No final dos anos 80 começamos a prestar atenção, no Brasil, ao que acontecia no Quebec em matéria de saúde. Eu fazia mestrado na ENSP/Fiocruz e começava uma dissertação sobre a construção do SUS. A experiência canadense, já com uma década de consolidação, já nos parecia sob medida para melhor compreender tal objeto. Fui, vi e aprendi muito por lá, embora as diferenças culturais e políticas entre os dois países sejam imensas. Uma coisa me chamou a atenção especialmente: a preocupação geral com a informação aos citoyens usagers . Pra começar, no Canadá, desde as embalagens de pastas de dentes e refrigerantes até os manuais complexos dos equipamentos de informática – é tudo compulsoriamente bilíngüe. Nas unidades de saúde me fartei em recolher folders, folhetos e outros tipos de materiais muito bem impressos, para levar de lembrança e mesmo me inspirar, a começar por uma inédita (para nós) Chart des Usagers, na qual todos ficam sabendo do que é oferecido ali, dos direitos dos que frequentam o serviço, para onde dirigir reclamações, além dos nomes dos responsáveis e demais membros das equipes locais. Achei refinado e de muito bom gosto, também, o costume de que, na porta dos serviços públicos, de qualquer natureza estejam afixadas as fotos (de pessoas sorridentes, em atitude receptiva, não aqueles 3×4 burocráticos) dos que ali trabalham, com os respectivos nomes, funções e horários de trabalho. Isso me voltou à mente há alguns meses, ainda naqueles tempos em que quem ocupava o Ministério dito “da Saúde” era uma equipe de profissionais da área, não um plantel de fardados sob o comando de um pretenso “especialista em logística”, quando foi anunciada uma proposta de “carteira de serviços” em cada unidade do SUS. Isso seria bom ou ruim?
Continue Lendo ““Carteira de Serviços” em saúde: sim ou não?”Questão de Ciência….
Há pouco mais de um ano (29 de agosto 2019) postei aqui um texto no qual comentava políticas das SES-DF e do próprio Ministério da Saúde que visavam oferecer ao público as chamadas praticas alternativas, integrativas ou complementares. E arrematei questionando: seriam elas também efetivas? Tal pergunta segue ecoando, impertinente. Com efeito, eu alertava: colocar ao alcance de todos, coisas como apiterapia, aromaterapia, cromoterapia, geoterapia, imposição de mãos e terapia de florais, chazinhos diversos de quintal é coisa de maior responsabilidade. No limite, já se saberia: para os pobres os chazinhos de quintal; para os mais ricos as drogarias comerciais e os fármacos que bem ou mal os livrarão de suas mazelas. Afinal, o que ninguém esclarece é que para um determinado princípio ativo vegetal se transformar em medicamento ativo são necessários anos de pesquisa e outros tantos de desenvolvimento industrial – além de investimentos de centenas, milhares ou até milhões de Dólares ou Euros. Na ocasião me deparei com a existência de um Instituto Questão de Ciência (IQC), sediado em São Paulo, cuja diretriz é “trazer a ciência para os grandes diálogos nacionais e globais em torno da formulação de políticas públicas. Ciência e tecnologia formam os alicerces da vida contemporânea. Por causa disso, questões de ciência estão por toda parte no mundo moderno, e têm papel crucial na alocação responsável de recursos públicos ou privados”. Hoje trago mais novidades a respeito de tal instituição, que considero das mais necessárias, ainda mais nestes tempos de negacionismo e ilusão frente àquele “museu de grandes novidades” de que falava Cazuza, que nos é apresentado a cada momento.
Continue Lendo “Questão de Ciência….”Tremores e trevas em meio à pandemia
Acabo de tomar conhecimento do lançamento do livro No tremor do mundo – ensaios e entrevistas à luz da pandemia, da Editora Cobogó, no qual diversos autores brasileiros, de várias áreas de conhecimento, tratam da repercussão social deste acontecimento que está mudando nossas vidas, qual seja esta fatídica pandemia de Sars-Covid-19. A obra procura não só construir em tempo real memórias desta época tão estranha, como também partilhar imaginações para o futuro, tentando antever o que nos aguarda como humanidade. Ainda não li e creio que a questão da saúde está sendo tratada ali, já que alguns dos autores são de tal área, como o neurocientista Sidarta Ribeiro. Mas de toda forma, diante de uma iniciativa tão necessária, me senti tentado a refletir também sobre o assunto, dentro do foco sanitário, o que ora compartilho com vocês, leitores. Penso que sempre é bom jogar um pouco de luz sobre as trevas e tentar alcançar estabilidade diante de um mundo que se agita em tremores e no qual nada mais parece ser sólido, tal e qual assistimos no presente momento.
Continue Lendo “Tremores e trevas em meio à pandemia”Hesio Cordeiro (1942-2020): in memoriam
Hésio Cordeiro se foi. Para quem não sabe de quem se trata, ele foi um dos principais agentes intelectuais (e mesmo operacionais) da nossa reforma sanitária dos anos 80, ou seja, da própria criação do SUS. Grande perda, não só para o SUS, que perde mais um de seus fundadores para lutar pela sua sobrevivência, mas para o próprio pensamento sanitário no Brasil, infestado hoje em dia por falsos profetas fardados ou dentro do figurino da Faria Lima. Hesio e Sérgio Arouca foram dois gigantes da luta intelectual pela saúde, nos anos 70 e 80, mas ao contrário de Arouca, Hesio era uma pessoa discreta, que nunca se embalou com a política partidária. Seu maior feito, para mim, foi o de ter saído diretamente – e com sucesso – de sua banca acadêmica na UERJ para a Presidência do INAMPS, nos anos 80, comandando diretamente a incorporação deste órgão ao SUS – ou, talvez, vice-versa. Convivi com ele na Comissão Nacional de Reforma Sanitária e nas lutas pela saúde ao longo da Assembleia Nacional Constituinte. É mais uma perda dentro de uma geração de lutadores autênticos em favor da saúde pública no Brasil. Faço a seguir algumas considerações sobre a era de lutas épicas que culminaram na criação de um inédito sistema nacional de saúde para o país, tendo na ativa profissionais de valor humano e intelectual da estatura de Hesio Cordeiro e outros.
Continue Lendo “Hesio Cordeiro (1942-2020): in memoriam”Saúde no Brasil: a Grande Marcha para trás…
O bolsonarismo como fenômeno político existe de fato, sendo inúmeras as análises disponíveis sobre o mesmo, seja de cientistas políticos, sociólogos ou jornalistas, que identificam e tipificam tal fenômeno. Por alguma razão o sufixo “ismo” é também aplicado a alguns governantes (trumpismo, lulismo, janismo, getulismo, bolsonarismo, por exemplo), mas não a outros. Com todos os defeitos e qualidades que possam ter, Obama, Dilma, FCH, Temer, entre outros, para ficar em exemplos recentes, não fizeram jus a tal epíteto. Mas não é bem isso que me ocupa no momento. A análise que pretendo fazer aqui, condizente com as minhas luzes e com um pé na realidade atual do país, é de caracterizar um fenômeno que me parece bastante notório hoje, qual seja o surgimento de um já influente bolsonarismo em saúde, que a meu ver reúne condições para ser delineado, até com certo detalhe. E ele se instala e se avoluma justamente no decorrer de uma paralisia sem precedentes, para não dizer atraso ou mesmo retrocesso, nas políticas de saúde do país, enquanto uma pandemia que já matou 160 mil brasileiros, ainda não perdeu seu fôlego assassino.
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