O ano de 2018 é marcante para a saúde. Não só o SUS faz 30 anos como a Declaração de Alma Ata, uma de suas fontes inspiradoras, faz 40 e talvez a própria concepção do sistema de saúde da Capital Federal, então em construção, deve estar fazendo 60. Ao mesmo tempo, na saúde do Brasil atual, o tempo fecha no horizonte, com ameaças de cortes maiores ainda de gastos, o novo Ministro da Saúde recém nomeado defendendo a privatização e o próprio presidente eleito afirmando que o dinheiro que se gasta na saúde já é demasiado. Nada é perfeito… Mas tal data sem dúvida merece, se não grande comemoração, pelo menos algumas reflexões.
O sistema de saúde do Distrito Federal tem, em sua origem, um Plano Diretor de Saúde de autoria do médico Bandeira de Mello, dado à luz em torno de 1960. Nele, se propôs a criação de uma instância de gestão denominada Fundação Hospitalar do Distrito Federal (FHDF), subordinada à SES-DF e integrada por estruturas hospitalares de diferentes níveis de complexidade, além de uma rede de serviços básicos em todo o território, capaz de oferecer assistência àquela população de 500 mil habitantes que se julgava que o DF ia ter. Em tal plano se defendia ainda: (a) eliminação da multiplicidade de órgãos assistenciais; (b) distribuição de centros de saúde e hospitais por grupos populacionais; (c) redução do custo e aumento da eficiência dos serviços, resultante da concentração; (d) comodidade para a população, evitando-se deslocamentos; (e) livre arbítrio do usuário na escolha do médico que trataria da sua saúde; (f) pagamento aos médicos por produtividade; (g) regime de trabalho integral; (h) possibilidade atendimento médico a pacientes particulares; (i) participação da população na solução de problemas por meio dos Conselhos Comunitários de Saúde; (j) serviço de atendimento domiciliar a convalescentes, evitando-se a permanência em leito hospitalar.
O plano ainda estruturava os serviços com nítida separação entre as áreas de ação dos órgãos executivos e normativos. Propunha a centralização da orientação técnica e a descentralização dos serviços de saúde em três zonas: central, intermediária e rural. Foi imaginada, também, a construção de um hospital de alta complexidade, de onze hospitais gerais e seis hospitais rurais, circundados por Unidades Satélites. As diretrizes visavam a atender às diversas especialidades clinicas, estimulando a rotatividade de pacientes e reduzindo a permanência hospitalar.
Entre outras possíveis influências recebidas pelo formulador original, Bandeira de Mello, estariam, sem dúvida, a experiência de mais de uma década que o Reino Unido já tinha com sua reforma de saúde, conduzida por Beveridge, além da experiência de quase 20 anos da Fundação SESP brasileira, que já praticava algo semelhante em suas unidades que se concentravam nas regiões Norte e Nordeste.
Cometi propositalmente o exagero de dizer que o sistema de saúde do DF “antecede” o SUS, mas isso até certo ponto é verdadeiro. Com efeito, diretrizes como descentralização, participação de usuários, regionalização, unificação, além de outras – que também fazem parte do ideário do SUS – já estavam presentes ali, na formulação original
Mas bem melhor do que isso só se essas coisas tivessem acontecido de verdade em nossa cidade, não?
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Há poucos dias, participei de um evento comemorativo dos 30 anos do nosso SUS, organizado pela Academia de Medicina de Brasília, intitulado muito apropriadamente de “Trinta anos do SUS: História e Perspectivas”. Tive a honra, aliás, de ser convidado para ser o relator do mesmo. Devo dizer que aprendi muito ali e transmito aos leitores uma síntese das discussões realizadas, aconselhando que vejam também, em link ao final, o detalhamento da programação, com os nomes de todos os palestrantes.
Eis, então, um sumário executivo do evento, tendo como roteiro o histórico, os desafios e as soluções para os problemas da saúde no DF e em seu Entorno. O relatório final, quando estiver liberado pela diretoria da Academia de Medicina de Brasília será publicado também aqui no blog.
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TRINTA ANOS DO SUS NO DF: HISTÓRICO E PERSPECTIVAS
A história
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que o sistema de saúde do DF foi construído sob a égide da regionalização e da hierarquização de serviços, recebendo influências tanto de sistemas estrangeiros, como é o caso do NHS britânico, como nacionais (Fundação SESP). Sua criação remonta ao final dos anos 50, época em que já eram bem conhecidas tais experiências, bem sucedidas, aliás. As expressões Atenção Primária à Saúde (ou mesmo Atenção Básica) ainda não eram de uso corrente na ocasião, vindo a se popularizar a partir de 1978, com a realização da reunião sobre APS em Alma Ata, sob os auspícios da OMS. Mas certamente as diretrizes filosóficas originais do sistema de saúde do DF abriram caminho para uma produtiva acolhida local aos postulados de Alma Ata posteriormente.
Assim, depois de um momento inicial de implantação nos anos 60, a partir da proposta de Bandeira de Mello, o sistema do DF recebe novo impulso no final dos anos 70, já certamente sob influência de Alma Ata, na primeira gestão de Jofran Frejat como Secretário de Saúde. Ao mesmo tempo, a Universidade de Brasília, já consolidada, começa a interagir de forma mais ativa no sistema de saúde local, administrando como instância de ensino a Unidade Integrada de Sobradinho e desenvolvendo um projeto de atenção primária em Planaltina. Neste momento, a configuração do sistema local era de uma estrutura em rede, formada por centros de saúde espalhados pelo território; hospitais regionais em diversas cidades satélites; alguns hospitais especializados; bem como um hospital de referência geral, o Hospital de Base. Além disso, serviços de diagnóstico e complementares diversos.
Do ponto de vista da gestão, inicialmente foi criada uma estrutura dupla, associando à estrutura da Secretaria da Saúde (SES-DF) a Fundação Hospitalar (FHDF), a primeira encarregada de formular a política e a segunda de operacionalizá-la, ambas com a mesma direção. Este arranjo se desfez posteriormente, no início dos anos 90, ficando a SES-DF com as duas responsabilidades. Em anos mais recentes, a partir de 2015, novas estruturas de gestão foram incorporadas, a saber, um contrato de gestão para administrar o Hospital da Criança de Brasília, com o Icipe, já bem consolidada e também a constituição de uma nova estrutura de direito privado como foco no principal hospital da rede, o Instituto Hospital de Base (IHB), que dá seus primeiros passos.
O momento atual (2018) é, mais uma vez, de mudanças, pois ainda não se conhece em sua inteireza o plano de ação real do candidato vencedor das eleições, Ibaneis Rocha, no qual há menções ao possível arrefecimento das inovações de gestão citadas acima, particularmente o IHB.
Problemas e desafios
A atual configuração do sistema de saúde do DF é complexa e não isenta de problemas, sendo o principal destes os percalços no financiamento, considerado insuficiente, embora as despesas com a saúde sejam cobertas pelo chamado Fundo Constitucional, com transferências diretas do governo federal. Os valores per capita transferidos são superiores à média nacional, mas têm sido apontados como insuficientes para cobrir todas as despesas e investimentos necessários, por várias razões.
Das questões financeiras, as duas mais importantes talvez sejam, primeiro, a centralidade do DF em relação à região do Entorno, na qual os serviços de saúde são mais escassos e menos qualificados, além de abrigar uma população economicamente mais frágil, fazendo com que o afluxo de pessoas que recorrem aos serviços locais, embora apenas estimado sem maior precisão, seja considerado acima das possibilidades de atendimento dos serviços aqui localizados.
Em segundo lugar, tal fenômeno de atração se repete em relação a um território muito mais amplo, que compreende parte dos estados vizinhos (MG e GO) e até mesmo remotos, como TO, MT e região NE. As transferências básicas do SUS, calculadas em função de contingente populacional claramente se tornam insuficientes diante de tal migração de demandantes, particularmente agravada nos períodos de crise econômica, como atualmente ocorre.
Outra distorção presente no sistema local do DF é a relativa descontinuidade das ações na política de saúde. Embora a atenção básica seja sempre um forte componente discursivo na estrutura dos serviços, nem sempre ela recebeu a atenção devida, sendo comuns no passado episódios como a interrupção ou a desaceleração de projetos, como foi o caso do Saúde em Casa na década de 90 ou mesmo a relativa paralisia da implantação da Estratégia de Saúde da Família nos anos seguintes.
Fator sempre lembrado como obstáculo – e certamente muito real – é o da desproporção entre o crescimento populacional do DF, que aliás é recordista nacional neste quesito, e a expansão concomitante da rede de serviços, que sempre caminhou em passos mais vagarosos, tanto do ponto de vista das quantidades como da especificidade dos serviços oferecidos. Isso levou, é claro, a uma rede de serviços com muitos vazios assistenciais na malha urbana e principalmente rural do DF.
Contradições impactantes não faltam à estrutura de saúde no DF. A mais chamativa delas é a questão da oferta de médicos. Aqui eles apresentam indicador por mil habitantes bem superior à média brasileira, inclusive das capitais, rivalizando-se apenas com o Rio de Janeiro e Vitória-ES. Isso não impede, entretanto, que tal questão esteja sempre presente nas queixas de usuários, ligadas às dificuldades de se conseguir uma simples consulta na rede de serviços, mesmo na atenção básica, mas de maneira muito mais intensa nas especialidades. Isso se explica, em parte, pela concentração dos profissionais nos serviços privados, ou em regimes mistos. Mas o fato é que só a SES-DF emprega mais de cinco mil profissionais médicos.
A vinculação privada dos médicos tem causas e desdobramentos imediatos, quais sejam aqueles relativos à pujança da rede de serviços particulares na cidade. Isso representa uma inversão histórica, haja vista que atualmente, ao contrário de décadas pesadas, o maior número de leitos hospitalares e de serviços especializados, por exemplo, estão no âmbito privado – não mais no público. Na oferta de leitos de UTI isso é um aspecto marcante. Há quem chame atenção, inclusive, que a rede hospitalar privada talvez ultrapasse seus limites de oferta em curto prazo, abrindo caminho para que o setor público passe a contatar leitos na mesma em curto prazo.
Perspectivas e soluções
- Em primeiro lugar, é claro, decisão política, associada à blindagem da máquina administrativa em relação às indicações político-partidárias, que historicamente sempre foram rotineiras no DF.
- O planejamento deve ser uma ferramenta essencial a ser manuseada e respeitada pelos gestores, e não um mero ritual, sem outra serventia que não a de cumprir rotinas burocráticas; utilizar corretamente o planejamento significa estar atento às grandes transições que afetam não só o país como do DF, entre as quais se incluem as mudanças epidemiológicas, demográficas e culturais, abordadas com detalhes nos textos deste seminário.
- A descentralização do processo decisório, inclusive quanto à liberdade no manuseio de recursos é fundamental, fazendo com que as estruturas regionais e os hospitais tenham gestores empoderados e capacitados neste sentido, mas também submetidos a sistemas de controle eficazes, sem serem limitantes às ações dos mesmos.
- Descentralizar implica, naturalmente, em responsabilizar de forma diferenciada, mas também na abertura de canais de comunicação e diálogo, seja com a população, com os outros gestores, inclusive de outros municípios do Entorno do DF, com o sistema escolar, com as empresas, com os organismos comunitários, entre outras opções, para o que é preciso real poder de decisão também nas esferas regionais do sistema.
- A participação social é uma diretriz do SUS que deve ser acatada e valorizada, mas é preciso procurar alternativas ao “conselhismo” pouco representativo e ineficiente, com novo foco em uma participação de âmbito local, formada não apenas por entidades, mas também por pessoas interessadas.
- A atenção básica deve a ser a base verdadeira do sistema de saúde, e não apenas uma porta de entrada supérflua, não compulsória e pouco resolutiva, mas ao contrário, transformar-se em centro emissor da verdadeira regulação de um sistema de saúde constituído em rede.
- A utilização de tecnologia de informação e de outras correlatas é essencial nos sistemas contemporâneos de saúde, podendo ser citados como exemplos a telemedicina, as centrais de regulação, a educação a distância, a convocação e o autocuidado por celular, blockchain, entre outros instrumentos.
- Devem ser estabelecidos políticas e procedimentos visando o pagamento por resultados e não apenas por produto, seja para prestadores de serviços e também, ampliando tal conceito, para equipes de saúde, configurando o mecanismo da contratualização, já utilizada em sistemas contemporâneos de saúde e outros em todo o mundo.
- Uma política hospitalar mais efetiva deve ser estabelecida, com monitoramento permanente de indicadores (taxa de ocupação, desfechos, internações desnecessárias, custos) e aplicação de medidas corretivas em tempo hábil, somando-se a tanto incentivos a processos extra-hospitalares e abordagem clínica, tais como internação domiciliar, cirurgia ambulatorial, capacitação de cuidadores, leitos-dia, uso de telemedicina e outros.
- O molde restritivo imposto pela legislação administrativa brasileira deve ser superado pela busca de alternativas, possíveis mesmo dentro dos limites impostos pelas leis 8666, 8112, LRF e outras, por exemplo, com a instituição de parcerias público-privados, delegação a entidades comunitárias não lucrativas, criação de fundações etc.
- Abordagem especial exige a questão do Entorno do DF, passível de ser operacionalizada através do instrumento legal já disponível que é a RIDE, na qual seria fundamental que as representações deliberativas sejam de agentes políticos e gestores com real poder de mando, guardando-se para os técnicos de menor escalão, hoje dominantes nela, papéis consultivos e de assessoramento técnico.
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Veja também a programação do evento em pauta:
- SUS 30 anos DF antes.docx (PROGRAMA)
