Mortes preveníveis, pacientes invisíveis

Tem muito assunto novo no cenário: o racismo contra Vinicius, o arcabouço fiscal, os depósitos na conta da Michele, a prisão iminente de algum membro da família zero… Mas ainda tem gente morrendo ou mesmo padecendo tardiamente dos efeitos da Covid – é bom não esquecer. Como exemplo, vejamos a história de Pedro, que tem 47 anos e sofre de hipertensão arterial. Geralmente ele comparece a consultas mensais em uma unidade de Saúde da Família e, quando porventura falha, é procurado depois de alguns dias pelo Agente Comunitário de Saúde de sua região. Entretanto, a partir de meados de 2020, várias tentativas suas de comparecer à Unidade se viram frustradas, pois havia um grande acúmulo de pacientes com suspeita de Covid e a recomendação da equipe era de que os demais pacientes, mesmo já inscritos no serviço, aguardassem outra oportunidade para serem atendidos, até mesmo pelo risco de contraírem a doença. Pedro se resignou e aguardou à distância, até mesmo evitando buscar seus medicamentos anti-hipertensivos, já que duas tentativas em fazê-lo não tiveram sucesso. Em uma noite, sentindo forte dor e pressão na cabeça, procurou o Pronto Socorro da cidade e ali, dada a preferência dada aos pacientes de Covid, foi atendido rapidamente, com a mensuração da pressão e despachado de volta à sua casa com a recomendação de que continuasse com o uso dos medicamentos que já utilizava e que voltasse em outro momento. Naquele momento, na verdade, ele já tinha reduzido para apenas dois os comprimidos que tomava, deixando de utilizar outros dois, por lhe faltar recursos (estava desempregado) e também por não ter sido atendido na farmácia de sua unidade em várias ocasiões que lá esteve. Sempre com a justificativa que à Covid era dada preferência absoluta no atendimento. Vinte e quatro horas depois de tal ocorrência, Pedro foi encontrado desmaiado pela família no banheiro de sua casa e deu entrada novamente no PS, agora com o diagnóstico de um AVC hemorrágico. Mais 24 horas e Pedro era um homem morto, aos 47 anos de idade! E então? Antes que alguém se esqueça que um dia tivemos uma pandemia (não só de virus, mas também de malfeitos…) vamos lá…

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Ainda os dilemas da Covid

A palavra dilema talvez seja pouco significativa para descrever o impacto das informações e dados da realidade sobre a pandemia da Covid 19, por vezes contraditórios e de compreensão complexa, que nos assaltam a cada vez que abrimos os jornais, assistimos TV ou pesquisamos na internet. Mas é preciso estar atentos, pois uma parte de tal confusão é fruto de atitudes maliciosas e irresponsáveis, oriundas de pessoas ou grupos mal informados e quase sempre mal intencionados, enquanto outra deriva da própria natureza do fenômeno, em suas múltiplas vertentes biológicas, epidemiológicas ou culturais. Sobre a primeira variedade, aquela derivada “do mal”, a qual contudo não é objeto deste post de hoje, tenho uma rápida e curiosa história. Um grupo de entidades norte-americanas lançou uma campanha de descrédito e ironia contra as atitudes negacionistas, espalhando por algumas cidades outdoors com o aviso Os pássaros não são reais, alertando que os mesmos seriam drones comandados pelo governo para vigiar a vida dos cidadãos. Como ironia certamente não é o forte entre os negacionistas clássicos, não sei se eles entenderam bem a mensagem – talvez tenham até começado a atirar com suas carabinas automáticas (aquelas liberadas nos EUA) contra qualquer mísero pardalzinho ou pombo que lhe atravessasse o caminho. Pensei em criar algo semelhante por aqui, As vacinas não são reais, mas creio que o nível de informação e de captação de ironia peculiares a tal turma acabe gerando efeito contrário. Mas vamos ao que interessa.    

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A superação da crise humanitária da pandemia e a responsabilidade individual

A pandemia nos coloca diante do espelho que nos revela um mundo atravessado por muitas crises e carente de mudanças (Lima, Buss e Paes-Sousa, 2020)

Sem dúvida, na era pós Covid os serviços de saúde serão obrigados a se transformar. Mas não só eles: os hábitos de vida das pessoas e das organizações humanas já começaram a mudar e irão mudar mais ainda, o que implica começarmos a pensar nas transformações que nos aguardam no futuro. Afinal, os riscos de piora no que já está ruim não são desprezíveis. Mas que tal pensar, também, para além da reorganização das políticas de governo em geral e dos serviços de saúde em particular e de sua adequação à era pós covid, nas mudanças que caberão também aos seres humanos, seja individualmente ou nos grupos familiares e sociais em que convivem? Mudanças que, sem dúvida, deverão ser assimiladas mediante um novo contrato social, ou seja, de aceitação consensual e responsabilização coletiva, em contexto de democratização de relações e respeito ao outro. Tudo isso sem esquecer da enorme legião de pessoas doentes ou potencialmente doentes que foram prejudicadas pela situação pandêmica, sendo por isso relegados a uma situação de “invisibilidade”, no que se incluem os sequelados pela covid e mesmo aqueles que carecem de atenção institucional, como as mulheres grávidas, os idosos, as crianças pequenas e outros. Há de fato um tremendo desafio pela frente, que não se restringe apenas a recomendações sanitárias ou relativas a políticas públicas. É preciso ir além disso para mobilizar um verdadeiro esforço coletivo, mas que deverá começar pela tomada de consciência individual. É disso que iremos tratar hoje, neste texto escrito em parceria entre Flavio Goulart e Henriqueta Camarotti.

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Conselhos de Saúde podem (e devem) participar da luta contra a Covid-19 – experiências em curso no DF

O Conselho Nacional de Saúde associado à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desenvolveu, ao longo dos últimos meses um Laboratório de Inovação tendo como objeto o papel dos conselhos de saúde e da participação social na resposta à Covid-19. Trata-se de nova ferramenta desenvolvida pela OPAS em suas atividades de cooperação técnica, partindo da compreensão de que cabe destacar e divulgar as inovações produzidas no SUS, que não são poucas, embora nem sempre alcancem o conhecimento geral. Laboratórios de Inovação visam a identificação, a sistematização e a divulgação de tais iniciativas, de forma a servir de referência para a troca de conhecimentos e experiências entre gestores, trabalhadores e outros atores de saúde no Brasil, além de disseminar as experiências brasileiras bem-sucedidas para outros países. Assim, é possível captar e documentar os conhecimentos considerados bem-sucedidos, inovadores e relevantes das experiências desenvolvidas no âmbito da gestão, atenção e da formação que apresentam contribuições para a melhoria do processo de trabalho e dos serviços de saúde SUS. No presente Laboratório de Inovação, cujos trabalhos foram coordenados por mim (Flavio Goulart) buscou-se identificar e sistematizar ações diretas e formais de Conselhos de Saúde, sejam estaduais, municipais ou locais, realizadas em associação com instituições acadêmicas e outras, analisando seus processos de desenvolvimento, conteúdos de inovação e resultados, dentro dos seguintes eixos: 1. Fortalecimento e qualificação da participação social dos Conselhos de Saúde visando exercer o controle social na proposição, fiscalização e controle das ações governamentais de enfrentamento da pandemia; 2. Atuação direta dos Conselhos de Saúde em ações de comunicação para a população, mobilização e articulação social para o enfrentamento da pandemia. 3. Parcerias dos Conselhos de Saúde com cursos de capacitação na área da saúde, Universidades e Instituições de Ensino Superior promovendo a integração do ensino com a participação e o controle social. Apresentaremos aqui algumas dessas experiências desenvolvidas aqui no DF.

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1001 dias em Gomorra: o triste papel de parte dos médicos na atual pandemia

Mil e um dias de (des)governo. Às vezes me sinto vivendo em tempos bíblicos, de pestes, pragas de gafanhotos, línguas de fogo e dilúvio universal. Ou em algum outro planeta. Por exemplo, quando percebo que entre os médicos, categoria de que faço parte, embora não tão orgulhosamente como outrora, o bolsonarismo ganhou adeptos inumeráveis, dentro de uma perspectiva que escapa à mera ideologia, indo muito além disso para o terreno do caráter (ou da falta dele) ou da desfaçatez e da ignorância. O sentimento de estranhamento se adensou quando vi, há algum tempo, meus colegas da turma de 1971 da velha Faculdade de Medicina da UFMG, que em outros tempos rejeitavam a ditadura militar, reunidos em grupo de whatsapp trocando animadas mensagens de adesão aos arroubos e delírios conservadores e autoritários, quando não negacionistas, “capitaneados” pelo atual ocupante da Presidência da República. É triste e repugnante, sem dúvida. E eles não seriam exceção, eis que leio na revista Cult (ver link ao final) a informação de que grupos de médicos representam hoje uma das mais importantes correias de transmissão de fake news bolsonaristas no Brasil. E, além disso, sob o olhar cúmplice e complacente do Conselho Federal de Medicina e outras entidades de classe, sabotam e desacreditam as normas da OMS, promovendo e prescrevendo falsos medicamentos, questionando as medidas de isolamento, negando, enfim, a pandemia, ao minimizar seus efeitos, em termos de mortes e incapacidades dela decorrentes. O que afinal teria acontecido com aqueles antigos jovens libertários ou, pelo menos esclarecidos, como éramos nos anos 60 e 70? 

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