Negacionismo(s)

Imagino que esta seja uma palavra antiga na língua, mas que vem sendo usada com bastante frequência nos últimos anos. Sua aplicação mais usual refere-se à negação da existência da pandemia de Covid ou, pelo menos, recusa de enquadrar tal fenômeno dentro de uma lógica científica, se transformando em um quase sinônimo de bolsonarismo, em sua vertente, digamos, sanitário-cultural. Mas tal palavra espelha um conjunto muito mais amplo de situações, se estendendo também para fora do campo da saúde, dentro de um espectro que vai da ignorância pura e simples dos fatos à recusa em compreendê-los; da postura de avestruz em relação à realidade, à crença em realidades paralelas; das explicações fantasiosas dos fenômenos da vida ao crédito irrestrito às maluquices que vicejam nas redes sociais. Exemplos como o da terra plana, da crise climática ou da inocuidade ambiental da exploração do petróleo não faltam, ao contrário, abundam (palavra adequada…) em toda parte. Aliás, parece mais correto falar de negacionismos, assim no plural, pois as evidências mostram que quase sempre as negações da realidade se estendem a áreas diversas do conhecimento humano, como uma mancha de óleo (ou de esgoto) a se espalhar no oceano. O fato é que prospera no mundo atual o fenômeno traduzido por tal palavra, seja no singular ou no plural, já em vias de se transformar em uma mais uma marca essencial dessa nova era de pós-verdades, ilusões coletivas e manipulações do inconsciente coletivo de variadas naturezas, já antecipadas por Orwell em seu famoso 1984. Na área da saúde os efeitos perversos do negacionismo são evidentes e em muitos aspectos se fazem notar, como é o caso da queda acentuada das imunizações, verificada não só no Brasil como em outros países.

A crescente onda mundial negacionista na ciência, apoiada em maciça circulação de fake-news tem como um de seus alvos principais tal questão das vacinas. Aqui, mais do que em outros setores, a máxima goebbeliana se aplica à perfeição: uma mentira repetida muitas vezes se transforma em uma verdade. E este caso traz a pior das consequências, que é o risco de vida real para muita gente. Vivemos em um mundo no qual abunda a informação, porém de forma violenta e sem regras. Neste aspecto, a OMS registra que nada menos do que 138 países reportaram casos de sarampo no último ano (2024), coisa inédita, sendo que em 61 sob a forma grandes surtos. O caso do sarampo não é apenas isolado, pois esta é uma doença tida como controlada em grande parte dos países, com os dados apresentados demonstrando um forte retrocesso recente, agravado por novos conflitos territoriais e mudanças climáticas (outro dos objetos alvo dos negacionistas modernos).

Um caso histórico (e recente) disso é o que ocorreu na África do Sul entre 1999 e 2008, quando o então presidente Thabo Mbeki, bem como sua ministra da Saúde (antecessora ideológica de Pazzuelo), negaram a gravidade do surto da Aids no país, que hoje detém quase 20% dos infectados do planeta, nada menos do que quase oito milhões de pessoas.

É assim que floresce em todo mundo um movimento antivacina, tendo como uma das vozes de destaque o atual Secretário (Ministro) de Saúde dos EUA, Robert Kennedy, que contesta sem nenhum embasamento científico a eficácia e a segurança da imunização. Por essas e por outras, o índice de cobertura vacinal cai em toda parte e que diversas doenças contagiosas erradicadas ou perto disso voltem a surgir, às vezes até com mais intensidade o que antes.

O ato de negar fatos evidentes e comprovados infelizmente não anda sozinho. Associam-se a ele as teorias e discursos conspiratórios e sem aprofundamento; as disputas ideológicas e de interesses políticos ou religiosos; os desejos subconscientes demasiadamente humanos de escapar da realidade; as situações de instabilidade social e crises; a busca de fantasmas e bodes expiatórios e outras modalidades de fuga da realidade; o descrédito da ciência, da pesquisa e das universidades; a tendência de se confundir fatos reais, inclusive científicos, com opiniões pessoais – e assim por diante.

O negacionismo e seus tentáculos

São variadas a manifestações associadas ao negacionismo, não só da ciência como de outros campos, confirmando o fato de que não opera sozinho. Vejamos algumas delas.

Vivemos uma era de valorização desmedida de práticas e praticantes das ciências da saúde, de forma independente de seu respaldo científico, particularmente na saúde mental, mas também em outras áreas. Isso tem como possível raiz o fenômeno da nêmesis da medicina, já explicitado por Illich algumas décadas atrás, derivado da pretensão histórica da mesma em se meter na resolução de problemas que vão além de sua alçada, deixando assim as pessoas frustradas e dispostas a procurar ouras soluções, mais humanas ou, pelo menos, não tanto tecnológicas.

Ao lado disso, veem-se tentativas forçadas de legitimação de tais práticas carentes de maior fundamento científico, por pressões corporativas, econômicas ou simplesmente por populismo sanitário, como acontece, por exemplo, nos programas oficiais de promoção de práticas integrativas e complementares (PIC), como aquele desenvolvido pelo Ministério da Saúde no Brasil. No limite, uma forma de medicina barata e destinada aos mais pobres, já que os mais bem aquinhoados continuarão a pagar e usufruir aquilo que a ciência já lhes oferece – no âmbito das drogarias.

Percebe-se, também, o fenômeno relativamente contemporâneo da inserção, nas franjas da ciência oficial, de temas que talvez não se adequem aos postulados canônicos e normativos da mesma, como é o caso da verdadeira febre das disciplinas voltadas para a espiritualidade em algumas faculdades de ciências da saúde. Não seria o caso de, mais uma vez, dar a César o que é de César, ou seja, deixar que tal tema seja tratado e aprofundado dentro do terreno mais propício da Filosofia, da Teologia ou das Ciências Sociais?

Está presente também no cenário a insistência a respeito da emergência de uma suposta “Nova Ciência”, uma categoria de criação precipitada, já que na verdade é (ou deveria ser) inspirada e fundamentada pelos postulados da mesma Ciência – nem velha nem nova – que abrigou Newton, Descartes, Einsten, Bohr e outros. O que se vê é um território alegremente ocupado por físicos e outros praticantes, que ao que parece procuram transferir, dos territórios epistemológicos próprios a seu campo de origem, conceitos e fórmulas estranhas a outros campos, o da saúde, por exemplo, justificando assim, muitas vezes, tal invasão de territórios e dando respaldo a teorias sem comprovação.

Neste último aspecto é que ocorre a migração não crítica de conceitos, uma verdadeira invasão de um campo a outro, tendo a palavra quântico, por exemplo, como tópico verdadeiramente emblemático, quando se fala, como tem sido costume entre tais praticantes, de cura quântica. psiquiatria quântica e expressão afins.

Soma-se a isso tudo os riscos potenciais trazidos pelo advento da Inteligência Artificial (IA), que tem se mostrado capaz de realizar simulações aparentemente perfeitas da realidade, gerando novas formas convincentes de algo que é, ao fim e ao cabo, falso. No Brasil, o médico Drauzio Varela, uma liderança respeitada, tanto em termos científicos como humanos, tem sido vítima contumaz de tais artifícios, aparecendo em propagandas falsas de medicamentos e procedimentos, o que não deixa de ser também um modo de negacionismo – dos mais perigosos, aliás – que é negar o que é real de fato, em troca de uma simulação tecnológica.

Que não se esqueça, também, que alguns fatores sempre exerceram sobre a humanidade uma atração insuperável, entre eles, a magia da novidade; a crença nos saltos no conhecimento já existente, a partir de seres luminares; além do maravilhamento diante do que é ou parece ser “alternativo”, para não falar das situações de legítimo desespero humano diante da perda de esperança na ciência, na medicina, na vida, enfim, o que leva as pessoas a aderirem a qualquer coisa – ou à negação disso – de forma a lhes trazer de volta a esperança perdida.

Aspecto complementar é a associação disso com as atuais tendências antissistêmicas, que á se expandiram pra valer na política e parem ter chegado definitivamente na ciência, inclusive no campo da saúde. É dentro de tal categoria que assumem papel e respeito inusitado nos tempos atuais a valorização, muitas vezes acrítica, de determinadas práticas de saúde vernáculas ou “indígenas”, de forma independente de sua confirmação através da ciência,

O que nos diz Zygmunt Bauman sobre negacionismo

Zygmunt Bauman, um filósofo polonês contemporâneo, desenvolveu um conceito sociológico original, o de modernidade líquida, para configurar uma época em que as relações sociais se tornaram frágeis, fugazes e maleáveis, à maneira dos líquidos. Tal mudança se opõe ao conceito de modernidade sólida, vigente secularmente até meados do século 20, quando as relações sociais eram mais firmes e duradouras. Para ele tal mudança não representa propriamente uma ruptura com o estatuto anterior, mas sim uma continuação, só que conduzida de maneira diferente.  A tal liquidez pode parecer vantajosa em alguns aspectos, mas segundo Bauman ela pode ser também porta aberta para distopias um tanto sórdidas. Tenho a impressão de que estes conceitos ligados ao negacionismo, ou melhor, aos negacionismos, também se filiam a este estatuto frágil, fugaz e maleável, que permeia as relações humanas contemporâneas, bem como os modos de se estar no mundo.

Os negacionismos de hoje devem muito à internet a ao prestígio e difusão das chamadas redes sociais. Bauman vê nisso uma marcante ambivalência, pois tais redes também estão na origem e na difusão de movimentos políticos voltados ao interesse geral. Ele aprofunda tal contradição, lembrando que as pessoas costumam usar a internet não apenas para expandir sua própria visão de mundo, mas para fechá-la dentro de “zonas de conforto”, ou seja, espaços idílicos sobre os quais é preciso indagar a que conduzem de fato e de seu enraizamento na realidade. Os movimentos antissistema, por exemplo, como é o caso de muitos dos negacionismos, não teriam a internet como causa, mas apenas como veículo. Existiria em tal cenário uma autêntica crise de confiança na democracia, derivada da contradição de se viver num mundo globalizado, de enorme interdependência, embora com a presença de um instrumento superado pela história e em vias de ruir, a crença nas vantagens de um Estado nacional, em um tempo em que, segundo ele:  uma decisão tomada numa capital realizava-se no território daquele país e não valia cinco centímetros adiante.

Ao pesquisar sobre tal assunto, encontrei uma referência das mais interessantes, brasileira, por sinal. Chama-se De A a Z: um guia para entender os negacionismos e em anexo vai uma síntese de a livro, além da referência completa. Vejam a seguir a precisão com que os autores estabelecem conceito de negacionismo:  

Negacionismo é um fenômeno persistente, mundial, multifacetado e que mira em diferentes objetos. Com origens em manifestações pontuais, ele passou a ser gradativamente integrado em campanhas políticas com inclinações autoritárias e antidemocráticas. Além disso, tornou-se uma estratégia política deliberada, com o propósito de promover o descrédito da comunidade científica e histórica, ao mesmo tempo em que atua como um instrumento para mobilizar grupos de interesse em busca de objetivos políticos específicos. É a partir dessa manifestação que surge a importância de se analisar o conceito em camadas, destacando como os diferentes negacionismos ganharam forma no Brasil e penetraram em tantas áreas da sociedade.

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