As grandes transformações demográficas, epidemiológicas, econômicas, ambientais, culturais e políticas têm implicado em mudanças significativas no mundo, em especial no setor saúde. Com tal foco foi realizado, em Brasília, entre os dias 29 e 30 de outubro de 2024, o seminário internacional O Desafio da Sustentabilidade dos Sistemas Universais de Saúde nas Américas, do qual tive a honra de ser relator, por convite da entidade organizadora, o CONASS, Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Com a participação de palestrantes nacionais e internacionais, o evento propôs o debate sobre como os sistemas de saúde precisam se organizar para vencer as realidades impostas, levando em consideração as experiências de outros países e do Brasil, acerca de questões relevantes que vão desde a capacidade de resposta às emergências sanitárias, à participação da sociedade, à força de trabalho e do financiamento, à governança, à regionalização e às redes de atenção à saúde. Os temas significantes deste evento (sustentabilidade, modelo assistencial, vulnerabilidade, governança, participação, entre outros) representam, sem dúvida, um território conceitual de alta complexidade e dinamismo. O sucesso das iniciativas correlatas a eles dentro das políticas de saúde requer não só regras de jogo bem colocadas, mas também apoiadas em evidências consagradas universalmente. Tal é o caso, por exemplo, da ênfase na atenção primária à saúde, na formação de redes, além de, particularmente, da necessidade de uma espécie de mirada territorial no planejamento das ações, além da busca permanente da equidade nas ações, que são aspectos marcantes nas diversas experiências que aqui se apresentaram. Segue uma síntese, sob minha responsabilidade, das apresentações e debates realizados no evento.
O caso da América Latina, aqui retratado com maior presença, possui relevância especial, seja pela variedade de países e subculturas pressentes nela, mas também pelo reconhecimento de algumas décadas que foram (ou ainda estão) perdidas no campo da saúde, pelo menos no que se refere à integralidade e à universalidade dos sistemas, de onde vem a necessidade imperiosa de se agregar novos recursos, inclusive de conhecimento, à atuação dos sistemas de saúde da região.
Salta aos olhos, no geral das narrativas, a importância conferida às abordagens baseadas na consideração dos determinantes sociais e econômicos na gênese dos problemas de saúde populacional, em escalas sem dúvida diferentes, mas sempre presentes. Da mesma forma, a inquestionável geração de intervenções sanitárias inspiradas diretamente pela realidade local e às necessidades reais dos cidadãos.
Não fica claro, todavia, nas experiências trazidas à luz neste seminário, sem que se possa considerar inexistente, como se dá o eventual enfrentamento das injunções do mercado, que em maior ou menor grau, que afeta todas as intervenções em saúde, em toda parte. Por exemplo, sobre o impacto da economia informal nas questões de trabalho e emprego, com suas repercussões inquestionáveis no campo da saúde e da qualidade de vida das populações.
As Funções Essenciais de Saúde Pública, nos termos trazidos à luz pela OPAS/OMS há pelo menos duas décadas, continuam a representar um guia válido para a organização e a capacitação das intervenções sanitárias em vários países, embora no caso do Brasil não haja menção direta a elas, sem impedimento que tal movimento exista também por aqui.
As intervenções em saúde aqui retratadas, é bom lembrar, como todo processo coletivo, dependem fundamentalmente de ação coletiva, a envolver governo, sociedade e outras instâncias, produzindo resultados apenas a longo prazo, o que não pode ser confundido com omissão ou insuficiência de algumas iniciativas.
O foco na qualificação dos processos de gestão é evidente em praticamente todos os casos apresentados, com especial ênfase na necessidade de ampliar e principalmente flexibilizar determinados mecanismos gerenciais, em termos processuais e particularmente na gestão financeira e de outros recursos e insumos essenciais, aspecto em que a pandemia de covid mostrou especial papel de desencadeamento. Denota-se, também, a importância das ações intersetoriais na agenda dos órgãos gestores, da mesma forma que seu atributo de regulação em relação à ação privada.
Do ponto de vista da busca de um modelo de atenção adequado, diante não só da recente pandemia, mas também das injunções trazidas pela transição demográfica e suas complexas implicações, em rápida e constante transformação nesta e em outras partes do mundo, a Atenção Primária à Saúde revela-se como iniciativa insubstituível nos dias atuais. O foco na vulnerabilidade de determinados segmentos populacionais, por exemplo, depende intrinsecamente do recuso pleno a tal estratégia assistencial e de fato se fazem notar, em diversas das experiências presentes, estratégias inovadoras a respeito de tal abordagem. Entretanto, caberia observação mais acurada a aparente não inclusão do baixo acesso ao saneamento básico em tais populações, como medida efetiva nos vários programas,
Em termos do modelo de assistência, destaca-se o foco enfático em famílias e comunidades, mais do que em indivíduos isolados, além dos relatos de integração entre as políticas sociais com ação centrada no nível local, certamente como indicador de garantia para sua maior efetividade e real garantia do direito à saúde. Neste aspecto, o essencial é considerar os usuários dos sistemas de saúde como portadores de necessidades bastante diferenciadas e complexas, resultando do insuficiente reconhecimento disso, no caso da recente pandemia, a constatação de que nem a sociedade nem os sistemas de saúde estavam preparados para enfrentar desafios de tal amplitude, pois os riscos a que foram submetidas as pessoas foram totalmente diferenciados entre os diversos grupos sociais, localizações geográficas e graus de acesso aos serviços. A pandemia de covid revelou também a ocorrência de determinadas marginalidades, ou seja, derivações inesperadas ou pouco valorizadas de tal fenômeno, acarretando desafios ainda maiores para os sistemas de saúde, como foi o caso das chamadas invisibilidades.
As presentes experiências demonstram, ainda, que abordagens com foco territorial, regionalizadas e assentadas em redes de serviços baseadas em atenção primária à saúde são de capital importância e que incrementar o gasto em saúde sem perder de vista o sentido da equidade também constituiu um fator fundamental.
Deve ser lembrado, também, que as intervenções no campo da saúde pública fazem maior sentido quando se correlacionam diretamente com os contextos vigentes em cada país, em função de características históricas, políticas e culturais. Sendo assim não há como estabelecer algum tipo de padrão “ótimo” no qual as diversas realidades devam se encaixar. Ficou claro que a efetiva articulação das ações sanitárias entre os níveis de governo constitui fator de sucesso ou um poderoso fator norteador.
Modelos assistenciais devem se coadunar, também, com os modelos de gestão, em termos, por exemplo, de financiamento, governança, formação de redes e construção de uma assistência à saúde realmente regionalizada. Políticas de financiamento devem também ser analisadas em função da realidade dos países, não só em relação aos montantes alocados, mas também relacionados à proporção do público e do privado na estrutura de gasto, considerando que na realidade latino-americana é comum que o gasto direto do bolso das pessoas ainda predomine.
A questão dos recursos humanos (ou dos talentos, na feliz expressão colombiana) é um tópico que ficou bastante aprofundado em algumas das experiências, o que não impede, todavia, que seja preciso avançar mais nas estratégias de qualificação, alocação, suprimento de déficits, contenção das dificuldades colocadas pela migração externa dos mesmos, entre outros aspectos. Neste aspecto, caberia adicionar ao pacote de competências profissionais necessárias às tarefas de gestão e assistência à saúde, o pensamento estratégico voltado ao enfrentamento das mudanças constantes e rápidas que caracterizam o setor saúde, de forma a promover e incentivar capacidades em detectar e promover mudanças em tempo real nos protocolos de trabalho, bem como sobre a composição ideal das equipes de saúde, para cada momento e eventualidade operacional.
Destacam-se, ainda, em tal campo dos talentos humanos, não só a constatação relativa à presença constante de servidores públicos competentes e comprometidos em cada uma das iniciativas, como a importância de processos de trabalho interprogramáticos e interprofissionais, sem descuidar da preservação e da promoção da saúde, bem como do bem estar entre os trabalhadores dos serviços de saúde. Foi considerada, todavia, a necessidade de incremento da capacidade de adaptação os órgãos formadores de recursos humanos aos desafios impostos pela realidade da prestação de serviços e da gestão.
Foi ainda bastante nítida a preocupação dos agentes em se apoiarem, com firmeza, em informações validadas pela ciência, fugindo assim da tendência negacionista vislumbrada durante os anos recentes e contar, assim, com sistemas de informação e comunicação ativos, ágeis e acima de tudo confiáveis.
Ocorreu a recomendação, por parte dos debatedores, de iniciativas voltadas à avaliação de impacto das medidas em andamento, em especial aquelas dirigidas aos grupos especialmente vulneráveis de crianças e mulheres, bem como de esforços no sentido da superação de determinadas barreiras éticas e culturais que muitas vezes se interpõem diante de tal focalização específica, com clareza a respeito dos princípios éticos e técnicos que orientam tais ações. Acima de tudo, caberia entender e avaliar tais experiências em sua natureza de processos em andamento e evolução.
O SUS brasileiro recebeu especiais menções dos painelistas, por exemplo: pela acumulação permitida pela sua criação, já com mais de três décadas de vigência, revelando marcante aperfeiçoamento das estruturas de gestão em saúde e garantia de sua capacidade de resposta; pela estrutura de gestão do trabalho e educação, inserida entre as funções essenciais da gestão em saúde; pelas contribuições à política social, especialmente, a concessão à Saúde do atributo de direito universal; pela construção de uma adequada estrutura jurídica para a saúde, representando assim um requisito para a democracia; pelo desenvolvimento da chamada gestão tripartite, uma inovação associada a mecanismos adequados de participação social.
Deve ser destacada, ainda, a importância de que as diversas experiências de inovação e intervenção sobre a realidade sanitária, que ocorrem aqui e ali, sejam conhecidas e divulgadas, para o que este seminário carrega capital importância.
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Além dos temas desenvolvidos nas páginas anteriores da presente seção, diretamente derivados das considerações feitas pelos seis debatedores convidados, foi possível registrar alguns outros diretamente nas apresentações dos painelistas como, por exemplo: governança e articulação; gestão local; condições crônicas e comorbidades; participação social; abordagem à pandemia; gestão de riscos; responsividade e resiliência do sistemas de saúde; resgate de confiança social; gênero, raça e etnia; precarização do trabalho; cuidados aos cuidadores.
Como se vê são todas elas questões muito pertinentes aos sistemas de saúde atuais, inclusive ao SUS, particularmente diante de um cenário de desfazimento de iniciativas de bem estar social por todo o mundo, erosão dos sistemas de saúde e, particularmente, o stress derivado da recente pandemia em tais sistemas. Em maior ou menos grau são temas explícitos ou implícitos nas apresentação, ensejando diferentes respostas, em conformidade com cada realidade local.
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