser conduzida de forma séria, programada e mediante informação específica. Trata-se de estratégia aplicada principalmente a idosos, mas também a pacientes acamados, deficientes, portadores de necessidades especiais e de condições crônicas em geral, crianças pequenas e outros pacientes. Entre os novos praticantes, a serem devidamente treinados e supervisionados pelas equipes de saúde, com destaque especial para o papel da Enfermagem, estão os familiares, as mulheres especialmente; os vizinhos, os irmãos mais velhos, os usuários de redes sociais (decentes), além de outros. Não confundir com a inclusão de mão de obra barata no sistema de saúde. Há responsabilidades em curso, não só dos cuidadores como de quem os supervisiona.
AS HORTAS DE PLANTAS MEDICINAIS DEVERIAM SER IMPLANTADAS EM TODOS OS SERVIÇOS DE SAÚDE, POR REPRESENTAREM UMA ALTERNATIVA EFICAZ E BARATA AOS MEDICAMENTOS QUE SE COMPRA EM FARMÁCIAS.
· Vamos combinar: fitoterapia é bom e é útil, mas precisa ser utilizada com cautela e mediante normas cientificamente testadas. A famosa horta de chazinhos que alguns preconizam como parte da estrutura das unidades de saúde deve ser considerada o mais das vezes como coadjuvante nos tratamentos farmacológicos, mas não como o principal recurso. No limite, isso poderia significar que aos mais pobres ficam destinadas as tais hortas e aos mais ricos o tratamento mais eficaz, consagrado pela farmacologia científica. Muitas plantas, de fato, trouxeram ao longo da história da humanidade contribuições fundamentais para a farmacologia científica. Mas é bom lembrar que a identificação e purificação de extratos vegetais realmente eficazes é processo que geralmente tem alto custo em termos de recursos e tempo. Tal situação pode, entretanto, ser relativizada nas intervenções não-farmacológicas, como chás, banhos, alimentação, exercícios, interações afetivas, massagens etc.
UMA BOA EQUIPE DE SAÚDE DEVE TER O MÉDICO NA LIDERANÇA E UM BOM NÚMERO DE PARAMÉDICOS PARA AUXILIÁ-LO EM SUAS TAREFAS.
· Isso já foi, de certa forma, comentado acima. Mas cabe lembrar dois aspectos fundamentais. Primeiro, a expressão “paramédicos” deve ser totalmente banida, pois rebaixa e esvazia as tarefas de outros membros importantes da equipe de saúde, particularmente a Enfermagem. Segundo, a “liderança’ do médico deve ser relativizada, pois em muitas situações isso é mais um atributo de enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais, preparadores físicos, além de outros profissionais. Há que desmistificar a essencialidade do trabalho médico na recuperação e na cura de pacientes, de forma a colocar em relevo a importância do trabalho em equipe e da especificidade de outros profissionais.
BONS MÉDICOS SÃO AQUELES FORMADOS EM BONS HOSPITAIS.
· Bons médicos são aqueles formados em faculdades de medicina nas quais a frequência em hospitais é equilibrada com aquela realizada em unidades ambulatoriais. Onde os professores são qualificados para ensinar, mais que especialidades, a medicina generalista. Onde os serviços por onde passam os alunos sejam diretamente ligados ao SUS. Onde o ensino clínico é contrabalançado por conteúdos em ciências da mente, da sociedade, da epidemiologia e da ética. Onde a responsabilidade por territórios assistenciais seja definida e assumida por dirigentes, docentes e alunos. Onde o foco da atenção seja o paciente, em sua natureza integral, e não aquele repartido em órgãos, sistemas e especialidades. Onde a clientela seja atendida no âmbito das noções de direito e valor e não apenas de mérito adquirido no mercado. Onde direito à saúde, hierarquização, assistencial, regionalização, responsabilidade sanitária, formação de redes e participação não sejam apenas ditos retóricos, mas práticas com as quais os alunos conviverão e absorverão no dia a dia de sua formação.
A SAÚDE DEVE SER SEMPRE DE RESPONSABILIDADE MUNICIPAL (OU SEU CONTRÁRIO: A SAÚDE DEVE SER SEMPRE DE RESPONSABILIDADE DOS NÍVEIS ESTADUAL E FEDERAL DE GOVERNO).
· Nem tanto ao mar, nem tanto à terra… Uma das reais dificuldades de nosso sistema de saúde é a de conviver com a ideia messiânica de que todos os municípios iguais entre si e as relações federativas equilibradas. Não o são. Há necessidade de aperfeiçoamento do atual sistema, sem dúvida, mas isso não autoriza a ninguém defender que a melhor organização do sistema de saúde é aquela totalmente descentralizada ou, ao contrário, operada apenas a partir do nível federal, na Capital da República. Mais importante do que a federalização ou a municipalização radical é a organização da rede de serviços em instâncias diferenciadas, que devem passar a incluir também um nível regional de serviços, com poder efetivo de comando, coisa que o sistema político e jurídico brasileiro ainda não foi capaz de desenvolver.
A INICIATIVA PRIVADA É MAIS EFICIENTE DO QUE O ESTADO PARA GARANTIR A SAÚDE DA POPULAÇÃO.
· Quanto a isso é fácil argumentar. Não é preciso ir muito longe. Imaginemos o setor privado brasileiro responsável, por exemplo, por vacinas, tratamento da AIDS, transplantes, controle de endemias, fiscalização de farmácias e regulação de fármacos. Tudo isso quem faz é o sistema público, que apesar de tudo teve bom desempenho não só em tais ações como especialmente na recente pandemia de Covid. Imagine-se, também, a capacidade de o sistema privado dos planos de saúde sobreviver sem as isenções fiscais de que usufrui, inclusive alcançando seu público contratante. Além do mais, as queixas de usuários a respeito do atendimento não diferem muito entre o SUS e os sistema de Planos de Saúde. Os dois precisam de correções, portanto, mas só o sistema público garante, bem ou mal, a cobertura aos 80% da população que somente se utiliza e depende dele.
O SUS É UM PROBLEMA SEM SOLUÇÃO, TEM QUE SER EXTINTO E CRIADO DE NOVO, DENTRO DE OUTRA LÓGICA.
· Mais um engano total e radical. O SUS não é um problema sem solução, mas sim uma solução ainda acumulada de problemas. E estes problemas são, em linhas gerais, ligados ao financiamento insuficiente, à cupidez dos políticos, à baixa informação da população a respeito da própria organização do sistema e de seus direitos, bem como a uma cultura difundida no Brasil de que o que é público ou estatal não presta.
Enfim, é preciso não confundir senso comum com bom senso. Uma coisa é uma coisa e outra, outra. O ideal seria combinar as duas visões, mas em caso de dúvida o que deveria valer é o velho e acreditado bom senso. Por exemplo, o de se observar a realidade a partir de diferentes pontos e vista e estratégias de solução. Na saúde, aqui tomada como exemplo, as soluções assumidas pelos os países mais adiantados , que valem, aliás, não só para tal campo e com as quais obtiveram bons resultados, deveriam nos servir de modelo, ao invés de ficarmos inventando a roda ou apelando a um suposto bom senso carente de fundamentação, que não faz sentido e nem é adequado.
No próximo sábado tem mais.
***

