Em tempos de dengue, covid, zika, febre maculosa, quase-golpe de estado, chacinas, racismo, crise social e política etc: como será o amanhã?

Para tudo o que é citado no título acima a realidade brasileira é muitas vezes avassaladora, de uma forma que nem nos nossos piores sonhos poderíamos admitir. Mas não escapamos, pelo menos da peste bubônica, da varíola e do bócio endêmico? Isso é o que diriam os mais otimistas, mas é pouco consolo.  É certo que isto ainda vai passar, mas a cada dia vemos de forma cada vez mais remota a luz do final do túnel (ou seria um túnel no final da luz?). Em todo caso, não percamos as esperanças. Mas que tal começarmos, desde já, a pensar nas transformações que nos aguardam no futuro? Tentarei aqui aprofundar questões da atenção à saúde em relação a um futuro próximo ou remoto. Penso que é preciso distinguir, em tais “augúrios”, o que deriva diretamente da grave situação de saúde que atravessamos, com as doenças citadas acima, daquilo que representa os efeitos de tal panorama sobre a crise social multifacetária que também nos atormenta. Em qualquer uma dessas possibilidades os riscos de piora do que já está ruim não são desprezíveis. Portanto, não nos animemos muito, pois no campo da saúde cabe refletir, acima de tudo, sobre as possibilidades de uma reorganização profunda do mesmo, para que os serviços de saúde tornem de fato adequados a esta era de doenças novas e antigas, para não dizer arcaicas, ao mesmo tempo que sejam capazes de responder adequadamente (ou que façam a sua parte pelo menos) face à crise social geral.

Para começar, caberia superar um enorme gap, que diz respeito àquela legião de pacientes que tiveram suas medidas de controle, geralmente de condições crônicas de saúde, suspensas ou postergadas pela situação pandêmica, seja da covid ou da dengue atual, sendo por isso relegados a uma situação de “invisibilidade”, mas também os sequelados pela covid e ainda aqueles que carecem de atendimento sem que estejam propriamente doentes, como as mulheres grávidas, os idosos, as crianças pequenas e outros.

A questão dos determinantes sociais das enfermidades, como renda, moradia, transporte, acesso a saneamento e educação, que certamente serão processos agravados pela atual pandemia, devem deixar de ser meras abstrações ou postulados apenas genéricos, itens de discursos vazios, para serem incorporados de fato às práticas desenvolvidas nos serviços de saúde, que devem continuar a fazer o que faziam antes, mas ao mesmo tempo enfrentar as novas questões sociais agravadas pelas epidemias e endemias e assim rever e recompor seu arsenal de atribuições, no que se inclui a necessidade imperiosa de trabalhar em interação com outros agentes das políticas sociais.

Com relação a tais problemas, a resposta já foi encontrada nos melhores sistemas de saúde do mundo, qual seja a valorização e a intensificação da atenção primária à saúde (APS) como porta de entrada compulsória e responsável primordial pela coordenação da trajetória dos pacientes dentro de tais sistemas. Isso requer estratégias especiais de acolhimento e acompanhamento de pacientes não só nas unidades da ponta da linha como ao longo do sistema de saúde como um todo. A mera triagem ou vista d’olhos burocrática deve se transformar em real análise da situação dos pacientes, individualizada e baseada em fatores de risco, de modo que todos os pacientes que acorrem aos serviços, sem exceção, tenham suas demandas analisadas, tratadas ou canalizadas e também acompanhadas, de acordo com os atributos da integralidade e da longitudinalidade que compõem o campo da APS. Impõe-se, assim, uma revisão crítica do modelo de atenção, com foco na questão: estamos resolvendo problemas de fato?, o que implica em estratégias de monitoramento, avaliação e aferição de impactos sobre a saúde das comunidades, de forma intensiva e permanente.

A capacitação de novos praticantes (cuidadores domiciliares, de idosos e crecheiras, por exemplo) é fundamental e deve fazer parte da recomposição de serviços acima proposta, com responsabilidades a serem assumidas diretamente pelas equipes, sob liderança da enfermagem, e não apenas transferidas a eventuais centros formadores de RH. Da mesma forma deve ser cogitada a inclusão de novos profissionais nas equipes de atenção primária, seja de forma direta e presencial ou baseada em núcleos de apoio, inclusive à distância, incluindo-se entre os mesmos fisioterapeutas, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, especialistas em saúde coletiva, educadores físicos, especialistas em negociação de conflitos, terapeutas familiares, comunicadores, entre outros.  

Componente fundamental da APS, as visitas domiciliares, devem ser tratadas com especial relevância, não só como fonte geradora de informações essenciais para boas práticas clínicas, como também para acompanhamento direto de pacientes em situações de vulnerabilidade social, em especial dos portadores de sequelas da covid, além de outros, portadores de doenças crônicas, gestantes e lactentes, por exemplo. Além disso, o atendimento em ambientes especiais e extramuros, como por exemplo creches, escolas, fábricas e outras instituições coletivas, além de atividades realizadas diretamente nas comunidades deve ser valorizado e intensificado.

Cabe especial papel às tecnologias de comunicação e informação, o que, aliás, já fazem parte da rotina de muitos serviços de atenção primária e especializada hoje no país, também deve ser aprimorada e intensificada, com o uso de telefones celulares, aplicativos de comunicação, redes sociais, grupos conectados, com numerosas utilizações já testadas e comprovadamente eficazes em termos de cadastramento, educação e promoção da saúde, convocações, consultas à distância e outras formas de contato entre serviços e pacientes. Ainda no campo das novas tecnologias, assume especial importância o trabalho com mapas, físicos ou virtuais, com foco na abordagem por território, além de protocolos e ferramentas de epidemiologia, que devem adquirir uso mais intenso, com a devida capacitação das equipes para tanto.

A saúde não pode ser uma ilha. Cabe superar certo de estado isolamento, passando os serviços de saúde, nos diversos níveis de atenção, a fazer parte de uma verdadeira rede, não hierárquica e com circulação ampla e abrangente de informações entre seus diversos pontos, bem como com outras redes, inclusive extra-saúde. Neste caso a palavra de ordem é: saúde presente em todas as políticas públicas!

E há necessidades ainda mais complexas, mesmo que resolvidas em prazo um pouco mais longo, pois estima-se que para os próximos anos os serviços de saúde devem também se preparar para receber uma nova carga de doenças, para as quais as estimativas, em relação aos anos anteriores, são de acréscimo acentuado e mesmo de aceleração de incidência, aí se incluindo as doenças mentais de diversas naturezas, mas principalmente a depressão, a adição a drogas e o suicídio; a AIDS; as condições ligadas ao estilo de vida (decorrentes do tabagismo e do alcoolismo e do tabagismo); as condições crônicas de maneira geral (diabetes, câncer, artroses, obesidade), além das violências, traumatismos e doenças profissionais em geral.

Isso indica que além das atividades de prevenção e tratamento de enfermidades, a promoção da saúde deve se transformar em atividade essencial nos serviços, com componentes de informação e educação; promoção de atividade física e de hábitos saudáveis em termos de alimentação e vida; controle do tabagismo; controle do uso abusivo de bebida alcoólica; e cuidados especiais voltados ao processo de envelhecimento.

Então, como será o amanhã? Desculpem, leitores, não quis enganar vocês, mas na verdade não tenho a resposta. O que eu coloquei aí são apenas conjecturas, do tipo “se houver amanhã”, melhor dizendo, como deveria se comportar o nosso sistema de saúde frente a tantos desafios presentes, que se projetam no futuro. Isso vai depender de muitas coisas, principalmente dos rumos políticos de um país que se viu arrastado nos últimos tempos a uma enxurrada de passadismos diversos, tais como superstições, raciocínios baseados em fantasias, crença inabalável em mitologias, atraso cognitivo, falsos gurus etc. Isso, sim, ditará a essência de como (e se) teremos um futuro digno pela frente, não só na saúde como nas demais áreas de interesse social.

***

Agora, com mais detalhes: acesse o texto abaixo.

***

DE HENRIQUETA CAMAROTTI

Flavio, neste excelente texto trazes uma reflexão fundamental para promoção da saúde das populações, que eu denomino como a necessidade de mudança no paradigma do atendimento. Desde 1980, quando cheguei em Brasília, já fazendo Residência Médica em Neurologia, complementada com um ano na Clinica Médica, eu entendi que mesmo que tivéssemos um número ideal de profissionais e de serviços de saúde por pessoas assistidas pelo SEsDF, ainda assim não estaríamos fazendo saúde. Por que ? Claro, porque continuaríamos tendo uma atitude verticalizada, centrada na patologia e não na saúde, não motivando a capacidade de autogestão das pessoas, famílias e comunidades.

Alguns anos depois percebi um lampejo de luz quando o Ministério da Saúde e os Estados começaram a Implantar o Programa (Estratégia) de Equipe da Família. Equipes multidisciplinares, territórios demarcados, acompanhamento das pessoas e famílias nos seus diversos ciclos de vida: gestante, crianças, adultos, idosos. Vale ressaltar que nesse modelo equipes e famílias caminhavam juntas, se conhecendo mutuamente, cuidando e aprendendo a cuidar, respectivamente, participando diretamente das necessidades e da prevenção do adoecimento físico e emocional no transcorrer da vida. Assim, teríamos uma verdadeira promoção da saúde e prevenção de doenças; além disso o acolhimento do sofrimento surgidos no seio do território atendido.

Quando conheci a proposta da Terapia Comunitária Integrativa ampliei meu entendimento de que essas pessoas precisavam de um espaço de escuta, de fala e de vínculos, saindo da eterna passividade fomentada pela exclusão e pelos políticos corruptos e interesseiros.

Deixo aqui a pergunta, que sempre fiz e continuo fazendo: por que décadas depois ainda mantivemos o mesmo modelo de assistência? Além das respostas óbvias, gostaria de um entendimento mais profundo da questão, já que os teóricos da saúde pública no Brasil e no mundo já sabem por quais caminhos começar essa necessária e URGENTE “revolução paradigmática”.

Uma resposta para “”

  1. Flavio, neste excelente texto trazes uma reflexão fundamental para promoção da saúde das populações, que eu denomino como a necessidade de mudança no paradigma do atendimento. Desde 1980, quando cheguei em Brasília, já fazendo Residência Médica em Neurologia, complementada com um ano na Clinica Médica, eu entendi que mesmo que tivéssemos um número ideal de profissionais e de serviços de saúde por pessoas assistidas pelo SEsDF, ainda assim não estaríamos fazendo saúde. Por que ? Claro, porque continuaríamos tendo uma atitude verticalizada, centrada na patologia e não na saúde, não motivando a capacidade de autogestão das pessoas, famílias e comunidades.

    Alguns anos depois percebi um lampejo de luz quando o Ministério da Saúde e os Estados começaram a Implantar o Programa (Estratégia) de Equipe da Família. Equipes multidisciplinares, territórios demarcados, acompanhamento das pessoas e famílias nos seus diversos ciclos de vida: gestante, crianças, adultos, idosos. Vale ressaltar que nesse modelo equipes e famílias caminhavam juntas, se conhecendo mutuamente, cuidando e aprendendo a cuidar, respectivamente, participando diretamente das necessidades e da prevenção do adoecimento físico e emocional no transcorrer da vida. Assim, teríamos uma verdadeira promoção da saúde e prevenção de doenças; além disso o acolhimento do sofrimento surgidos no seio do território atendido.

    Quando conheci a proposta da Terapia Comunitária Integrativa ampliei meu entendimento de que essas pessoas precisavam de um espaço de escuta, de fala e de vínculos, saindo da eterna passividade fomentada pela exclusão e pelos políticos corruptos e interesseiros.

    Deixo aqui a pergunta, que sempre fiz e continuo fazendo: por que décadas depois ainda mantivemos o mesmo modelo de assistência? Além das respostas óbvias, gostaria de um entendimento mais profundo da questão, já que os teóricos da saúde pública no Brasil e no mundo já sabem por quais caminhos começar essa necessária e URGENTE “revolução paradigmática”.

    Curtir

Deixe um comentário