People´s Health Dispatch, publicação com foco na política de saúde, direito à saúde e também em ações organizadas pelos trabalhadores do setor, traz à luz um relatório sobre a saúde mental de trabalhadores da saúde em diversos países do Sul e do Norte global, mostrando, como seria de se esperar, a existência de muitas disparidades entre os respectivos sistemas de saúde, mas também diversos problemas em comum, entre os quais se destacam as longas cargas horárias, a alta demanda de trabalho, os baixos salários e a precarização. As autoras, Ruth Ballardie e Vera Weghmann, esclarecem em entrevista (ver link ao final) as principais conclusões de sua análise. Vai a seguir uma síntese da entrevista, mas antes de passar a ela penso que caberiam alguns comentários sobre o tema do cuidado aos cuidadores. Nada mais justo do que pensar neles, sem dúvida. A obra em foco revela muitas distorções a que os trabalhadores de saúde estão submetidos, acima e abaixo do Equador, em países tão díspares como a paupérrima Libéria e a abastada Suécia. Destaca-se, por exemplo, o estresse ocupacional e o burnout, que crescem avassaladoramente em toda parte, enquanto as condições de trabalho em geral pioram, os salários encolhem, os direitos são restringidos e a carga de trabalho explode. Eu, que já fui pronto-socorrista na minha juventude, posso dizer que sei muito bem o que é isso. O texto de Ballardie e Weghmann, sem perder seu caráter militante, é muito elucidativo e vale a pena ser conhecido na íntegra. Mas há um reparo a fazer (nada é perfeito…). Não há neste texto nenhuma menção mais direta e insistente sobre os direitos dos pacientes. E todos sabemos que se há algo mais desrespeitado em toda parte, particularmente em um país como o Brasil, são os direitos dos pacientes – muito mais, aliás, do que os direitos dos trabalhadores. Não se trata de trocar uma coisa pela outra, pelo contrário, é importante que tanto uma como a outra sejam protegidas, defendidas e valorizadas. Mas no meu entendimento as pautas sindicais, no Brasil e em toda parte, costumam ser um tanto alheias quanto a este tipo de ênfase, que poderia ser traduzida pela simples expressão: a parte mais importante de um sistema de saúde são seus usuários. Que o sindicalismo em saúde explicite isso já no caput de seus documentos e que também o tema seja incluído nas análises que lhe são feitas. Sim, porque não faz sentido proteger trabalhadores da saúde enquanto os usuários são deixados em segundo plano. É isso aí: tudo junto e pra já!
Aqui vai uma síntese:
- A saúde mental dos trabalhadores da saúde em todo o mundo vem se deteriorando há muitos anos, associada ao crescimento do estresse ocupacional, que oscilou de 33% em 1990. para 44% em 2022.
- A pandemia da covid-19 exacerbou enormemente os problemas de cansaço e saúde mental, questão que afeta diversas outras profissões, mas tem sido pior para os trabalhadores da saúde.
- Mais do que soluções de emergência, é preciso colocar foco no que está acontecendo no nível coletivo, pois sem dúvida a associação entre o estresse ocupacional e o ambiente de trabalho é crítica e crescente, representada por trabalho excessivo, pressão nos ambientes de trabalho, falta de pessoal, turnos longos, problemas de comunicação, baixos níveis de apoio institucional e planos de carreira insuficientes.
- Vem daí uma série de consequências como depressão, ansiedade, burnout, estresse pós-traumático, doenças cardiovasculares e transtornos musculoesqueléticos, bullying e violência no trabalho, com numerosos riscos psicossociais, que se agravam devido aos baixos salários e à ausência de estabilidade nos empregos, afetando de forma diferenciada a maioria feminina.
- Questões especialmente a agravar o problema em termos mundiais são: remuneração baixa; rotatividade das equipes; desincentivos ao desenvolvimento profissional; dificuldade de se contratar novos funcionários; força de trabalho sobrecarregada.
- Considera-se que nas últimas décadas, políticas econômicas e modelos de financiamento neoliberais prejudicaram o financiamento dos sistemas de saúde, junto com legislações contrárias ao interesse dos sindicatos, aspectos incentivados por organizações como o Banco Mundial e o FMI, particularmente me países de renda média e baixa.
- Ocorre, sem dúvida, em todo o mundo uma crise global da força de trabalho da saúde, com riscos que interagem com as questões macro, diferenciadas de um país a outro, mas o grande fator que está na raiz das mudanças em curso é a implementação de políticas neoliberais e também o ataque à resistência que os sindicatos fazem a elas.
- A crise de investimento resulta em escassez na contratação de volume suficiente de profissionais e na garantia da multiprofissionalidade e da capacitação adequada, particularmente de trabalhadores mais jovens, da mesma forma que a manutenção de salários adequados.
- Em relação ao Brasil, o estudo aponta que existe um aprofundamento das desigualdades pré-existentes, com impactos ligados a questões de raça, classe gênero; os turnos de trabalho são excessivamente longos; o acúmulo de vínculos é regra; o SUS é um fator positivo, mas vem sendo corroído pelas privatizações e políticas neoliberais e pela reforma trabalhista; o negacionismo do governo anterior na pandemia fez aumentar os riscos para os trabalhadores; no governo Lula estão ocorrendo mudanças positivas, embora ainda tímidas, com destaque para a discussão do piso da Enfermagem
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Acesse o texto completo: https://outraspalavras.net/outrasaude/a-crise-global-dos-trabalhadores-da-saude/


Mais uma vez Flavio estás trazendo um tema que prá mim sempre foi de total interesse: a saúde física e emocional dos profissionais em saúde. Também concordo “tem que ser tudo ao mesmo tempo, cuidar da população e cuidar de quem cuida! ”
Quando fomos expulsos da Diretoria do Instituto de Saúde Mental do DF por estar desenvolvendo naquela Instituição uma política e prática de saúde mental baseada na Reforma Psiquiátrica e no Movimento Nacional da Luta Anti-manicomial, eu fui lotada no HRAN (Hospital Regional da Asa Norte). Chegando nessa Regional de Saúde, que envolvia o Hospital Geral e 11 Centros de Saúde, logo me deparei com o sofrimento psíquico dos profissionais da Instituição, pois eles me procuravam como psiquiatra de forma quase emergencial, demonstrando dificuldades nas relações com as chefias, com os colegas de trabalho, no desempenho de tarefas e, mais do que isso, com o sofrimento psíquico-emocional relacionado as suas vidas pessoais, familiares e tratamentos com psicofármacos. De imediato me perguntei, como doentes e pessoas tão sofridas podem cuidar de doentes? Como a Instituição de saúde não estava percebendo a premência do problema? Como não entender que a mola mestra da promoção da saúde passa inexoravelmente pelas pessoas que realizam a tarefa?
Então, como não consigo ficar inerte quando me deparo com situações de sofrimento, propus para a Regional o Programa Saúde Psico-emocional do Trabalhador em Saúde, constando de atendimento psiquiátrico individual, grupos de psicoterapia breve e uma pesquisa do sofrimento psíquico nos vários setores do Hospital e Centros de Saúde (o resultado dessa pesquisa publiquei na Revista de Saúde do DF).
No decorrer do Programa fizemos parcerias com a Medicina do Trabalho e com as chefias que aderiram a proposta. Envolvi neste Programa todas as áreas profissionais desde a administrativa, do suporte de lavanderia e limpeza, etc, os profissionais de saúde e alguns gestores. Os grupos eram realizados em formato de seis encontros, um por semana, e envolvia sempre grupos heterogêneos. Ali não eram separados por níveis ou classes profissionais e sim englobados todos como pessoas que estavam trabalhando em prol da Saúde Pública. Ao longo de dois anos realizamos, eu e a equipe da Medicina do Trabalho, 17 grupos psicoterapêuticos e tivemos respostas bem significativas. A própria diretora da Regional veio a público falar que houve uma mudança nas relações intrahospitalar no sentido positivo, e dizer “que os inúmeros processos entre chefias e chefiados que ocupavam sua mesa havia praticamente acabado”.
Bem, a partir dessa experiência compreendi que:
Henriqueta Camarotti
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