Da violência policial no DF e alhures

Para começar, se me permitem, conto duas histórias inteiramente pessoais. No início dos anos 2.000 eu estava em Salvador com meu filho, Mauricio, que acabara de se formar em Arquitetura na UFMG e tinha interesse em conhecer e documentar as obras de grandes arquitetos brasileiros. Na época, ele não morava em Brasília como hoje, mas vinha aqui com frequência para me visitar e tinha um portfólio repleto de fotos com as obras de Niemeyer e do projeto de Lucio Costa. Em Salvador era sua primeira visita e logo que dispusemos de um tempinho fomos conhecer o Centro Administrativo da cidade, onde predominavam as obras do arquiteto Lelé (João Filgueiras Lima) e ali Maurício pôs-se a fotografar, com certa volúpia, alguns dos prédios do conjunto. Em certo momento, ele se distanciara de mim, mas pude observar, mesmo de longe, que estava em animada interação com um grupo de policiais militares. Aliás, logo percebi que “animação” não era exatamente palavra condizente com a cena. Quando me aproximei vi que os policiais haviam apreendido sua câmera e ameaçaram mesmo levá-lo preso se ele insistisse em argumentar para reaver seu equipamento. Tentei usar minhas prerrogativas de pai e pessoa mais velha, mas foi em vão. Eles o acusavam de estar fotografando o Palácio de Governo, o que, segundo eles, era proibido. Meus argumentos e os dele eram de que não havia ali nenhum indicativo que proibisse tal atitude, mas foram em vão. Conversa vai, conversa vem, pude perceber que havia espaço para uma “negociação”, embora isso não fosse colocado de modo explícito. Não cedemos, mas eu solicitei que me colocassem em contato com o oficial do dia ou alguém assim, pois os três ou quatro que nos cercavam eram simples soldados, sem maior graduação. Com muito custo, através do meu celular, me colocaram em contato com um tenente, que começou resistindo, mas depois de me ouvir por alguns minutos acabou pedindo que eu passasse o telefone para um dos agentes presentes. Ato contínuo a câmera nos foi devolvida, mas o filme (era no tempo das câmeras com filme) retido. Eu agradeci, começamos a nos retirar e resolvi acrescentar um comentário, que depois percebi ser meio sem sentido, porém tentando mostrar agradecimento: que era uma satisfação perceber que a felizmente a polícia era também movida pelos direitos humanos, ao que um dos meganhas respondeu de pronto: esse troço de direitos humanos tá é acabando com a polícia. Pano rápido. Vamos à outra história…

Poucos anos depois, o cenário era o DF e o personagem meu filho mais novo. Flavinho, na época com três ou quatro anos. Caminhávamos pela quadra onde morávamos quando cruzamos com uma dupla de policiais em serviço. Ele se desviou e me pediu colo, no ato, talvez pela influência da babá, moradora da periferia e certamente boa conhecedora das ações da Polícia, mas eu o tentei acalmar: não se preocupe, filho, eles são amigos, estão aqui para proteger a gente. Isso foi dito em alto e bom som, como uma referência positiva aos policiais, e eu tenho certeza que eles ouviram. Meu objetivo era prestigiá-los, além, de certa forma, instilar alguma noção de civilidade no pequeno. Pois bem, os policiais continuaram a me olhar com indiferença, verdadeira cara de paisagem, e não se dignaram a nos cumprimentar ou dizer alguma coisa positiva, por mais discreta que fosse. Foi como se nada tivesse acontecido.

Este segundo episódio, sem dúvida, é bem mais suave que o outro. Mas ambos demonstram a regra férrea que rege as relações das polícias com os cidadãos comuns no Brasil: violência, desconfiança e, no máximo, indiferença.

Isto posto, vamos trazer e discutir alguns dados sobre a violência policial no Brasil e no DF, acrescentando algumas comparações com outros países, conforme informações constantes do Mapa Brasileiro de Segurança Pública, edição de 2025 e outras fontes (ver links abaixo).

No nosso país, as mortes decorrentes de ações policiais, previstas como excludentes de ilicitude no Código Penal Brasileiro, apresentaram queda pelo terceiro ano consecutivo. Em 2024, foram registradas 6.134 mortes em todo o território nacional, representando uma redução de 4,02% em relação a 2023, quando foram contabilizadas 6.391 ocorrências. A média diária de mortes por intervenção de agentes do Estado também evidencia uma diminuição, em comparação com anos anteriores; a taxa de letalidade também apresentou redução, sendo 2,89 mortes por 100 mil habitantes em 2024, inferior à taxa de 3,02 registrada no ano anterior, resultado que confirma o padrão de queda de anos anteriores. Entre as regiões do país, apresentaram taxas superiores à média nacional a região Norte (4,56 mortes por 100 mil habitantes) e a Centro-Oeste (4,07), enquanto a região Sul apresentou a menor taxa (1,66). Em termos do número absoluto de mortes, a região Nordeste mostrou o maior volume de casos em 2024, com 2.281 registros; a Região Sul apresentou o menor número absoluto, com 518 mortes. Os maiores decréscimos percentuais foram assim registrados: Roraima (61,11%); Pernambuco (44,17%) e DF com 41,61%. Mas não nos animemos muito, isso significou uma redução de 24 para 14 casos, o que ainda é muito alto para os padrões internacionais, como se verá adiante. A análise por UF revela cenários díspares: 09 estados apresentaram aumento no número de mortes por intervenção policial, com destaque para São Paulo, que registrou crescimento de 61,31%, passando de 504 em 2023 para 813 em 2024 (a atuação de Tarcísio de Freitas, tal o “bolsonarista moderado” certamente explica tal cifra escandalosa…). Mas mesmo a Bahia, com seu governo do PT, foi o estado com maior número de mortes, com 1.557 registros, a quarta parte do total nacional. 18 estados apresentaram queda, com liderança de Roraima, que mostrou diminuição de 61,11%, com boa performance também do RJ, com a maior redução em números absolutos, com 172 mortes a menos que em 2023, equivalendo a uma queda de 19,75%.

Discriminando um pouco mais os dados.

Em termos de Brasil, a taxa de mortes por 100 mil habitantes provocadas pela polícia daqui do DF é de 0,47, enquanto a cifra máxima para o país é a do AP (17,06), seguida de BA (10,48); para o Brasil, 2,89. No outro extremo, com taxas mais próximas à nossa, ou seja, menores do que 1,0 estão RO, RR, PE, PI, MG E SC. É claro que alguns desses casos podem estar comprometidos pela carência ou má qualidade da informação.

Em termos mundiais os dados comparativos são simplesmente chocantes. A polícia brasileira mata exageradamente: quase três vezes mais que a média de 15 países da OECD. Só no Brasil, em 2023, foram quase 6,4 mil mortos, enquanto neste grupo de países pouco menos que 2,3 mil. Em relação a África do Sul, que tem uma polícia especialmente violenta, a nossa cifra nacional a supera a daquele país em sete e meia vezes. Ainda comparando países, a taxa de mortes (por milhão), que é de 30,08 no Brasil, não passa de 4,0 nos EUA, no México, na África do Sul e mesmo na nossa vizinha Argentina (2,23). Para nos causar inveja estão a Itália, a França e o Reino Unido, onde tal indicador é menor ainda que 0,10. Mesmo na Índia, tão ou mais pobre e desigual que o Brasil, ela mal passa de 1,0.

Isso não diz tudo, claro. A violência policial, que tem seu ápice nas mortes, também é praticada de muitas outras maneiras: espancamentos; racismo e outras formas de preconceito (mulheres e LGBT, por exemplo); extorsões; apreensões indevidas; omissão de atendimento e por aí a fora. Mas certamente a mortalidade é um indicador poderoso e revelador dessa verdadeira catástrofe humana que ocorre no Brasil, qual seja a violência praticada por agentes públicos, que deveriam estar protegendo a população e não violentando-a. O que acontece hoje em São Paulo e na Bahia é um bom exemplo do que pode nos reservar o futuro, caso se deixe este horror correr solto e sem controle.

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