Atenção Básica: o DF muito mal na fita

Material do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) que venho comentando nas últimas duas semanas, baseado em dados consolidados de 2021 (portanto bem atualizados), traz informações sobre a cobertura de Atenção Básica nos diversos estados brasileiros. Não é a melhor maneira de comparar Brasília, que não é um estado de verdade, e sim uma cidade, mas mesmo assim podemos ver que estamos mal na fita, próximos, por exemplo ao Estado do Rio de Janeiro, que tem simplesmente a pior cobertura no Brasil, alcançando apenas 57,2% da população. O DF está com míseros 63,2%. Na outra ponta, o Piauí lidera o ranking com 99,9%, seguido de perto pela Paraíba, com 97,5%. Fica aí um recado para a horda bolsonarista, que costuma achar que e região Nordeste é um atraso para o Brasil. Aliás, o mesmo Piauí detém também liderança na educação básica, conforme já comentamos aqui em outra ocasião (ver link: https://saudenodf.com.br/2021/08/25/o-segredo-de-oeiras/). Em relação às capitais propriamente ditas, estamos nivelados por baixo também, como mostrei no post da semana passada. Vale lembrar que a AB representa a porta de entrada da população no sistema de saúde e é fundamental para identificar doenças em estágios iniciais, permitindo o acompanhamento de doenças crônicas, resolvendo problemas para que não cheguem à média e alta complexidade, evitando ainda internações desnecessárias, conforme se confirma urbi et orbi. Veja a seguir o conjunto de dados trazidos pelo trabalho do IEPS, seguido de uma tentativa de explicação, de minha parte, ao fato de que o Distrito Federal tenha um perfil tão capenga no campo da saúde.

Vamos aos dados.

Cobertura de atenção primária
Piauí99,9
Paraíba97,5
Tocantins96,9
Santa Catarina93,0
Sergipe90,8
Minas Gerais90,1
Maranhão89,6
Rio Grande do Norte86,7
Ceará86,7
Acre85,4
Bahia85,1
Amapá82,6
Mato Grosso82,4
Alagoas82,2
Mato Grosso do Sul82,0
Pernambuco81,3
Rio Grande do Sul81,0
Espírito Santo80,4
Paraná80,0
Amazonas78,0
Rondônia77,5
Goiás75,0
Roraima74,7
Pará68,6
Distrito Federal63,2
São Paulo63,2
Rio de Janeiro57,2

Vamos tentar desvendar as razões de o DF estar em posição, digamos, tão melancólica, em relação a quase todos os estados da Federação e também com as capitais.

Não era para ser assim, por uma série de razões. Em primeiro lugar porque aqui houve um pioneirismo na organização regionalizada e hierarquizada dos serviços de saúde, ainda nos anos 60, graças às ideias de um certo dr. Bandeira de Melo, com certeza inspiradas no sistema inglês. Além disso, por ter contado sempre com recursos fartos para a saúde, graças à assunção de responsabilidades financeiras com a Saúde por parte da União. Não faltou aqui, ainda, capital humano e cultural para o desenvolvimento de uma proposta de saúde, pela presença desde sempre de uma Universidade (mas que nunca se meteu pra valer em tal campo), além de diversos órgãos do Executivo e do Legislativo, além de organismos internacionais e representações diversas, que certamente poderiam ter trazido aportes para a construção de um sistema de saúde afinado com as melhores e mais avançadas ideias em saúde.  Mas, pelo visto, nada disso aconteceu.

O que aconteceu, então? Não há como ter uma resposta taxativa, mas apenas algumas conjecturas. Vamos a elas.

Fatores de ordem política certamente são ponderáveis. A saúde, por aqui, teve uma história no mínimo descontínua e fragmentada, dada a sucessão de governos clientelistas e conservadores em matéria de política social. O desmanche, pelo governo Roriz, do programa Saúde em Casa criado pelo governo Cristóvam Buarque no final dos anos 90, é bem uma mostra disso.

Penso que também que conta essa sociedade desinformada e desigual que temos, organizada em torno de lideranças clientelistas, com foco no rorizismo, mais recentemente no bolsonarismo e no neopentecostalismo, pouco sintonizada com demandas sociais mais amplas e democráticas, com pautas imediatistas e distantes da noção de direito social, na qual o conceito de saúde talvez não passe de concessão ou favor do Estado ou algo a ser adquirido preferencialmente no Mercado.

A ausência histórica de práticas cooperativas entre Academia e Serviços, ou seja, a não-formação do que se chama de comunidade epistêmica, é outro fator possível. As lideranças da SES-DF, reiteradamente com formação restrita à clínica e não à saúde pública, alheamento a discussões mais elaboradas sobre política de saúde, vinculação preponderante ao setor privado, além de atrelamento ao conservadorismo e clientelismo dos governos, representam sem dúvida, mais um fator para a explicação do mau desempenho comparativo do DF na política de Atenção Básica.

Outro aspecto que me chama a atenção, porque tenho ouvido isso em diversas ocasiões, seja no âmbito dos serviços e da comunidade de usuários, é a propagação de uma noção pouco fundamentada de Atenção Primária à Saúde, que tende a considerar que o atendimento tradicional em “postinhos” ou nas unidades de Saúde da Família são como lados da mesma moeda, com o mesmo valor e capacidade resolutiva. É o que ouço inclusive de lideranças e profissionais da SES. Mas bem sabemos que não é assim e certamente tal conceito equivocado representa mais um fator impeditivo do crescimento da verdadeira Atenção Básica em nossa cidade.

Não se pode esquecer, também, que a gestão da SES é costumeiramente entregue a médicos clínicos ou a burocratas de carreira da SES, que mesmo quando não produzem os habituais desvios financeiros e materiais (o que já seria algo de valor), têm como preocupação central e proverbial apenas “tocar a máquina”, sem criatividade e ousadia, sem falar no atendimento às afinidades corporativas.

E para complicar o cenário, os fortes conservadorismo, predatismo corporativo e resistência a mudanças, exercidos pelas diversas categorias, seja de médicos, enfermeiros e outros profissionais.

E por último, uma ironia a respeito da situação. Me permitam…

Refiro-me a um sambinha da época da construção de Brasília. Seu autor é Billy Blanco, compositor e cantor que já tinha relativo sucesso nos tempos do rádio, mas antes de tudo era arquiteto e funcionário público federal, lotado no antigo DNER, se não me engano. Billy Blanco certamente apreciava o Rio, como artista e amante de suas praias, paisagens, recantos, bares, mulheres, estilo de vida. Para ele, não haveria nenhuma “dobradinha” (a regalia salarial que era então oferecida aos funcionários que se dispunham a mudar para a Nova Capital) que justificasse vir explorar o longínquo (e talvez selvagem) Planalto Central. “Não vou pra Brasília” tem a letra seguinte: Eu não sou índio nem nada / Não tenho orelha furada / Nem uso argola / Pendurada no nariz / Não uso tanga de pena / E a minha pele é morena / Do sol da praia onde nasci / E me criei feliz / Não vou, não vou pra Brasília / Nem eu nem minha família / Mesmo que seja / Pra ficar cheio da grana / A vida não se compara / Mesmo difícil, tão cara / Eu caio duro / Mas fico em Copacabana.

Palavras meio politicamente incorretas, como se vê, ao caçoar dos nossos estimados habitantes originários, além da profissão de fé Rio-cêntrica. Mas naquela ocasião ninguém ligava pra isso, muito menos no Rio de Janeiro, onde já não havia indígenas havia alguns séculos. Mas uma coisa é certa: Billy Blanco traduzia não só a sua visão carioca, embora adventício, mas também a do funcionário público resistente a mudanças, talvez não só de cidade, mas de hábitos laborais também.

Fico pensando se esta simples letra de samba não conteria mensagens mais profundas. Quem sabe ela se ajusta a uma visão que o servidor público que veio espontaneamente (ou os que vieram, forçados) para Brasília teve como um lema e assim a repassou às gerações que vieram depois? Sim, porque aquele miserê salarial geralmente associado às carreiras estatais (nem todas na verdade) aqui definitivamente não se aplica. Temos não só carreiras bem remuneradas, algumas inclusive cobertas diretamente por recursos federais, como níveis de vencimentos definitivamente superiores à média do país, tanto na comparação com o setor privado como, principalmente, no público. Isso, por si só, deveria transformar o DF numa espécie de xangrilá da burocracia estatal, mas a realidade está longe de mostrar isso.  Temos reivindicações permanentes, em escala, em cascata, que não raramente evoluem para greves e ameaças de paralizações. E nas carreiras cobertas diretamente pelo governo federal, como no caso das polícias, isso é mais visível ainda. 

Parece que o lema, inspirado em Billy Blanco é: já que eu vim para cá, não hei de cair duro; já que não tenho Copacabana, pelo menos que me sejam oferecidas outras vantagens. Afinal não é pecado querer ficar cheio da grana.

Não deve ser por acaso que a cidade que dispõe de um dos maiores índices de médicos e de enfermeiros por habitantes no Brasil tenha ao mesmo tempo numerosos postos de trabalho não ocupados nas unidades de saúde de suas periferias, justamente aquelas da Atenção Básica. Será que eles caem duros, mas preferem ficar no Plano Piloto?

Mas é só uma ironia, me perdoem.

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