Podem os serviços de saúde contribuir para a paz em suas comunidades?

Que a violência está hoje entre as grandes preocupações da sociedade é fato de conhecimento geral, como se comprova, por exemplo, com os conflitos atuais em vários países; perseguições a minorias; atentados terroristas de fundo político, étnico, de gênero e até mesmo religioso; agressões a professores e profissionais de saúde e violência policial e de gangues armadas; fome e miséria em muitas partes do globo, derivadas de guerras e conflitos internacionais e tribais, além da escalada de projetos políticos, tendendo a negar conquistas sociais civilizatórias relevantes. O sistema de saúde mão escapa de tais problemas e ainda lhes acrescenta outros, como se denota não só pela piora geral de indicadores, a ameaça de pandemias, a oferta precária de serviços, além de carências de toda ordem, levando ao acirramento de tensões entre a população de usuários, equipes dos serviços e tomadores de decisão.

Uma boa definição para o problema é aquela da Unesco, órgão da ONU para a Educação, Ciência e a Cultura, que propõe uma Cultura de Paz, ancorada em valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados, entre outros fundamentos, no respeito à vida, na promoção e prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; no respeito pleno e na promoção de direitos humanos e liberdades fundamentais; no compromisso com a solução pacífica dos conflitos; no respeito e promoção das igualdade de direitos e oportunidades entre as pessoas; no respeito e fomento à liberdade de expressão, opinião e informação.

Para que isso aconteça, certamente há uma série de atributos das instituições típicas do processo civilizatório, entre elas as escolas, os serviços sociais e, particularmente, aqueles da Saúde.

Na área da saúde, em toda parte e particularmente no Brasil, vêm se tornando cada vez mais frequentes os comportamentos agressivos, seja contra os que ali trabalham e mesmo entre os demandantes de serviços, com formas diversas de violência, representando um problema social a gerar danos e consequências ao exercício do trabalho profissional e à qualidade da atenção. Tais problemas parecem incidir com mais intensidade na área de enfermagem, pela exposição mais direta da mesma ao público externo, sem deixar de afetar as demais áreas profissionais, especialmente o pessoal de portaria e vigilância, por exemplo. Os médicos e outros profissionais de nível superior também são afetados, mas podem estar mais protegidos no recesso de seus consultórios e outros locais de trabalho. Não há como negar, ainda, que a violência nos serviços de saúde pode vir tanto do lado dos profissionais como dos usuários.

Uma parte de tais problemas pode advir não só da falta de diálogo com os usuários, mas também  por mantê-los mal-informados sobre os procedimentos em curso, por intervenções equivocadas ou desnecessariamente agressivas, por longas esperas injustificadas, por descaso com o bem-estar das pessoas, pela falta de medicamentos e por muitos outros motivos. Deve ficar claro, todavia, que não se pode excluir de responsabilidades os gestores e tomadores de decisão em geral, não só os servidores na ponta da linha. Aqueles lá, muitas vezes,  podem ser os maiores perpetradores da violência com a população pelo descaso com a aplicação das políticas de saúde. 

Caberiam às unidades do sistema de saúde promover internamente reflexões relativamente simples sobre tal tema, por exemplo: ocorre cancelamento intempestivo de atividades que deveriam ser rotineiras? Existem avisos com linguagem hostil (“maltratar funcionário público no exercício de suas funções é crime previsto no código penal”)? Da mesma forma, avisos cancelando serviços que deveriam ser ali prestados rotineiramente? A disposição das cadeiras nas salas de espera é tal que coloca as pessoas a olhar umas para a nuca das outras, sem maior possibilidade de interação e muito menos sem a presença de qualquer atividade de acolhida? Há informações claras e acessíveis sobre a oferta de serviços? Há disponibilidade de água potável em condições e quantidade adequadas? Os eventuais perpetradores de violência têm sido responsabilizados e punidos? Os sanitários existentes são dignos e separados por gênero?  Exemplos não faltam.

Mas as normas básicas do SUS têm respostas para isso. Se não são respeitadas, é outra questão. Com efeito, existem pelo menos três diretrizes políticas e operacionais de nosso sistema de saúde, todas elas perfeitamente compatíveis e potencializadoras aos princípios de uma Cultura da Paz. São elas as Políticas Nacionais de Promoção da Saúde, de Humanização e de Atenção Primária.

Em relação à Promoção da Saúde, seus fundamentos referem-se a um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, seja no âmbito individual ou coletivo, norteadas pela articulação e cooperação entre atores e setores de tal campo, com participação da sociedade. Suas diretrizes visam equidade, qualidade de vida e redução de vulnerabilidades e riscos à saúde, representando uma estratégia de produção de saúde com especificidades relativas à construção de projetos de vida e terapêuticos, além da organização do trabalho em saúde, com vistas a deslocar a atenção da perspectiva estrita do adoecimento para a saúde e melhores condições de vida. Seu foco é a satisfação das necessidades das pessoas, dependendo não apenas da vontade ou da liberdade individual e comunitária, mas condicionadas ao contexto social, econômico, político e cultural em que elas vivem[MA2] .

A Humanização na Saúde, como explicitada na política tem como propósitos alcançar trabalhadores, gestores e usuários do SUS com princípios e diretrizes relativos à tal tema; fortalecer iniciativas existentes e desenvolver tecnologias relacionadas a tal campo; aprimorar e divulgar estratégias, processos de acompanhamento e avaliação de metodologias de apoio a mudanças respectivas. Na prática, os resultados que a Política Nacional de Humanização busca são: a redução de filas e do tempo de espera, com ampliação do acesso; o atendimento acolhedor e resolutivo baseado em critérios de risco; a busca de modelos de atenção com responsabilização, vínculo, garantia dos direitos dos usuários. Além disso, a valorização do trabalho na saúde e a gestão participativa[MA3] .

A Política Nacional de Atenção Básica (ou primária) em Saúde (PNAB), cujo espírito central é o acolhimento, possui grande potencial de gerar uma cultura promotora da paz. Esta política é traduzida por princípios operativos já perfeitamente materializados na realidade brasileira, cobrindo atualmente cerca de 60% da população do país, através da Estratégia de Saúde da Família. A atenção básica representa um conjunto de ações de saúde individuais, familiares ou coletivas, abrangendo promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde. Seu maior objetivo é desenvolver uma atenção integral que impacte favoravelmente a situação de saúde e a autonomia das pessoas, com intervenções sobre os determinantes e condicionantes sociais de saúde das coletividades.

É possível delinear, sem dúvidas, alguns caminhos práticos. O termo acolhimento, enfatizado na PNAB, sem dúvida representa uma síntese adequada das diretrizes que políticas referidas acima, que se coadunam com a instituição de uma Cultura da Paz nos serviços de saúde, implicando em ações tão diversas como acolher, informar, guiar, monitorar, responsabilizar, trabalhar mediante noções de “valor”. A aplicação de tal conceito na saúde possui pelo menos três dimensões genéricas: (a) como componente de políticas específicas (Humanização e Atenção Básica); (b) disposições organizacionais e ambientais de estruturas e processos; (c) simbólica, envolvendo aspectos afetivos e de responsabilização individual e coletiva.

Nos termos de tais diretrizes do SUS, acolher significa reconhecer o que o outro traz como legítima e singular necessidade de saúde, sendo ação que se dá entre as equipes e serviços de saúde, de um lado e usuários e populações, de outro. É além disso considerado um valor nas práticas de saúde, a ser construído de forma coletiva, partindo do conhecimento dos processos de trabalho e tendo como objetivo construir relações de confiança, compromisso e vínculo entre seus componentes, incluindo aí a rede socioafetiva. Aspecto central de tal ação é a escuta qualificada diante das necessidades do usuário, tendo como consequência a garantia de acesso oportuno dos usuários a tecnologias adequadas às suas necessidades, de forma a ampliar a efetividade das práticas de saúde, implicando em avaliação de vulnerabilidade, gravidade e risco dos mesmos.

Nos serviços de saúde normalmente se costuma pensar no acolhimento na relação com pessoas portadoras de alguma doença ou disfunção, mas deve ser incluído aqui o sofrimento humano como o motivo da procura dos serviços, não importando se há uma doença a ser tratada.  Na prática, a expressiva demanda na atenção básica está motivada pelo sofrimento da vida, desemprego, miséria, emoções exaltadas ou mesmo dificuldades enfrentadas objetivamente no cotidiano, tais como falta de condições, recursos, dependência de álcool e drogas de filhos e maridos, violência doméstica ou urbanas, problemas escolares ou mesmo no trabalho etc.

Acolhimento em saúde deve considerar aspectos afetivos ou simbólicos e mesmo filosóficos. Isso envolve diretamente a postura de todos envolvidos na atenção à saúde, não só as equipes de profissionais da saúde, mas também os gestores, formuladores de políticas, funcionários administrativos, pessoal de manutenção e apoio, além dos usuários e seus familiares. Há aqui uma corrente de eventos dentro da qual se promove e se produz saúde, cabendo garantir que todos seus elos sejam robustos, pois a fragilidade de apenas um deles comprometerá toda a corrente. Nada mais essencial, portanto, do que a própria postura acolhedora em qualquer ato de produzir ou promover saúde.

Enfim, a tão almejada Paz na Terra poderia vir através dos serviços de saúde? Certamente não se chega a tanto, mas alguma coisa pode ser feita em seu âmbito, pelo menos para minorar o estado de crispação que muitas vezes se apresenta em suas salas de espera e consultórios. Seria ingenuidade acreditar que existam soluções simples para tais problemas, sem impedimento de que possam ser encaradas como um caminho, entre outros, para alcançar um mínimo de paz e harmonia no âmbito de tais serviços. Não seria demais, também, acreditar e professar uma pedagogia do exemplo, que talvez seja capaz de iluminar uma parte das muitas pessoas que passam por ali ao longo dos dias. Valeria, também, a inserção de tal tema na pauta dos treinamentos em serviço, ao lado de outros tópicos voltados para a ética no atendimento e a valorização simbólica dos usuários e dos trabalhadores.

Como disse Martin Luther King, o que deve nos preocupar não é a estridência dos maus, mas o silêncio e a omissão dos bons. De fato, as pessoas boas, ou pelo menos aquelas conscientes dos desafios e das injustiças perpetradas na sociedade desigual com a qual convivemos, não podem e não devem se calar ou se omitir diante da violência, em qualquer instância social. A situação presente, de conflitos sem fim, seja na Educação, na Saúde, nos serviços sociais de modo geral, reflete diretamente e acima de tudo a miséria da injustiça social dominante em nosso país, que podem ser atenuados com a promoção de uma saúde global, da humanização e do acolhimento a cada indivíduo.

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Referências:


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