Terapia Comunitária Integrativa: uma luz sobre um mundo de desigualdade e conflitos

[Trago hoje aqui um post escrito a quatro mãos com minha querida amiga Maria Henriqueta Camarotti, psiquiatra e propagadora de tecnologias sociais e de saúde no DF]. 

A cena apresentada abaixo é uma ficção, mas se prestarmos bem atenção veremos que ela pode ocorrer na atualidade em qualquer parte, na nossa cidade inclusive. Imaginemos um grupo de cidadãos, principalmente formado por mulheres, que passe algumas horas em uma fila, demandando algum serviço público. Poderia ser para matricular um filho na escola, ou obter um cartão para o Bolsa Família, mas para ficarmos na área que dá significado a este blog, suponhamos que seja em uma unidade de saúde, à espera de uma vaga no atendimento. Como geralmente acontece, as pessoas começam a conversar entre si e o tom costuma ser ligado às dificuldades que enfrentam no dia a dia de suas vidas de pessoas pobres (porque rico, como se sabe, não entra em fila de nenhuma espécie).

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O segredo de Oeiras

Oeiras é uma cidade do Piauí, um pouco mais do que pequena (cerca de 36 mil habitantes), bem no meio do estado, longe do mar, do Brasil dito “desenvolvido” e mesmo da capital Teresina (280 km). Tem antiguidade e cultura própria, mas quanto ao mais tinha tudo para ser mais um remoto e abandonado pedaço do vasto Brasil, como tantos outros, aliás, e como tal vítima de desprezo e preconceito. Mas na Educação a cidade brilha! Tem sido assim desde 2013, quando a Secretaria Municipal de Educação passou às mãos de uma gestão competente, de educadores verdadeiros, chefiados por uma figura iluminada chamada Tiana Tapety, que vem fazendo crescer os indicadores educacionais no município, bem retratados pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) no qual Oeiras superou a meta proposta para 2021, atingindo a nota 7,4 em 2019, versus reles três (!) pontos 15 anos antes. A expectativa atual para o Brasil não passaria de 6,0 em tal quesito e isso já colocaria a cidade em condições de ser comparada com alguns países desenvolvidos. A equipe de Tapety não deixa por menos, seu objetivo é de que a cidade seja reconhecida pela excelência da educação e mesmo vir a se tornar uma “exportadora de cérebros e de mudança de paradigma na educação”. E orgulhosamente ela acrescenta: “Agora as escolas particulares ligam para oferecer ajuda aos meninos, como se eles já tivessem vindo prontos”, embora ainda não saiba como lidar com o assédio sobre os estudantes que já ganharam 18 premiações na Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. Qual o segredo de Oeiras, afinal? Será que nas outras políticas públicas, na saúde, por exemplo, tal feito se repete?

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Que os corruptos tenham algum temor e que os honestos sejam de fato incentivados

Não conheço ninguém que defenda a corrupção como algo aceitável. Mas conheço muitas pessoas ditas “de bem”, “de moral ilibada” que não se importam em pedir um atestado médico falso; negociar com o chefe da repartição um ou mais dias de ausência depois que as férias acabaram; aceitar fazer pagamentos sem recibo (ou prestar serviços negando recibo); cumprir carga horária apenas parcialmente; propor ao guarda um “agradozinho” para que ele retire a multa; omitir na declaração do IRPF aquela renda de aluguel – e por aí vai. Para não falar daqueles que recebem depósitos cuja procedência não explicam; carreiam às suas contas bancárias uma parte dos vencimentos dos funcionários a eles subordinados; contratam parentes e apaniguados para cargos públicos; nomeiam gente incompetente para estes mesmos cargos etc. Isso é corrupção também. Sem dúvida, uma coisa é certa: a corrupção existe e impregna nossa sociedade, sem que isso seja monopólio brasileiro, embora nossa “produção” nesta área seja verdadeiramente tsunâmica – ou amazônica (antes do desmatamento). Na saúde, então, nem se fala.

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Como explicar o bolsonarismo e o negacionismo em saúde

O bolsonarismo como fenômeno político existe de fato, sendo inúmeras as análises disponíveis sobre o mesmo, seja de cientistas políticos, sociólogos ou jornalistas, que identificam e tipificam tal fenômeno. Seja lá o que for, para mim, este “ismo” é mais uma questão de caráter do que de ideologia. Ou ainda de ética (ou estética). Cabe a pergunta: existe um bolsonarismo em saúde? Para definir um pouco melhor o fenômeno, recorro ao jornalista Philipp Lichterbeck, que escreve no portal Deutsch Welle, o qual,apesar de estrangeiro, parece conhecer muito bem o Brasil, ao descrever os “cinco pilares” do fenômeno, que na verdade dão sustentação a todo um pensamento da extrema direita no Brasil. São eles: (1) militarização; (2) atendimento a uma suposta vontade do povo; (3) messianismo; (4) hostilidade à ciência e (5) anticomunismo. Alguns deles são especificamente brasileiros, outros pertencem ao conjunto de ideias da nova direita internacional. Lichterbeck alerta que é fácil considerar simplesmente “ridículos” o presidente e seus seguidores, já que eles vivem dando oportunidade para isso, mas que há certa metodologia por trás dessa loucura, e reduzir o caso a mero histrionismo de um sujeito “sem noção” seria um erro fatal. Mas além de tal visão de um jornalista, trago hoje aqui algo mais filosófico, ou seja, as reflexões de Zygmunt (ou, aportuguesando, Segismundo) Bauman.

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Doenças no Planalto Central: passado e presente

Se há uma coisa sobre a qual os saudosistas se enganam é no que diz respeito às condições de saúde da população, no Brasil inclusive. Em relação a governos passados, certo saudosismo até faz sentido. Isso pelo menos até o aparecimento da pandemia de covid e de seus agentes propulsores, principalmente os de natureza política, mais ainda do que os biológicos. Aqui no Planalto Central, por exemplo, temos hoje condições de saúde muito melhores do que à época da construção da cidade, quando a mortalidade infantil no país chegava ou até passava de 100 por mil nascidos vivos (hoje em média é 22, mas em algumas localidades não passa de um dígito) e a expectativa de vida pouco ia além dos 50 anos (hoje ultrapassa os 72). E assim como estes indicadores, muitos outros. É certo que alguns tipos de câncer, os traumatismos, as doenças mentais e as condições ligadas ao estilo de vida estão em ascensão nos dias de hoje – nada é perfeito. Mas a verdade é que, em termos proporcionais, morre (e nasce) muito menos gente do que no passado. Encontrei algumas informações interessantes sobre tal assunto, não da época da fundação da cidade, mas de ainda muito antes, quando esteve aqui a Missão Cruls, encarregada de fazer as primeiras demarcações do DF, na última década do século XIX. Assim, fugindo à regra dos últimos tempos, não comentarei nada sobre a atual pandemia de Covid, embora, infelizmente, continue a falar de doença e morte. Sinto muito.  

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