Saudades da era pré-SUS? Fala sério…

A recente onda de revival político instalada durante o governo que passou, com aquela história de que não houve ditadura no Brasil e também que nesta época o país era melhor do que atualmente, parece ter seus desdobramentos também no campo da saúde. Não é que outro dia na fila da farmácia um senhorzinho insistia em afirmar à mocinha à sua frente que na área da saúde “as coisas haviam piorado muito” e que bom mesmo eram aqueles tempos em que as pessoas dispunham de uma “carteira do instituto”? Quanto à primeira parte da afirmativa, poderíamos até lhe oferecer o benefício da dúvida, indagando: as coisas pioraram para quem? Mas a segunda parte, que fala da tal carteirinha, não tem perdão. É coisa de fato inafiançável (para dizer pouco…). Para quem não sabe o que é isso (afinal é coisa quase tão antiga no Brasil como o golpismo fardado) eu explico: houve uma época que o direito pleno à saúde era conferido apenas a quem tinha emprego formal e filiação aos antigos Institutos de Previdência (que depois se transformaram no INPS), ou seja, alcançava menos da metade da população do país. Então, como a saúde no país poderia ter sido considerada adequada em tais tempos? Eu fui testemunha disso, pois nasci, cresci e me formei em medicina debaixo de tal sistema, perdão, antissistema. Havia filas imensas em toda parte, nos serviços filantrópicos, públicos e até mesmo nos previdenciários; mortes em tais filas faziam parte da paisagem, da mesma forma que partos em taxis e viaturas policiais; morriam crianças aos montes por simples diarreias. Para quem podia pagar consultas e internações em cash tudo corria bem. Mas eram bem poucos os habilitados a isso. Isso para não falar na corrupção incontrolável que regia a contratação de serviços privados (a regra em tal sistema) pelos tais institutos. Alguém diria: mas filas e corrupção existem ainda… Concordo, mas vamos combinar: o SUS é uma solução, sim, embora apresente problemas, mas definitivamente não é um problema sem solução. Tenho apresentado e discutido aqui neste blog algumas dessas saídas. Hoje quero mudar o tom, trazendo três relatos (“casos”) de meu livro de memórias (Vaga, Lembrança – edição pessoal, Brasília, 2021), mostrando aos leitores uma ideia do que representavam, de fato, aqueles tempos em que, segundo pontificava o dito senhorzinho, a saúde era melhor do que no Brasil de hoje. Será?

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Escuta cidadã qualificada versus “controle” social

Com todo respeito, quando leio as leis e regulamentos existentes sobre a participação da sociedade nas políticas públicas no Brasil, especialmente na saúde, o que vejo são fórmulas burocráticas. Podem até ser bem intencionadas, mas seu caráter pesadamente formal e burocrático as torna pouco funcionais. Refiro-me diretamente, por exemplo, ao que nos oferece a Lei Orgânica do SUS, na qual se fala em paridade e poder deliberativo, além de conselhos formados por representações institucionais formais, mas não necessariamente representativas do conjunto dos interesses da sociedade. Não se preocupem, não me tornei, de repente, um herege em relação ao nosso sistema de saúde (embora pense que uma boa dose de crítica possa fortalecê-lo mais do que destrui-lo). É que essas coisas já estão superadas, se é que foram cogitadas, em realidades mais avançadas e dinâmicas do que a brasileira, em termos de democratização do Estado. Em tais questões, para mim seria o caso de nos esforçarmos em deixar de “fazer mais do mesmo”, em troca de inovar e incrementar métodos e conteúdos que valorizariam uma das mais importantes fatores introduzidos na administração pública contemporânea, quais sejam os mecanismos de instrumento de participação social. Vamos então, ao invés de “controle social” e outras alegorias congêneres, tão ao gosto da militância do SUS, pensar em Processos de Ausculta Cidadã Qualificada, nos quais a escolha dos cidadãos deve partir de requisitos menos formais, tendo como foco o interesse direto dos mesmos, seu grau de informação ou até mesmo sua representatividade em termos estatísticos.

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Voluntariado e Saúde

Visando inovar neste espaço, apresentamos hoje um diálogo entre Flavio Goulart e Henriqueta Camarotti sobre a atividade de voluntariado e suas implicações no setor Saúde, coisa que tem muito a ver uma com a outra. Aqui no Brasil somos testemunhas das várias entidades religiosas que se dedicam a isso, pelo menos em suas origens, com especial menção às Santas Casas de Misericórdia, cuja primeira unidade foi fundada no Brasil poucos anos depois da chegada dos portugueses. Sem esquecer das múltiplas entidades espíritas, evangélicas e de matriz afro, sem falar de muitas outras iniciativas derivadas diretamente da sociedade civil, sem qualquer ligação religiosa, que também fazem parte desta ação civil tão especial. Vamos ao tal diálogo, então, ao qual convidamos os leitores a participar.

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Gente rara, mas não invisível

Uma doença pode ser considerada rara, segundo a Organização Mundial de Saúde, quando afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 para cada 2 mil pessoas. No Brasil a estimativa é de que existam pelo menos 13 milhões de pessoas com doenças deste tipo; no mundo seriam 300 milhões. Acredita-se que que existam de seis a oito mil tipos dentro de tal categoria. Entre seus portadores, 30% morrem antes dos cinco anos de idade; 75% são crianças e 80% têm origem genética. Alguns desses pacientes não suportam a luz solar; outros não enxergam; muitos têm dificuldades de movimentação; mais outros dependem de oxigênio em balões por toda a vida; há os que dependem de assistência médica contínua; muitos morrem cedo, muito cedo. É muita gente, muito sofrimento, sem dúvida. O que é apenas raro em uma visão do senso comum significa, para esses indivíduos, um fator que lhes avassala a existência, que lhes afeta de maneira extrema, que muitas vezes aniquila sua vida social e causa enormes perdas materiais para suas famílias. Por mais que as cifras globais sejam pequenas, trata-se de uma situação que, em termos quantitativos individualizados, representa nada menos, nada mais, do que 100% de impacto na vida de cada uma das pessoas afetadas. Trago aqui hoje um pequeno exercício ficcional sobre esta questão.

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