No Brasil, já não se adoece e nem se morre como antigamente…

Não sou tão velho, mas ainda na minha infância, nos anos 50, havia varíola na própria vizinhança de minha casa em Belo Horizonte e eram frequentes e temidas, além lamentadas em prosa, verso e reportagens de jornal, esta e outras doenças que matavam e inutilizavam muitos brasileiros, principalmente crianças, entre elas também o sarampo, o tétano, as gastroenterites, a esquistossomose. Hoje elas fugiram das estatísticas. Mas o que foi feito delas, afinal? Porém, antes de cantarmos vitória, devemos lembrar que surgiram outras moléstias, algumas delas ainda mais terríveis. A Covid 19 está aí para nos lembrar. Temos que entender tais mudanças nos cenários de doenças à luz não só do perfil demográfico da população, mas também das transformações que estão ocorrendo nas percepções das pessoas, nos fatores ambientais e também na estrutura das instituições de saúde. O certo é que no futuro – se é que não já agora – pode -se prever sérias implicações para os cenários e práticas de saúde, bem como para a estrutura dos sistemas de saúde como um todo, revelando mesmo uma premente necessidade de novos modelos de prestação de cuidados.

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Aperfeiçoar o SUS não significa negar o SUS

Acabo de ler um interessante artigo, no qual são discutidas questões relativas à eficiência e à sustentabilidade do gasto público com saúde no Brasil, com autores brasileiros com projeção internacional na área de Economia da Saúde (ver link). Eles demonstram que mesmo com as inegáveis conquistas das últimas décadas, o SUS ainda enfrenta problemas estruturais muito sérios. O senso comum e as estatísticas mostram que o Brasil gasta pouco com a saúde, mas a pergunta fundamental é: gasta bem ou gasta mal? Em termos comparativos, os gastos públicos com saúde no Brasil são menores que os de países com sistemas de saúde com caraterísticas semelhantes, embora em termos per capita cresçam a taxas maiores do que o PIB. A questão central é a da eficiência de tal gasto, nem sempre devidamente considerada, já que a ineficiência presente acarretaria, estima-se, prejuízo ao SUS de quase R$ 40 bilhões por ano, afetando principalmente os componentes de média e alta complexidade. Ganhos de eficiência podem ser de fato alcançados no sistema , por exemplo, com o aprimoramento de escala na estrutura e operação de hospitais; com a integração dos serviços em redes de atenção; conferindo densidade e melhor distribuição da força de trabalho; aprimorando os mecanismos e incentivos entre pagamentos e resultados em saúde, além da incorporação de inovações gerenciais, por exemplo, parcerias público-privadas. Tudo isso tendo fazendo da Atenção Primária à Saúde o vetor organizador do sistema. Nem tudo isso é objeto de consenso, claro, principalmente entre os defensores mais radicais do papel do Estado na gestão do sistema. Mas uma coisa é certa: a sobrevivência do SUS, em suas ideias matrizes, dependerá certamente de profundas melhorias na eficiência e na qualidade dos serviços que o mesmo oferece à população do país.

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O que garante a sustentabilidade da gestão em saúde?

O que faz uma obra humana perdurar no tempo? Para as pirâmides do Egito, o Taj Mahal ou os monumentos de Brasília a resposta é relativamente simples: pedra e cal (ou cimento) – além de muito suor humano claro. Mas para realizações, digamos, imateriais, como as iniciativas de governo, no caso, da saúde, a resposta é mais complexa e elaborada. Eu me preocupo com isso, pois em meus anos de prática de gestor público, seja em município, região ou no nível federal de governo, infelizmente vi muita coisa bem arranjada e consequente em um momento ser totalmente desfigurada ou mesmo extinta em outro. Lembro-me, por exemplo, quando coordenei a edição de uma publicação do Ministério da Saúde, no final da primeira década do século, de ter ido atrás de uma experiência exemplar e inédita de remuneração de médicos e equipes de saúde baseada em valor, ou seja, na mensuração do alcance real em termos de benefícios para a população da prática dos profissionais, diferenciando assim, para mais, as equipes com melhor desempenho. Pressurosamente liguei para o município em que a experiência fora desenvolvida algum tempo antes, para colher mais informações. Todavia, qual não foi a minha surpresa (e minha tristeza) ao constatar que havia mudado a administração municipal e nada mais daquilo restava de pé. Aliás, a pessoa que me atendeu, titular da área da saúde, relutou em tocar no assunto, mostrando-se constrangida ao ser indagada sobre o mesmo. No princípio da conversa chegou a me dizer que não acontecera nada daquilo ali, mas depois acabou me confirmando que a ideia fora abandonada pela administração do momento. Todo mundo sabe de casos assim. Tais histórias, infelizmente, se repetem em toda parte, neste brasilzão grande, atrasado e bobo…     

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Quimeras…

Primeiro caso: Dona Rosinha é uma senhora idosa que mora na Vila Alvorada, na periferia de uma cidade grande. Ela sempre teve muitas dificuldades em conseguir consultas com médicos, sendo que sofre de hipertensão, varizes e relativo sobrepeso. Recentemente, contudo, foi aberta em seu bairro uma Unidade Básica de Saúde da Família, com equipe completa e tudo que manda o figurino. Dona Rosinha já esteve na unidade diversas vezes, já tendo sido aberto seu prontuário e designada a equipe que lhe acompanhará. Indagada pela Agente Comunitária se estava apreciando o novo atendimento, disse que não muito, pois eles estavam ispiculando muito da vida dela e que além do mais as consultas eram muito demoradas, o que a deixava fatigada.  Segundo caso: Jorge é um jovem médico recém saído de uma residência em Clínica Médica. Ele trabalha em um Centro de Saúde de periferia e sente-se perfeitamente à vontade com suas atividades, pois está ali por escolha própria, foi admitido por concurso e gosta daquela rotina de atender pessoas diversas, com queixas também muito diversificadas, obrigando-o muitas vezes a estudar e se aprofundar com os problemas que lhe são trazidos. A Secretaria de Saúde acaba de fazer um inquérito sobre a qualidade dos serviços prestados em sua rede e Jorge ficou bastante decepcionado com sua avaliação, pois entre elogios superficiais, alguns pacientes se queixaram de que ele receita poucos remédios e reluta em encaminhar pacientes aos especialistas fora dali, mesmo quando os pacientes lhe explicitam tal desejo. Terceiro caso: Dr. Benevides é endocrinologista e divide seu tempo entre um consultório particular com boa clientela e o atendimento em unidade especializada pública. É conhecido por receitar remédios caros, pois acredita que o custo de um medicamento não é um problema de médicos, mas sim de governos e que além do mais sua obrigação é sempre oferecer o melhor a seus pacientes. Gosta do que faz, mas se mostra especialmente contrariado em relação aos médicos da rede básica, um Dr. Jorge em particular, que em interações ocasionais insiste em defender que os pacientes de diabetes devem ser tratados na Unidade de Saúde da Família e não encaminhados ao especialista, o que tem prejudicado a pesquisa de um novo medicamento hipoglicemiante que Benevides executa a pedido de um laboratório farmacêutico.   

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Modernidade sanitária tem nome!

Já indaguei antes aqui: por onde e como andará a política de saúde inaugurada nos anos 90 e que já foi responsável pelo atendimento a mais de 100 milhões de brasileiros, a Estratégia de Saúde da Família? Praticamente não existem menções a ela no site da Secretaria de Saúde aqui do DF e nem na página do Ministério da Saúde, a não ser afirmativas genéricas e pouco atualizadas sobre seu conteúdo e alcance. A SF ainda vive, por certo, mas é flagrante o descaso com que vem sendo tratada no atual governo, com uma enxurrada de portarias burocráticas que a desfiguram a cada dia, até não chegar a ser sequer mencionada entre as políticas vigentes. É preciso conhecer os acontecimentos relativos à geração de tal estratégia de atenção à saúde, particularmente aqueles que vão do final do século XVIII até o momento atual, período genericamente conhecido como modernidade. Cabe recordar, todavia, que qualquer política social é sempre um fenômeno complexo e determinado de forma múltipla, com componentes de legitimação, reprodução econômica, mobilização social, racionalidades humanistas, ideológicas, libertárias, partidárias, religiosas. Aliás, questão social é, acima de tudo, um fato político entranhado em uma vasta gama de mecanismos representativos, de ações estatais, do produto das relações entre Estado, sociedade e mercado, gerando dinâmicas próprias e específicas. Conhecê-la significa explorar não só de seus fundamentos, conteúdos e orientações ideológicos e políticos, mas também as implicações resultantes das interações e dos embates entre as forças políticas em cada momento histórico.

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