Resiliência é uma palavra que tem origem na metalurgia, significando a capacidade dos metais em manter ou voltar à sua forma original mesmo após serem estressados pela temperatura ou esforços mecânicos – ao algo assim. A psicologia também utiliza o termo, como um aspecto positivo da personalidade, que faz com que as pessoas sejam capazes de manter o élan vital mesmo após serem expostas a traumas profundos. Curiosamente, em versão mais atual, gerada no período pós pandemia, esta palavra tem sido utilizada também em relação aos sistemas de saúde. É do que trata este artigo da tradicional revista médica britânica, The Lancet, em atualíssima matéria, em edição para as Américas datada de outubro de 2025 (ver link), cuja síntese, traduzida e adaptada por mim, trago para os leitores deste blog.
O conceito de Funções Essenciais de Saúde Pública (FESP), é aspecto fundamental na abordagem de Atenção Primária à Saúde (APS), e fundamental para compreender a chamada resiliência dos sistemas de saúde, particularmente durante emergências, como foi o caso da recente pandemia de Covid. O presente estudo se aprofunda sobre as lacunas eventuais na implementação das FESP e o fortalecimento (ou não) da resiliência do sistema de saúde em 17 países da América Latina e do Caribe, mediante aplicação de questionários a gestores nacionais, através de uma Abordagem Delphi modificada. Foram identificadas variadas capacidades de implementação das FESP e definidas duas dezenas de tópicos para direcionar as políticas e os investimentos necessários. Entre os temas levantados estão a vigilância; as respostas a emergências; os sistemas de informação em saúde; o desenvolvimento de políticas; a alocação de recursos e a equidade em saúde.
Os achados do referido estudo confirmam a convergência entre os conceitos de FESP e de APS e de sua importância na construção da resiliência nos sistemas de saúde, cabendo aos países desenvolver planos de ação abrangentes com roteiro individualizável, através de abordagens estruturadas e baseadas em evidências.
A APS, é bom lembrar, representa uma abordagem de ação setorial bastante abrangente, envolvendo toda a sociedade, voltada à organização dos sistemas de saúde, englobando em si as funções de saúde pública, as políticas setoriais múltiplas e o empoderamento da comunidade, constituindo ainda um nível específico de cuidado que serve como o primeiro ponto de contato, oferecendo atendimento acessível, contínuo e coordenado aos usuários.
Já as FESP têm sido cada vez mais reconhecidas como fundamentais para a dinâmica dos sistemas de saúde, por incorporarem ações essenciais, como prevenção de doenças, promoção da saúde e gerenciamento da saúde da população, ampliando o alcance dos sistemas de saúde além do cuidado individual e clínico, abordando necessidades de saúde da população mais amplas e determinantes sociais da saúde. Integrar este par de conceitos (FESP e APS) fornece uma estrutura operacional para ações de saúde pública proativas e sustentáveis, apoiando tanto a prestação rotineira de serviços quanto as capacidades necessárias para uma resposta eficaz a emergências, atendendo as necessidades de saúde da população de maneira holística, fortalecendo assim a resiliência.
Resiliência, aplicada aos sistemas de saúde, é um conceito multidisciplinar que vem evoluindo bastante, podendo ser definida a como capacidade de antecipar, absorver, adaptar-se e se recuperar de choques, mantendo as funções essenciais. Isso sido refinado e expandido nos últimos anos, para incluir a capacidade de aprender e transformar em resposta adequada tanto os choques agudos quanto as situações contínuas [FA1] de estresse. Perspectivas interdisciplinares, particularmente da engenharia da resiliência, enfatizam a necessidade de capacidade proativa, da aprendizagem contínua e da adaptabilidade, dos sistemas de saúde, e não apenas de sua capacidade de recuperação. A resiliência não representa, portanto, uma propriedade inerente aos sistemas de saúde ou das FESP, mas sim um resultado de esforços deliberados para construir tal capacidade institucional, promover governança robusta e fortalecer uma força de trabalho qualificada e adaptável.
Quanto à aplicação prática disso, é importante levar em conta o contexto do país e o impacto potencial nas prioridades selecionadas, cabendo assim fazer uma avaliação profunda das capacidades e lacunas relativas às FESP em cada país, de forma a desenvolver planos de ação consequentes e adaptados adaptam aos requisitos locais.
O estudo aponta que na América Latina, e com certeza também no Brasil, o foco da mudança deveria incluir o aumento e a garantia de continuidade dos investimento em saúde, o aprimoramento da colaboração intersetorial e a melhoria da integração do cuidado para fortalecer as capacidades de desempenho, aspectos que se desdobram na necessidade permanente de se adaptar estratégias no enfrentamento dos impactos recorrentes nos sistemas de saúde, como no caso dos desastres naturais e migrações, além da habitual fragmentação na organização dos serviços. Isso requer, naturalmente, revisão e atualização constantes, na medida que novas evidências possam surgir, novas tecnologias se desenvolverem e evoluírem as circunstâncias nacionais, de forma a garantir que as políticas de saúde permaneçam capazes de dar respostas às necessidades em mudança. Caberia, assim, repetir tal exercício de revisão de forma regular, com envolvimento das diversas partes interessadas, mesmo externas ao setor de saúde, o que será fundamental para promover a desejável melhoria contínua.
Em conclusão, abordar as lacunas identificadas na integração das FPEP e da APS, particularmente no desenvolvimento da capacidade da força de trabalho e da alocação aprimorada de recursos, constituem fatores essenciais na resposta adequada emergências de saúde pública e, por consequência, no fortalecimento da resiliência do sistema de saúde. Isso implicar não só em avaliações rotineiras das FPEP, como na correta definição de áreas-chave de atuação e na priorização de investimentos e apoio político.
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Eu já havia publicado aqui algo sobre Resiliência em Saúde, sob o foco da pandemia de COVID. Veja abaixo
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Ainda dentro de tema da resiliência, no caso do nosso sistema de saúde, não há dúvidas que enfrentamento da pandemia revelou fortalezas, mas também fragilidades do SUS. Por um lado, seu caráter de sistema de saúde universal, integral e gratuito garantiu, apesar dos pesares, o atendimento a tempo e a hora de milhares e milhares de pessoas doentes ou por adoecer. É nisso é que podemos classifica-lo com um sistema de fato resiliente, essencial para efetivação do direito à saúde, mas também para a manutenção de atividades sociais e econômicas. Por outro lado, suas fragilidades, agravadas pela crise política e econômica e pela condução irresponsável do governo federal à época, ficaram evidentes. Efeito colateral da pandemia foi a ter gerado uma multidão de pacientes invisíveis, ou seja, pessoas portadoras de comorbidades e diversas patologias que acabaram sem atendimento ou tendo o mesmo retardado, pelo excesso de demanda durante o período crítico da pandemia. Isso acarreta o desafio de enfrentar a fila de quem ficou para trás, dos muitos problemas de saúde que não foram tratados e que podem ter se agravado. Tornam-se necessários, portanto, reforços à organização dos serviços bem como do aporte financeiro do SUS. Mas uma coisa é certa, mesmo com mais de 700 mil mortos os especialistas convergem na afirmativa de que sem o SUS, mesmo fragilizado, poderia ter sido muito pior.
- Saiba mais:
- The Lancet Regional Health – Americas – Volume 50, October 2025, 101237
- Essential public health functions for primary health care resilience in Latin America and the Caribbean: a regional assessment – ScienceDirect
- http://dx.doi.org/10.1590/1679-395120200185
- Estudo revela como a pandemia afetou os atendimentos no SUS | Agência Fiocruz de Notícias
- Pandemia, Sindemia e o Mundo Invisível – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO!
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- Bolsa família & Saúde
- O Bolsa Família não apenas transformou vidas, mas também impactou a saúde pública no Brasil. Um estudo no The Lancet Public Health mostra que o programa reduziu mortes e hospitalizações, destacando a força de políticas sociais integradas ao SUS. De 2000 a 2019, foram mais de 713 mil mortes e 8,2 milhões de internações evitadas, resultados da sinergia entre transferência de renda, políticas de saúde e o trabalho das equipes de saúde da família. Esses números representam vidas salvas e comunidades fortalecidas. Projeções indicam que, com a ampliação do programa e o fortalecimento das redes de saúde, até 680 mil mortes poderão ser evitadas até 2030. Essa conquista é fruto de um esforço coletivo de sociedade, profissionais de saúde, gestores e pesquisadores, que transformam as condicionalidades em cuidado real. Convido você a ler o texto completo em nosso site e refletir sobre como fortalecer ainda mais o SUS, compromisso de todos nós.
- Leia a matéria completa: Entre vidas e números: o legado do Bolsa Família na saúde pública brasileira | Plataforma Região e Redes

