O mito da administração militar da coisa pública

Com as recentes prisões de generais, coronéis e outros igualmente graduados, os militares brasileiros alcançaram um patamar que lhes era merecido desde a guerra do Paraguai e quarteladas diversas em que se envolveram. Que paguem o preço, é o que desejam os cidadãos, pelo menos aqueles que são, realmente, de bem. Na Saúde, comparando a atuação deles nos governos militares e mais recentemente no desgoverno do inominável & inelegível, pelo menos na ditadura de 64 tiveram o bom senso de entregar o respectivo ministério a civis – que até não se saíram mal. Pelo menos se erradicou a varíola e o bócio endêmico, mas não a corrupção como os milicos gostam de afirmar. Além disso foram dados os primeiros passos para a construção do SUS, com as chamadas AIS – Ações Integradas em Saúde, a partir de 1983. Lembre-se, todavia, que a consolidação de tal movimento se deu, mais uma vez, sob a alçada civil. Sem querer ressuscitar figuras patéticas, como a do General Pesadelo, digo Pazuelo, aquele ilustre personagem que não sabia distinguir o Pará do Amapá e nem tinha ouvido falar de SUS, trago aqui de volta um artigo aqui publicado em um daqueles anos de vergonha, tratando do verdadeiro mico, digo mito, que atribui aos fardados uma insuperável competência na gestão da coisa pública.  Apenas para não se esquecer do horror representado por tal pesadelo.

O mito da administração militar – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO!

O político francês Georges Clemenceau teria dito, certa vez, que a guerra seria um assunto demasiadamente sério para ser entregue aos militares. Ele devia entender do assunto, pois foi membro de vários gabinetes franceses e inclusive dirigiu o país, como Primeiro Ministro, em inúmeras refregas com a arquirrival Alemanha, inclusive durante toda a Primeira Grande Guerra. Hoje, em nosso pobre país, à falta de inimigos externos que não sejam apenas fictícios, múltiplos setores da administração pública têm sido entregues a militares, desde simples tenentes até generais estrelados. Um dos apaniguados do governo, este consanguíneo, por sinal, já até declarou que com apenas “um soldado e um cabo”, montados num jipe, seria possível fechar o STF… Isso ainda não se concretizou, felizmente, mas sem dúvida há quem continue querendo algo assim, fazendo até manifestações públicas a propósito. Assim é que no Ministério (agora chamado “milistério”) da Saúde, montou-se uma verdadeira caserna, com “elementos” que receitam, formulam pareceres médicos, se arvoram de sanitaristas – só não assinam nada… Nem na ditadura militar tal coisa aconteceu. Aliás, mesmo os ministros mais xucros na ocasião, todos civis, nunca deixaram de serem assessorados por gente de gabarito, com formação sanitária inconteste. O último ministro da ditadura, Waldir Arcoverde, foi, aliás, um técnico dos mais competentes – e realizou uma boa gestão, assessorado por gente ilustrada, recrutada nas universidades e nas instituições de pesquisa. Mas vamos ao que interessa: esta decantada eficiência dos militares na gestão da coisa pública seria algo de fato comprovado empiricamente?

Tenho sérias dúvidas  quanto a isso…

Militares, mesmo na variedade “profissional”, não necessariamente “aventureiro-golpista”, são treinados dentro de uma lógica que guarda pouca semelhança com aquela necessária à gestão das demais instituições humanas, seja em períodos de paz ou de guerra.

Militares têm inimigos a combater. Quando falam em alcance de metas pensam em amontoados de corpos ou de prisioneiros. Na melhor das hipóteses, em léguas de territórios conquistados. É assim que medem o sucesso de suas ações. Uma gente que conta vítimas, não pessoas salvas.

Militares trabalham em sistemas de rígida hierarquia, em cadeias de comando que, caso contrariadas, levam o recalcitrante à “cadeia”. Não há diálogo e convencimento mútuo, mas sim obediência a ordens. Imaginem algo assim numa repartição pública civil ou numa empresa de qualquer natureza. Não daria certo, nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. Ou, quem sabe, na Coreia do Norte?

(Uma história entre parênteses. Christian Barnard, o cirurgião sul africano da era do apartheid, autor do primeiro transplante cardíaco do mundo, tinha como auxiliar direto um sujeito chamado Hamilton Naki.  Este, um negro pobre e marginalizado como a maioria da população do país, tinha habilidade especial no manuseio do bisturi, das tesouras, das pinças e das agulhas de sutura. A ele o eminente cirurgião branco recorria e muito confiava, sendo comum entre eles a troca de informações, com Barnard se colocando às vezes como simples discípulo.)

Seria possível imaginar algo assim no meio militar? Um general consultando um soldado raso sobre determinado procedimento, seja na guerra ou na paz, mesmo que a expertise do subalterno em tal assunto fosse unanimemente reconhecida? Difícil, se não impossível, constatar algo assim nos quartéis. Talvez algum sargento, exímio na produção de churrascos, servindo ao general como ordenança nos finais de semana, pudesse ser ouvido – mas apenas neste assunto específico.

Militares pensam em guerra, em tropas que devem avançar contra outras tropas, em posições predefinidas ou inspiradas por manuais de estratégia geralmente concebidos no século XVIII, quando a “logística” (palavra que voltou à moda com a militarização atual da saúde no Brasil), tinha como elementos componentes os fuzis de repetição, as baionetas, os canhões móveis, os “infantes”, os cavalos e coisas deste tipo. Hoje, com a guerra tecnológica, baseada em decisões tomadas mediante algoritmos, com forte presença de computadores, drones, gadgets eletrônicos diversos e que-tais, aqueles manuais não servem para mais nada. E nas empresas e nas instituições públicas atuais as decisões são tomadas baseadas em analises estratégicas, sobre cenários movediços onde se situam e se agitam clientes, fornecedores, apoiadores, adversários, além de simples interessados, que mesmo tendo ideias divergentes não devem ser tratados como inimigos. O consenso é o que importa.

A noção de “usuário” ou “sujeito”, ou seja, aquele que tem direitos, nos termos constitucionais, não faz parte do vocabulário ou do universo militar. Isso, é claro, tem importância central na saúde. Mas no campo militar o mundo é dividido entre “nós”, os que juram à bandeira e prometem dar suas vidas à pátria (?) versus “os outros”, os “paisanos”, a quem cabe defender, mesmo que seja ao arrepio de sua vontade. Paisanos teriam o sagrado direito de serem defendidos pelos fardados, nada mais.

Endossar uma mania perpetrada pelos superiores, como é o caso da atual febre de cloroquina, mesmo que parta de tenentes fracassados na carreira militar, embora ungidos pelo uso da faixa verde-amarela que lhes dá nada mais do que o falacioso “comando supremo das Forças Armadas”, no meio militar é missão a ser cumprida, não a ser questionada. Custe o que custar! E em clima de guerra, como se instaurou no país, os resultados devem ser apresentados, nem que seja em número de mortos e feridos. Se alguma coisa der errado não seria, certamente, pela bizarrice do que foi ordenado, mas sim por alguma falha na cadeia de transmissão, para a qual se encontrará fatalmente um culpado, nem que seja no seu último elo, ou seja, o pobre e desavisado usuário, que entre outros defeitos, não há de primar pela obediência ou pelo acatamento das demandas que lhes caem “de cima” e muito mesmo reconhecer o que se intenta fazer em seu “benefício”.

Foi graças ao comando totalmente civil da Saúde que o Brasil derrotou a varíola, o sarampo, a poliomielite. Não sobrou nada para os militares em tais vitórias. Eles bem que tentaram, seja através do emprego de seus métodos e mesmo de suas forças físicas, em episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina, ocorrido há pouco mais de um século, marcado por violência, destruição e muitas mortes – mas não pelo controle da doença.

E na ação militar propriamente dita, nossos fardados têm sido bem sucedidos? No meu entendimento, tirando sua participação na Segunda Guerra Mundial (na qual, aliás, foram chefiados e supridos pelos americanos), o saldo é amplamente negativo. Cito como exemplos – e nem precisa mais – o massacre de Canudos e as várias quarteladas, às vezes contra inimigos construídos, como em 1935, ou mesmo contra a própria sociedade, em 1964. Ah, mas teve aquela gloriosa missão de paz no Haiti! Nem ali… O que consta é que o orgulhoso General Heleno, de pendores golpistas, teve sua retirada pedida pela própria ONU, por acrescentar à lambança local ingredientes brasileiros. É ruim, não é?

O velho Clemenceau tinha razão. Não dá para deixar em tais mãos coisas tão importantes como a saúde. Nem mesmo a prescrição da famigerada cloroquina.

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