Com todo respeito, quando leio as leis e regulamentos existentes sobre a participação da sociedade nas políticas públicas no Brasil, especialmente na saúde, o que vejo são fórmulas burocráticas. Podem até ser bem intencionadas, mas seu caráter pesadamente formal e burocrático as torna pouco funcionais. Refiro-me diretamente, por exemplo, ao que nos oferece a Lei Orgânica do SUS, na qual se fala em paridade e poder deliberativo, além de conselhos formados por representações institucionais formais, mas não necessariamente representativas do conjunto dos interesses da sociedade. Não se preocupem, não me tornei, de repente, um herege em relação ao nosso sistema de saúde (embora pense que uma boa dose de crítica possa fortalecê-lo mais do que destrui-lo). É que essas coisas já estão superadas, se é que foram cogitadas, em realidades mais avançadas e dinâmicas do que a brasileira, em termos de democratização do Estado. Em tais questões, para mim seria o caso de nos esforçarmos em deixar de “fazer mais do mesmo”, em troca de inovar e incrementar métodos e conteúdos que valorizariam uma das mais importantes fatores introduzidos na administração pública contemporânea, quais sejam os mecanismos de instrumento de participação social. Vamos então, ao invés de “controle social” e outras alegorias congêneres, tão ao gosto da militância do SUS, pensar em Processos de Ausculta Cidadã Qualificada, nos quais a escolha dos cidadãos deve partir de requisitos menos formais, tendo como foco o interesse direto dos mesmos, seu grau de informação ou até mesmo sua representatividade em termos estatísticos.
Continue Lendo “Escuta cidadã qualificada versus “controle” social”17ª. Conferência Nacional de Saúde: foi bonita a festa, pá!
Acaba de ser realizada aqui em Brasília a Conferência Nacional de Saúde. A décima sétima, algo que definitivamente não é pouca coisa, em um país em que a mortalidade das instituições (inclusive daquelas que são realmente úteis e significativas) costuma ser alta e precoce. Mas esta aí sobrevive à sanha destruidora nacional. E eu lá estive presente – em posição bastante honrosa, aliás, como membro da comissão de relatoria. É sobre ela que passo a falar agora. Em meu favor, posso ainda dizer que provavelmente eu talvez fosse, entre os presentes, um dos poucos que também esteve no evento correspondente de 1986, a Oitava Conferência, na condição de delegado. Nela, aliás, foram efetivamente lançadas as bases do SUS, para dizer pouco. Fica assim registrado, portanto, um ponto de valor para esta Conferência, como momento de encontro entre pessoas de uma geração jovem, ou, pelo menos, bem mais jovem que a minha. Em ambientes assim, fique claro, o arejamento e a circulação de ideias inovadoras tendem a ser a regra. Para início de conversa, quero justificar a palavra “festa” no título acima. Longe de desqualificar, quero dar ao evento um status que a meu ver é justo e honroso. O problema talvez esteja em querer dar a ela o estatuto de instância essencial na definição das políticas de saúde no Brasil. Alto lá, vamos devagar… Ela é sem dúvida uma delas, ao lado do Legislativo, do próprio Executivo, do Judiciário e de outros grupos e atores sociais que interagem diretamente com o processo de governar, todo o tempo e em em toda parte. Mas realmente fui bonita a festa, para ficar no mote buarqueano, que serviu de lema ao evento. ! Alguns milhares de pessoas se acotovelavam nos grandes e luxuosos espaços de um Centro de Convenções privado. Nada de ginásio de esportes, como aconteceu na Oitava. E havia de tudo ali: cadeirantes e outros portadores de necessidades especiais; indígenas (de variadas características étnicas, por sinal, alguns até bem brancos, ou negros); mães, pais e filha(o)s de santo, orgulhosos de sua matriz africana; ciganos e outros representantes de minorias; profissionais de saúde da vertente oficial-formal, bem como das diversas práticas complementares; gente de terno e gravata ao lado de outros portadores de cocares e vestimentas coloridas; representantes de movimentos identitários, com seus xales e vestes com as cores do arco íris, além de muitos outros, de cuja real extração profissional, étnica, espiritual, afetiva ou regional só se poderia revelar quando eventualmente se apresentassem em plenárias ou grupos de trabalho. Mas para falar a verdade, em alguns momentos me passou um fio de decepção na espinha: quando toda aquela gente prenhe de generosas ideias se via obrigada a penosas sessões de cômputo de votos contra, a favor ou de abstenção, em relação às centenas de propostas colocadas em discussão. Achei aquilo parecido com o que se vê nas olimpíadas, quando artistas da dança e da ginástica veem suas performances serem submetidas a notas, a meros números!, emanados por uma comissão de juízes, a maioria dos quais seria totalmente incapaz de realizar qualquer das tarefas que aqueles que estão sob julgamento são perfeitamente capazes. E a minha preocupação é simples: ao quantificar performances ou adesões a ideias, ainda mais em ambientes de competição e disputa por primazia, o nobre e verdadeiro espírito, seja da arte (ou da participação social), se dilui e talvez até fique perdido. Mas, enfim, toda aquela festa terá valido a pena? Penso que sim, mas como o que já está bem posto pode sempre passar por melhoras, vamos a algumas ideias. Mas atenção, gente boa e participativa: “controle social”, “poder deliberativo” e “paridade” são expressões que precisam ser melhor entendidas. Controle social e Deliberação são produzidos por uma cadeia de atores, que inclui não só Conselhos e Conferências de Saúde, mas também Legislativo, Judiciário e Executivo, além de entidades da sociedade civil com capacidade própria de representação. Já a Paridade, no caso das Conferências, é algo que simplesmente vai CONTRA a Democracia. Enfim, o processo pedagógico, simbólico, comunicativo das centenas de conferências realizadas pelo país a fora vale mais, muito mais, do que este exaustivo cômputo numérico, que acirra a polarização entre os participantes e pouco acrescenta em termos de valor ao processo participativo. Em outras palavras, trata-se de uma questão de buscar consensos mais do que peso numérico às propostas surgidas nas Conferências Estaduais. E apostar no vasto espectro de tais propostas recolhidas pelo país a fora, não em sua súmula matemática. Vamos fazer que esta festa cívica seja comemorada como tal – o que já seria algo muito valioso – mas que além disso produza consequências não ilusórias para a política de saúde do Brasil, sem aquelas pretensões de “controle” ou de “poder deliberativo”.
Continue Lendo “17ª. Conferência Nacional de Saúde: foi bonita a festa, pá!”Políticas de Saúde comparadas: Participação Social em Portugal e no Brasil
[Ainda surfando na onda cívico-energética trazida pela 17a. Conferência Nacional de Saúde, trago hoje aos leitores algumas informações sobre o tema da Participação Social]
Em fevereiro de 2019, vivendo em Portugal durante um período sabático, publiquei aqui um texto comparativo entre os sistemas de participação social em saúde nos dois países (ver link ao final). Algumas diferenças marcantes, foram apontadas por mim, entre elas a relativa modéstia da legislação portuguesa ao ponto de parecer, por exemplo, excludente em relação ao segmento dos usuários, apesar de mostrar uma feição mais polissêmica, com níveis de representação múltiplos e diferenciados e atores diversificados, além de situados em diferentes pontos da cadeia democrática. Neste aspecto, é preciso distinguir que o sistema político português é parlamentarista desde sua base municipal e no qual o princípio da “separação de poderes” faz pouco sentido. Os usuários (utentes) de fato estão pouco representados no sistema português, sendo mesmo escolhidos de forma indireta, pelo Legislativo e não por organismos da própria sociedade. Mas em compensação os mecanismos democráticos são bem mais amplos e ramificados neste país, com um sistema representativo parlamentarista, de forte base local (voto distrital) e mecanismos de prestação de contas mais apurados por parte dos representantes. No fundo, é como se a democracia em Portugal se distribuísse igual a “raízes de grama”, não através de uma plantinha aqui e outra ali, para usar uma imagem da natureza. O sistema brasileiro promete deliberação e autonomia das decisões dos conselhos e conferências, mas na verdade não se mostra capaz de cumprir tais requisitos, até mesmo porque eles se chocam com os dispositivos constitucionais em vigor, nos quais se o poder se realiza “em nome do povo”, de forma intransferível ele é exercido, de forma indireta, por parte dos governos. Com satisfação recebo agora um documento oficial e atual sobre tal quesito, originário do Conselho Nacional de Saúde de Portugal, o que passo a comentar no link abaixo.
Continue Lendo “Políticas de Saúde comparadas: Participação Social em Portugal e no Brasil”Participação em Saúde: é preciso chegar de fato ao nível local
A palavra de ordem neste novo momento do Brasil é Participação Social. Não é por acaso que o lema do Governo Lula é Unir e Reconstruir e, sem dúvida, neste campo há muito a ser feito, não apenas na área da Saúde, mas também na Educação, no Desenvolvimento Social, no Meio Ambiente, na proteção aos desvalidos e minorias. Para tanto, é preciso ir além dos mecanismos tracionais, lançando mão de novas tecnologias sociais que viabilizem de fato uma participação comunitária e social que faça fluir os mecanismos oficiais já instituídos, amplificando a escuta e o empoderamento daqueles que verdadeiramente necessitam da assistência das políticas públicas. Neste sentido, apresentamos aqui, em mais um trabalho conjunto com Henriqueta Camarotti, uma proposta para viabilizar a participação social na saúde e outras áreas de governo, com foco especial no nível local, onde tal mecanismo deveria constituir o alicerce de um verdadeiro sistema nacional de participação, mas que no arcabouço legal atual se vê obstaculizado pelo formalismo dos instrumentos definidos para as instâncias municipais, estaduais e nacional.
Continue Lendo “Participação em Saúde: é preciso chegar de fato ao nível local”16ª Conferência Nacional de Saúde: qual o foco, afinal?
Como prometido em post anterior analiso aqui o relatório da recém realizada 16ª Conferência Nacional de Saúde, que a militância apelidou de “8+8*, para relembrar a emblemática Oitava, verdadeira “Mãe do SUS”, realizada em 1986. É preciso fôlego para ler tal documento, pois são nada menos do que 68 páginas, nas quais um manifesto, quatro eixos diversos, três dezenas de diretrizes, pelo menos 400 propostas e algumas dezenas de moções se acumulam. Embora seja apenas uma das moções, a seguinte, abaixo transcrita na íntegra, dá bem o tom com que se apresenta o referido relatório: <<Defesa de um SUS Público, estatal, sob a administração direta do Estado, gratuito, de qualidade e para todos e todas! Revogação imediata das medidas que retrocedem e retiram direitos: Contrarreforma trabalhista, terceirização irrestrita e EC 95, que congela os investimentos sociais por vinte anos e na prática destrói a saúde e a educação pública, patrimônio do provo brasileiro! Defesa da Seguridade Social, possibilitando políticas sociais que assegurem os direitos relativos à saúde, previdência, assistência social, educação, trabalho e moradia. Retirada imediata da PEC 06/2019 (Contrarreforma da Previdência). Nosso povo não vai trabalhar até morrer! Gestão direta do Estado na saúde! Revogação das leis da EBSERH, Fundações, OSs, OSCIPs e Serviços Sociais Autônomos. Revogação da lei que libera a entrada do capital estrangeiro na saúde! Retirada imediata da PEC 29/2015 que altera o artigo 5º da Constituição Federal e torna crime de aborto a interrupção da gravidez desde a concepção. Realização de concurso público pelo Regime Jurídico Único e por plano de carreira dos servidores do Sistema Único de Saúde em todos os níveis. Taxação de grandes fortunas. Resolução CNS nº 617, de 23 de agosto de 2019. A ganância dos super-ricos dever ser tributada! Auditoria da obscura dívida pública brasileira, com suspensão imediata do pagamento dos juros fraudulentos. Reafirmar a saúde como direito universal e integral e dever do Estado>>. Tudo ao mesmo tempo. Agora! Adjetivação pra ninguém botar defeito. Mas tem mais… Continue Lendo “16ª Conferência Nacional de Saúde: qual o foco, afinal?”
