No campo da Saúde, o bom senso deve ser diferenciado do que é apenas senso comum

A frase acima é minha mesmo e há anos venho refletindo e acrescentando exemplos a ela. Isso porque na Saúde, juntamente com o Futebol, o senso comum, ou, se quiserem, as opiniões de gente que não compreende e domina de fato tais atividades, sejam mais frequentes – e além disso, equivocadas. Não estou querendo dizer que saúde é coisa só para médicos, enfermeiros e outros profissionais. Nada disso! O que pretendo defender aqui e agora é que Saúde é algo que ultrapassa – e muito! – tais campos profissionais, mas que ao mesmo tempo depende de conhecimento e de coerência, em oposição àquelas afirmativas sem pé nem cabeça que a gente ouve desde sempre e por todo lado. Vox populi, vox dei, já diziam os antigos romanos (devem ter sido eles mesmos…), mas trocar Deus (ou a Ciência) pelo que diz o homem-da-rua, assim, tão simplesmente, sem maiores considerações e intermediações, é algo arriscado e que tem gerado muito mal entendido por aí. Os políticos, por exemplo, adoram repetir essas coisas e mesmo fazer delas suas plataformas eleitorais. Ter informação adequada é tudo – e nem todo mundo a tem! Dito isso, vai nas linhas seguintes uma série de afirmativas ao gosto do famigerado senso comum, que até pode ser coisa respeitável por um lado, mas por outro, não muito confiável em determinadas circunstâncias. Como tentarei demonstrar nos comentários a seguir, sob a forma de decálogo (que poderia contar, entretanto, com muitos outros tópicos).

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Um diálogo sobre a formação médica na atualidade

Há algumas semanas apresentei aqui, junto com Henriqueta Camarotti, algumas reflexões sobre o que seria uma boa formação médica (ver link:  https://saudenodf.com.br/2023/04/04/3809/). Na ocasião, solicitei a alguns colegas com experiência docente em saúde, que manifestassem suas opiniões sobre as propostas apresentadas. Alguns responderam e trago aqui uma síntese de suas generosas participações, sob a forma de um diálogo, que na verdade não aconteceu em tempo real. Assim, vou identifica-los: LC é Luiz Augusto Casulari, da ESCS de Brasília; CL é Carmem Lavras, da PUC de Campinas; AR é Armando Raggio, da Fiocruz de Brasília, somando a isso a participação da própria Henriqueta, do Núcleo de Ciência, Arte, Filosofia e Espiritualidade do CEAM/UnB.

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Conceitos de Saúde e doença: uma breve história

Há várias maneiras de se fazer um pão. A mais simples é adicionar água, farinha, sal e um pouco de fermento. Outro modo é juntar tudo isso e mais óleo, manteiga, castanhas, frutas, temperos, além de aditivos diversos. A diferença entre um produto e outro será notável, naturalmente. Digo isso porque a interpretação de o que é saúde e o que é doença obedece a uma lógica semelhante. Existem métodos simples de fazê-lo, mas se pode também adicionar certos temperos que acabarão por trazer ao resultado uma potência explicativa maior. Afinal de contas, se o organismo humano já é complexo por si só, os fatores que o ofendem, vindos de fora ou mesmo de dentro, também existem dentro de cenários que não são nada simplórios, ou lineares. Assim, por exemplo: em uma concepção simplificada, um organismo, humano ou não, adoece quando é atacado por um vírus, bactéria, trauma ou uma alteração química interna. Alguns podem pensar ser uma interferência de outro tipo de fator externo, de natureza sobrenatural ou outro nome que se queira atribuir a tanto. Como resposta a isso, o ser atacado pode ser recuperado – ou não – pela própria natureza, mas como é mais comum nos dias de hoje, através do recurso a algum fator curador, que pode ser – e geralmente é – um médico ou outro profissional igualmente qualificado. Eventualmente também algum xamã, pajé ou curandeiro. Há lugar para todos esses personagens. Até aí tudo bem, mas tal equação (agente + hospedeiro = adoecimento) tem natureza muito mais complexa do que aparenta, sendo que cada uma de suas varáveis também está ligada a uma sequência extremamente variada de fatores próprios. Assim, o que seria apenas uma forma linear, na visão mais simples, (a + b = c) se transforma em uma figura que lembraria mais uma árvore, e muito ramificada. É sobre a história e algumas ramificações em torno dos conceitos de Saúde e de Doença que vou falar aqui, sem necessariamente esgotar o assunto.

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Mortes preveníveis, pacientes invisíveis

Tem muito assunto novo no cenário: o racismo contra Vinicius, o arcabouço fiscal, os depósitos na conta da Michele, a prisão iminente de algum membro da família zero… Mas ainda tem gente morrendo ou mesmo padecendo tardiamente dos efeitos da Covid – é bom não esquecer. Como exemplo, vejamos a história de Pedro, que tem 47 anos e sofre de hipertensão arterial. Geralmente ele comparece a consultas mensais em uma unidade de Saúde da Família e, quando porventura falha, é procurado depois de alguns dias pelo Agente Comunitário de Saúde de sua região. Entretanto, a partir de meados de 2020, várias tentativas suas de comparecer à Unidade se viram frustradas, pois havia um grande acúmulo de pacientes com suspeita de Covid e a recomendação da equipe era de que os demais pacientes, mesmo já inscritos no serviço, aguardassem outra oportunidade para serem atendidos, até mesmo pelo risco de contraírem a doença. Pedro se resignou e aguardou à distância, até mesmo evitando buscar seus medicamentos anti-hipertensivos, já que duas tentativas em fazê-lo não tiveram sucesso. Em uma noite, sentindo forte dor e pressão na cabeça, procurou o Pronto Socorro da cidade e ali, dada a preferência dada aos pacientes de Covid, foi atendido rapidamente, com a mensuração da pressão e despachado de volta à sua casa com a recomendação de que continuasse com o uso dos medicamentos que já utilizava e que voltasse em outro momento. Naquele momento, na verdade, ele já tinha reduzido para apenas dois os comprimidos que tomava, deixando de utilizar outros dois, por lhe faltar recursos (estava desempregado) e também por não ter sido atendido na farmácia de sua unidade em várias ocasiões que lá esteve. Sempre com a justificativa que à Covid era dada preferência absoluta no atendimento. Vinte e quatro horas depois de tal ocorrência, Pedro foi encontrado desmaiado pela família no banheiro de sua casa e deu entrada novamente no PS, agora com o diagnóstico de um AVC hemorrágico. Mais 24 horas e Pedro era um homem morto, aos 47 anos de idade! E então? Antes que alguém se esqueça que um dia tivemos uma pandemia (não só de virus, mas também de malfeitos…) vamos lá…

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Carretas na Saúde: um museu de grandes novidades

Quem ligar o rádio por esses dias certamente ouvirá no noticiário que uma novidade foi lançada em Brasília: a Carreta da Hanseníase. Em princípio poderia ser até algo razoável e fico imaginando se um dia poderíamos usufruir também de carretas como essa, dedicadas à hipertensão, ao diabetes, ao aleitamento materno, ao câncer de próstata e por aí vai. Aliás, em tempos não muito remotos já tivemos, aqui no DF, veículos de tal categoria dedicados às mulheres e às crianças. Quem se lembra? Pego também a imaginar a situação a que tal artefato se dedica: o cidadão ouve falar sobre a novidade no rádio e movido pela curiosidade natural do ser humano, depois de ir ao dicionário e verificar o significado da palavra que qualifica tal veículo, corre até o local onde o mesmo está estacionado para saber e ele seria mais alguém acometido por aquilo que um dia foi chamado de lepra. Sinceramente? Pensando bem, acho que não iria funcionar. Não só pelo estigma envolvido na questão, mas principalmente pelo fato de que este tipo de estratégia não encontra respaldo nas boas práticas de saúde pública. Quem sabe, no interior mais remoto da África e mesmo assim com abrangência maior do que o foco de uma única doença? Nunca em uma cidade como a nossa, que bem ou mal possui uma rede de serviços de saúde consolidada e difusa. Sim, meus amigos, porque há maneiras muito mais racionais, econômicas e eficazes de se fazer diagnóstico desta e de outras moléstias na população. Este Projeto Carreta me parece, realmente, apenas uma maneira canhestra de se tentar viabilizar um equipamento que já havia mostrado sua ineficácia quando aplicado à saúde das mulheres e outros grupos populacionais. Piada pronta: assim como o transporte de cargas nas ferrovias é muito mais funcional do que aquele realizado nas carretas rodoviárias, algo parecido ocorre também na saúde pública. Vamos a mais esclarecimentos. 

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