SUS e NHS: quem influencia quem?

Dialética do exagero. É o nome apropriado para a situação em que alguém usa argumentos “fortes” (para não dizer exagerados ou mesmo inverossímeis) na tentativa de convencer seus interlocutores de alguma coisa. Acabo de ver algo assim em matéria da publicada pelo jornal londrino The Telegraph no dia sete de abril último (ver link ao final), que revela estar o governo britânico acompanhando de perto o modelo brasileiro do SUS, mais exatamente no que diz respeito aos agentes comunitários de saúde, para aplicar algo semelhante no NHS – National Health Services do Reino Unido. Ou seja, pelo visto, a criatura agora inspira o criador – mas será que é isso mesmo? As jornalistas autoras da matéria não deixam por menos, já indagando no título da matéria: O NHS está perto do colapso — um projeto das favelas (sic) brasileiras poderia salvá-lo? Informa-se que que um projeto-piloto está sendo desenvolvido em um setor de Londres, visando ser ampliado depois para outras regiões na Inglaterra. Não custa lembrar que o NHS foi uma das fontes de inspiração para o SUS, a partir de uma experiência que já é centenária naquele país, inclusive na instituição das visitas domiciliares, possível alvo da presente matéria. Algumas verdades não-dialéticas, contudo, precisam ser reveladas. A primeira delas é que tanto o NHS como o SUS passam hoje por questionamentos diversos, inclusive com algumas reformulações marcantes, nem todas para o bem, diga-se de passagem, embora certamente com algumas delas sendo necessárias e até mesmo imperiosas.

Vamos falar das reformas necessárias do SUS mais adiante, mas comecemos com o que já está em curso no Reino Unido.

Em linhas gerais, (ver link: Giovanella L. et al (org), 2012) foram mantidos teve os princípios estruturantes do NHS − universalidade, solidariedade, atenção integral – bem como da estrutura de organização de serviços, com financiamento público e condução centralizada, dentro de uma lógica de ‘quase mercado’. Alguns aspectos contemplados foram (a) Introdução de mecanismos competitivos entre prestadores e compradores de serviços no sistema público de saúde; (b) mudança do estatuto jurídico das instituições públicas (trusts), para atuarem num ambiente competitivo e sob o marco regulatório do contrato.; (c) fortalecimento do papel regulador do Estado. (d) economia de escala na compra dos serviços necessários para atender à demanda e às necessidades dos consumidores (não os usuários, mas os compradores GPs e autoridades de saúde). Nem tudo foram bons resultados, todavia, pois ocorreu algum aumento do gasto com saúde, sem grande avanço no desempenho do sistema limitado; os custos administrativos aumentaram, sem correspondente redução de filas de espera ou incremento da qualidade; houve favorecimento privado, contemplando os médicos GP, agora alçados a tomadores de decisão; ao contrário do que se esperava, o “dinheiro não seguiu o paciente”, com predomínio de contratos que não captavam as mudanças no perfil de necessidades e não foram capazes de instituir uma verdadeira economia de escala nos serviços, incrementando a fragmentação, com enfraquecimento de serviços cruciais; observou-se também certo aumento de custos, com a adoção de políticas mais restritivas e centralizadoras, com valorização financeira de serviços privados e individualizados.

O processo de reformas prossegue no NHS, mesmo com a alternância política entre trabalhistas e conservadores.

No SUS os processos de mudança têm sido bem menos ousados, persistindo a lógica definida pela Constituição de 1988, com o atributo apenas formal do direito à saúde, descentralização incompleta, subfinanciamento acentuado, responsabilidades sanitárias entre os entes da Federação não muito bem explicitadas, além de redundância nos processos normativos.

Preliminarmente, seria preciso abandonar aquele “sonho” chamado SUS e ao mesmo tempo rejeitar o SUS “real” para buscar um SUS “possível”. Afinal, aquela visão onírica e triunfalista, aquele pensamento desejoso, próprios dos militantes, só tem levado a impasses em relação à saúde no Brasil – é preciso pensar com realismo. O SUS, cabe lembrar, não é verdadeiro fruto de movimentos sociais – seria bom que o fosse – mas sim de um grupo de intelectuais, acadêmicos, sindicalistas e atores políticos influentes no período de redemocratização do país, grupo este que, aliás, perdeu influência no cenário nacional.

Há muita unanimidade no SUS e ela é prejudicial. Tal excesso de consenso entre os defensores tem impedido os avanços necessários, ao contrário do que acontece no NHS, com eventuais ideias de reforma do SUS sendo combatidas com vigoroso preconceito – é preciso arejar o debate, buscando e aprofundando ideias novas de fato. Além disso, o SUS, tal qual o conhecemos é um produto típico dos anos anteriores à década de 80 e desde então muita coisa mudou no Brasil e no Mundo, de tal forma que o nosso sistema de saúde deve ser ressignificado e reestruturado à luz de novos conhecimentos e informações, epidemiológicos, demográficos, econômicos, políticos e culturais.

Uma palavra de ordem constante relativa ao SUS fala da “ousadia de cumprir as Leis”. Melhor seria exercer tal ousadia para arregimentar a mudança nas leis e normas que não mais se justificam, impedindo o avanço de políticas públicas, entre elas o SUS. Por exemplo, a pretensa “igualdade” do direito ao acesso para ricos e pobres que as leis do SUS afirmam garantir é falsa e prejudica estes últimos, pois os mais ricos sempre têm mais chance de abocanhar o que oferecem as políticas públicas, pois enquanto “pobre só tem amigo pobre”, os mais ricos usufruem de uma extensa rede de contatos e influências, que lhes abrem portas em toda parte. Neste sentido, a afirmativa de que “sistemas de saúde com foco nos mais pobres são também pobres”, um dito comum entre os militantes pró SUS, ainda falta cumprir-se aqui e alhures.

Mas tem mais: sistemas de saúde devem oferecer tudo para todos – esta é a base ideológica do SUS. Mas pergunta que não se cala é: em que país do mundo isso foi alcançado? Da mesma forma, o dito de que, “a municipalização é o caminho”. Isso significa que São Paulo, a capital, e um minúsculo município dos confins da Amazônia deveriam ser tratados de igual forma?

E para terminar: Os Conselhos de Saúde devem ser deliberativos, assim está escrito na Lei; mas quem paga judicialmente por deliberações equivocadas é o Prefeito ou o Secretário Municipal e não o Conselho ou seus conselheiros. Simples assim.

Vão aí algumas ideias para evitar, ou pelo menos adiar, o fim do SUS, independentemente de qualquer comparação indevida, seja com o NHS ou outro sistema de saúde no mundo.

  1. FOCO NOS MAIS POBRES é um bom começo e parece óbvio. O problema é que existem pessoas (sérias) que defendem a ideia de que bons sistemas de saúde não devem ter tal foco, mas sim na sociedade como um todo. Há aí um problema até agora não resolvido: os mais ricos – ou pelo menos os não tão pobres – sempre dispõem de maior capacidade de abocanhar os benefícios das políticas púbicas. Afinal de contas, pobre só tem amigo pobre – daí… Contemplar os mais pobres tem que se dar no plano formal e concreto, não nas abstrações costumeiras, tipo “o SUS tem que dar tudo para todos”. O certo seria aparelhar os sistemas de saúde – e financiá-los decididamente – para que atendam gratuitamente apenas os segmentos mais pobres, com critérios bem definidos. Os remediados e os ricos que contribuam, parcial ou totalmente. Para tanto não seria preciso colocar catracas ou máquinas de Visa ou Credicard na entrada de cada unidade do sistema, mas criar, entre outras medidas factíveis, aquele tão decantado Cartão Nacional de Saúde, com o registro da via funcional e sanitária dos cidadãos, o que os governos dos últimos anos no Brasil não tiveram peito para fazer, embora haja tecnologia disponível para tanto. A contribuição dos mais ricos pode acontecer, por exemplo, mediante estímulo a participarem de planos de seguro-saúde, mas vigiando uns e outros (planos e clientes) para que só recorram ao SUS mediante garantia de reembolso. E qual o problema de lhes facultar o desconto no imposto de renda correspondente a tais contribuições? Com limites, é claro.
  2. DESCENTRALIZAÇÃO, SIM, MAS COM LIMITES. A Constituição de 1988 nos manteve em uma armadilha, que é aquela de conferir enorme poder aos municípios. Na saúde isso foi radicalizado. Os municípios brasileiros são entes absolutamente desiguais, de tal forma que é impossível tratar igualmente a cidade de São Paulo (ou qualquer outra metrópole com centenas de milhares de habitantes) e alguma cidadezinha nos confins da Amazônia ou de qualquer outra parte do Brasil. Só para citar dois exemplos nos quais a atual prática de descentralização tem sido desastrosa na saúde, pelo menos: política de recursos humanos e aquisição de insumos. Temos que ter gestão regional e não meramente local de políticas como essas, quiçá de outras também. Os municípios maiores poderiam, de fato, usufruir da autonomia que a constituição lhes confere, mas para os pequenos, pobres e remotos, a gestão da saúde tem que ser concentrada em entes públicos, de modalidade jurídica a ser definida, não exatamente nos “consórcios intermunicipais”, que nunca produziram resultados adequados, pelas injunções jurídicas que enfrentam.        
  3. ARRUMAR A CASA DA SAÚDE PELA PORTA DA FRENTE. O estado de “queijo suíço”, ou seja, buracos por todo lado, vigente nos serviços de saúde no Brasil, precisa ser trocado pela definição de portas de entrada, dentro de uma rede regionalizada e hierarquizada. Isso está na Constituição, mas é regularmente descumprido pelas falsas promessas (dos políticos, mas também dos militantes do SUS) de garantir “tudo para todos”, de preferência em locais próximos àqueles onde as pessoas vivem. Isso, nenhum país do mundo conseguiu fazer até hoje. O segredo está em organizar os serviços de saúde em unidades de hierarquia e complexidade crescente, tendo como base as equipes de Atenção Básica/Saúde da Família, nas quais a população tenha vinculação direta e formal, receba visitas domiciliares e seja tratada de acordo com suas necessidades concretas, ponderadas por faixa etária, risco e condição de saúde. Isso vem dando certo em muitos lugares do mundo, não apenas em Cuba ou na Inglaterra, e não há porque deixar de aperfeiçoar e estender o modelo iniciado no Brasil nos anos 90, que comprovadamente tem trazido melhoras importantes nos indicadores de saúde nos locais onde foi efetivamente instalado.
  4. O DINHEIRO É POUCO. MAS SERIA POSSÍVEL CONSEGUIR MAIS? Esta é a vala comum na qual todos os problemas do SUS são jogados. Agrava-se o panorama quando se defende a ideia de que o nosso problema não é dinheiro, mas gestão. Falta gestão, sim, mas o montante de recursos disponíveis para a saúde no Brasil é muito pequeno, em qualquer comparação internacional que se faça. É fundamental aumentar o aporte de dinheiro, portanto e isso só é possível se pensarmos em novas fontes. Algumas ideias já foram lançadas no cenário, como por exemplo a sobretaxação, com encaminhamento para a saúde, dos itens que a prejudicam a higidez das pessoas e contribuem para o galope de despesas no setor, tais como bebidas alcoólicas, cigarros, automóveis. Por que não incluir o uso da internet também? Fazem com que os mais ricos paguem pelos serviços é outra saída, bem como reduzir o direito de isenção que os mesmos têm. E a taxação sobre as grandes fortunas e as rendas da especulação financeira? Falta de “decisão política” é uma maneira genérica e um tanto abstrata de situar tal problema, mas na verdade existe e até sobra decisão política, embora em sentido contrário, ou seja, ao arrepio do bem-estar comum e da saúde da população.     
  5. A GESTÃO DA SAÚDE PRECISA MELHORAR. A gestão pública no Brasil está presa nas malhas de um verdadeiro túnel de ferro, formado pelo cipoal jurídico, no qual despontam as leis de Contratos e Licitações (8.666), Estatuto do Funcionário Público (8.112) e Responsabilidade Fiscal. Elas não têm servido para disciplinar a administração pública, mas sim para produzir gestores intimidados e agentes privados audazes e agressivos em suas disputas com o poder público. Digamos que os dois fatores, gestão e recursos, estão em jogo, mas se por um passe de mágica, chovesse dinheiro na saúde, dobrando, por exemplo, os orçamentos disponíveis, não se saberia o que fazer com ele. Há muitas inovações gerenciais no cenário mundial, mas que geralmente, no caso brasileiro, são ignoradas, proibidas pelo formalismo jurídico vigente ou até pelas barreiras ideológicas impostas pelos sindicatos e mesmo pelos tribunais. Algumas questões em cena: parcerias público-privadas; pagamento de serviços baseado em desempenho e produção de resultados; terceirização de determinados serviços; desenvolvimento de mecanismos flexíveis para compras e contratação de RH, entre muitas outras.
  6. PÚBLICO E PRIVADO EM PARCERIAS, SEM PRECONCEITOS E COM REGULAÇÃO: É POSSÍVEL? O caso da Atenção Primária à Saúde, aliás, representa um bom exemplo de como as discussões neste sentido podem ser convergentes, dado que tal estratégia de ação nasceu dentro do setor público, na Inglaterra. Entretanto, muitas de suas conquistas metodológicas, como as estratégias de gestão da clínica, nas quais se incluem as diretrizes e protocolos, a gestão da porta de entrada do sistema, os “radares” de seguimento de casos, entre outros aperfeiçoamentos, possuem, em suas digitais, marcas oriundas dos setores dos planos privados de saúde. O setor público, ao incorporá-las, não só conseguiu incrementos de eficiência e qualidade em sua atuação, como contribuiu para seu aperfeiçoamento, pelo seu uso em escala. E nenhum lado sucumbiu à corrupção e à ineficiência ou à ganância e à mercadorização com isso. Há muitas portas e caminhos a explorar nessa relação que é vista com preconceitos diversos. É claro que alguns verdadeiros “cantos de sereia” devem ser evitados, por exemplo, aquele que reza que o setor privado fará melhor tudo o que o setor público faz. Na mesma linha, a crença de que os planos de saúde ditos “populares” seriam solução a ser oferecida à clientela de menor poder aquisitivo e já desgastada pelo mal atendimento que o SUS costuma oferecer, ainda, em muitos lugares. Não se trata de retirar ou apagar o sistema público do cenário, mas sim definir melhor o que as leis denominam de complementar, para incluir não só o que o SUS não faz, mas também aquilo que não é capaz ou renuncia em fazer, por insuficiência tecnológica, incapacidade de alcance geográfico, ou simples decisão.
  7. ADICIONAR VALOR AO QUE SE FAZ. Todo mundo sabe: no SUS e nas questões de saúde em geral tudo é tratado com base em números. O que importa são quantidades, seja de consultas, exames, horas trabalhadas, leitos ocupados, altas concedidas, recursos transferidos, pagamentos de serviços – seja lá o que for. Mas existem outras maneiras de agir, referendada por teorias contemporâneas gerenciais e de relações de trabalho, que distinguem entre o que é meramente “volume” e outra acepção, de fundo qualitativo, ou seja, de “valor”. Seria possível falar, então, em uma “saúde baseada em valor”, como modelo de prestação de cuidados de saúde no qual os prestadores, incluindo as instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são pagos na base dos resultados proporcionados aos pacientes, e não apenas em termos de quantidades, seja de consultas, de internações, de procedimentos ou custos. Mas isso pode ainda contar com uma dimensão especial, quando a definição do valor pago ou atribuído a procedimentos determinados ganha um sentido plural, de valores, que são os aspectos simbólicos pelos quais uma instituição se move: Ética; Comprometimento; Competência; Solidariedade; Trabalho em equipe; Humildade. Mas há uma premissa inarredável, a de que o que se almeja é recompensar, seja instituições ou pessoas, pelo favorecimento real que oferecem aos pacientes (que devem estar no centro da equação), no sentido de melhorar sua saúde, reduzir a incidência e os efeitos das doenças, viver vidas mais saudáveis, enfim. Sempre de forma baseada em evidências, não em “achismos” de qualquer natureza.
  8. PRECÁRIAS NÃO SÃO SÓ A DAS RELAÇÕES DE TRABALHO, MAS TAMBÉM A MANEIRA COMO A FUNÇÃO PÚBLICA É CONSIDERADA PELOS QUE NELA MILITAM E PELO PÚBLICO. Prestem atenção: produtividade, qualidade e resultados e performance individual não deveriam constar dos contratos de trabalho? Por que não? E os salários ajustados em função de indicadores daí derivados. A sacrossanta “estabilidade” só tem beneficiado os relapsos, ao passo que não favorece os bons de verdade. Mas atenção: produto é algo diferente de resultado. Não basta atender x+n pessoas em um dia; o importante é medir o impacto na vida delas, por exemplo, com a aferição de internações sensíveis a atenção básica, entre outros métodos, o que permite verificar e quantificar se as equipes básicas de saúde estão realmente cumprindo seu papel.  Mas é preciso ir além: sobre o regime de trabalho: que seja flexível sem ser precário. Mas convenhamos, o cenário atual empurra as relações de trabalho para a precariedade. E aqui, mais uma vez, há que se lembrar: a batalha cultural é necessária, constituindo aspecto essencial e complicado. Um sindicalismo radicalmente novo e atualizado talvez nos fizesse bem. Mas não se pode esquecer: orçamentos são também problemas matemáticos e não apenas exercícios de decisão política. Direitos, para serem respeitados, dependem de recursos. Recursos, para serem alocados precisam estar disponíveis em fontes apropriadas. E a alocação de recursos deve se ater a prioridades, que nem sempre são valorizadas, seja pelos governos, seja pelas representações dos reivindicantes, que muitas vezes pensam que suas demandas são as únicas no cenário.
  9. A OUSADIA TAMBÉM DEVE SER VOLTADA PARA MUDAR AS LEIS, NÃO APENAS PARA CONSERVÁ-LAS. Sobre algumas das leis do SUS, seja o respeitável texto constitucional, as leis orgânicas ou o que veio depois, é inescapável recorrer ao dito de Bismarck, que comparou a ação legiferante à fabricação de salsichas. A própria Lei nº 8.142, pela qual se clama como se fosse um inatacável monumento de clareza e racionalidade, não nos esqueçamos, veio como um remendo (mal costurado) para os diversos vetos presidenciais de Collor à lei original, a Lei nº 8.080. O artigo 200, da Constituição Federal, tem também fisionomia frankensteiniana, reunindo alhos e bugalhos em vasta peroração, da qual boa parte ainda não foi regulamentada, passados quase 20 anos de vigência da Carta. Assim, na contramão de (mais uma) unanimidade, penso que a ousadia verdadeira, em muitos aspectos, não é exatamente a de “cumprir a lei”; nem descumpri-la, tampouco, mas sim tomar um “caminho do meio”, que seria o de pugnar pela mudança de leis ou partes delas que estão em franco desacordo com a realidade, dentro da lógica de que fatos sociais e fatos jurídicos são coisas essencialmente diferentes e que uns devem, legitimamente, desencadear os outros. Com efeito, um dos grandes problemas do SUS é que o ímpeto (e às vezes até certa “fúria”) dos legisladores criou figuras inaplicáveis à realidade. Isso implica em que para tais leis precisávamos de melhores costumes e melhores instituições. Nos legisladores são notórios portadores daquilo que em inglês se chama de wishful thinking, uma exagerada crença que o mero desejo pode criar a realidade. O resultado é o m vasto cipoal de leis e normas que ninguém consegue nem mesmo interpretar adequadamente, quanto mais cumprir à risca. Tem futuro o SUS? Corre-se enorme risco de que a resposta seja simplesmente: “não, esse SUS que aí está não tem nenhum futuro.
  10. UM POUCO DE MODÉSTIA NÃO FAZ MAL À SAÚDE. Os sonhos que desaguaram em 1988, na Constituição Federal, foram sem dúvida generosos, assim como as pessoas de seus propositores. Mas torna-se preciso questionar se eles se sustentam depois de mais de três décadas passadas, com tantas mudanças culturais, políticas, epidemiológicas, demográficas, pelas quais passou o mundo. É hora de analisar outro projeto, o do SUS possível, sem abrir mão de uma necessária compostura, e dentro de alguns princípios. O primeiro deles é dar um solene adeus às ilusões! – entre estas, a crença de que seria possível dar tudo para todos; a de que todo poder deve ser atribuído aos municípios em matéria de saúde; a do enganoso controle social, que se realiza mais sobre a sociedade do que a partir dela; a certeza de que existiria profunda maldade na ação do setor privado e que sua incompatibilidade com o sistema público é total e inerente a ele; a defesa de que dinheiro é feito de látex e que, assim, os orçamentos públicos são sempre uma questão de decisão política que escapa à lógica aritmética e, finalmente, que é sempre necessário cumprir a lei (isso não é o bastante, sendo mais importante muitas vezes anulá-la e recriá-la, longe de se apegar a tecnicalidades e bijuterias jurídicas). Existem mais algumas ilusões no cenário da saúde, mas por ora bastaria a enunciação desta série.

Não sei se conseguiremos algo mais do que adiar o fim do SUS. Quem diria evitá-lo… As ameaças atuais são grandes, ainda maiores do que aquelas que já fazem parte da paisagem do SUS. Mas como a esperança é a última que sobrevive à passagem da boiada, não custa nada insistir.

Em tempo: o SUS não constitui um projeto “para as favelas brasileiras”, como querem as autoras da reportagem do The Telegraph. Muito ao contrário! O SUS é (ou deveria ser) bem mais do que isso.

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Algumas das publicações aqui deste blog, nas quais o tema acima é tratado:

  1. https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/09/por-uma-saude-baseada-em-valores/
  2. https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/08/saude-o-que-o-setor-privado-pode-nos-ensinar/
  3. https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/07/pela-atuacao-realmente-avancada-da-enfermagem-em-nossos-servicos-de-saude/
  4. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/11/07/autonomia-e-flexibilidade-quem-nao-deseja-isso-no-servico-publico/
  5. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/24/sobre-as-chamadas-clinicas-populares-os-tempos-estao-mudando/
  6. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/02/16a-conferencia-nacional-de-saude-qual-o-foco-afinal/
  7. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/06/na-saude-por-que-a-vaca-vai-pro-brejo/
  8. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/08/06/oito-mais-oito-soma-zero/
  9. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/07/30/mais-medicos-mais-do-mesmo/
  10. https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/04/29/volume-ou-valor-producao-ou-resultados-quantidade-ou-qualidade/

Aqui a matéria que deu origem a este post:

Para saber mais sobre o NHS e suas reformas (pode baixar o livro inteiro, aproveitem, é de graça!)

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