No SUS a questão não é apenas municipalizar, mas principalmente criar bases regionais

A Regionalização da Saúde é um princípio organizativo do Sistema Único de Saúde (SUS) para a oferta de recursos e serviços de saúde, visando organizá-los de maneira hierarquizada e integrada, considerando as características demográficas, epidemiológicas e socioeconômicas de cada região. No discurso está perfeito, mas a realidade ainda mostra um campo nebuloso quanto a isso. Reporto-me aqui a um estudo conduzido pelo IEPS – Instituto de Estudos em Políticas de Saúde (link ao final), no qual foram levantadas e analisadas as opiniões de especialistas sobre a orientação atual da política de regionalização no SUS, buscando propor inovações nos mecanismos interfederativos de interlocução e governança. O grupo de atores entrevistados foi formado por gestores e ex-gestores de saúde, públicos e privados, acadêmicos, políticos e especialistas. Orgulhosamente, fui um dos convidados a tal colóquio, na condição de ex-gestor e estudioso do assunto. Da análise das respostas, emerge um quadro difuso de insatisfação com as normas que atualmente regulam a regionalização do SUS e com seus resultados, conforme o resumo a seguir demonstra. Um recente estudo sobre o tema mostrou que as mudanças nos fluxos assistenciais observadas nas últimas duas décadas não podem ser atribuídas exclusivamente a medidas normativas do Ministério da Saúde, mas que possivelmente estejam associadas a outras variáveis, como a expansão da rede viária e o crescimento econômico. A relevante produção acadêmica sobre o processo de regionalização do SUS em geral destaca a insuficiência do modelo atual e ressalta a atenção sobre este tema, com forte consenso sobre alguns desafios, tais como: (1) As normas federais do SUS sobre regionalização não obtiveram os resultados esperados e há necessidade de revisão dos mecanismos de descentralização; (2) Faltam recursos e modelos de financiamento para impulsionar a regionalização; (3) Persistem grandes brechas de oferta e desigualdades de acesso aos serviços de atenção à saúde, que inviabiliza a regionalização real; (4) As Secretarias Estaduais de Saúde não estão suficientemente preparadas para conduzir a regionalização; (5) Existem frequentes dificuldades de gestão de serviços assistenciais nos municípios, especialmente nos de pequeno porte.

Foram identificados, também, consensos sobre problemas específicos, por exemplo em relação à fragmentação e perda de escala no SUS, devido à uma descentralização excessiva, ou não adequadamente organizada; o fato de a gestão estadual não assumir o protagonismo necessário como indutora do processo de regionalização; a relativa fragilidade nos atuais mecanismos de pactuação regional do SUS; a insuficiente a capacitação técnica das equipes nas gestões municipal e estadual para conduzir a regionalização.

Quando consultados sobre a necessidade de introduzir mudanças na normativa atual, os entrevistados apresentaram posições divergentes, por exemplo de que um grupo deles acreditar que os problemas podem ser equacionados com os mecanismos de pactuação atualmente em vigor no SUS e de acordo com essa visão, as soluções residem na área técnico-administrativa, mediante novas normas federais, treinamento, tecnologia de informação e comunicação , enquanto medidas mais radicais poderiam ameaçar a autonomia municipal. Por outro lado, se considera necessária uma revisão radical das normas que regulam as relações interfederativas e se recomenda uma abordagem mais aberta, atenta às relações e alianças com os atores loco-regionais, criando regiões de saúde com maior poder de decisão e responsabilidades de gestão dos serviços.

Os entrevistados foram também consultados sobre algumas propostas inovadoras para o enfrentamento dos principais desafios de regionalização, sendo que a maioria deles considerou positiva a proposta de criação de uma Secretaria Executiva da CIR (Comissão Intergestores Regional), para exercer a função de Autoridade Sanitária Regional, com apoio e coordenação da SES. Houve, contudo, divergências sobre o rol de funções e o nível de autonomia desta entidade, bem como dúvidas sobre a sua real eficácia, pela falta de opções de financiamento adequadas, além de um marco legal e regulatório sólido. Foi manifestada ainda, de forma consensual, a proposta de criar um Fundo Regional de Saúde, para a gestão do financiamento e do custeio das ações e serviços de saúde da Atenção Primária à Saúde (APS) e da Média e Alta Complexidade, sendo que a maioria considera que tal fundo deveria ser gerido pela própria CIR. Outra proposta bem avaliada foi a de instituir um programa de investimento nas redes de serviços para reduzir as desigualdades regionais.

Vale a pena destacar, ainda, que a necessidade de fortalecimento institucional das Secretarias Estaduais de Saúde (SES) para a condução da regionalização, foi um dos temas de maior consenso entre os especialistas, as quais, desde que qualificadas e empoderadas são vistas como essenciais para apoiar a gestão regional. As recentes experiências de sucesso de muitos estados na resposta à pandemia de covid-19 mostram que o gestor estadual tem capacidade de organizar rapidamente e de forma eficaz a rede de serviços.

Por fim, um dos principais resultados desta pesquisa foi a identificação de pontos de convergência sobre desafios e soluções possíveis para aprimorar a regionalização do SUS. O fato que algumas propostas bastante provocadoras, como a da Secretaria Executiva da CIR, ou do Fundo Regional de Saúde foram bem avaliadas, indica interesse dos atores consultados na realização de um debate aberto sobre como avançar nessa agenda. Acredita-se que propostas transformadoras de tal feitio possam representar um ponto de partida para estimular e enriquecer este debate, rumo a uma política nacional de regionalização que torne o SUS mais resiliente e sustentável, com uma rede de serviços de atenção à saúde integrais, seguros e de qualidade, acessíveis a todas as pessoas.

Acesse o texto completo da pesquisa aqui>>>

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