Se a Atenção Primária é tão importante para os sistemas de saúde, por que ela não decola?

Muito se fala sobre a importância vital da Atenção Primaria à Saúde (APS), também conhecida no Brasil como Atenção Básica, para os sistemas de saúde, pois está mais do que provado que ela representa uma estratégia que os torna mais resolutivos, mais eficazes, mais participativos e, principalmente, mais organizados. Aqui em Brasília, nas últimas eleições, ela foi simplesmente a estrela dos programas de saúde de quase todos os candidatos, o que não significa, entretanto, que caso fossem eleitos, cumpririam realmente o que prometeram em suas campanhas. O novo governador mantém o discurso, mas na prática, pouca coisa concreta se percebe.Com efeito, não custa lembrar, mais uma vez, que embora não existam sistemas de saúde perfeitos, as evidências internacionais demonstram, não é de hoje, que os sistemas que se organizam a partir de uma base robusta de atenção primária, logram obter melhores resultados em termos de equidade e crescimento nas despesas em saúde, mesmo tendo que balancear gastos, cobertura, qualidade e equidade, entre outros fatores. Não se deve esquecer, ainda, que outros fatores estão em jogo na saúde, podendo ser citados a renda, a educação, a idade, o meio ambiente, a habitação, o acesso a água e saneamento, os padrões de comportamentos. Assim, os sistemas de saúde jogam papel importante, mas com limites.

Não custa nada definir o que vem a ser uma APS que realmente mereça tal nome.  Não basta, naturalmente, ter uma placa na entrada da Unidade de Saúde dizendo que ela é isso ou aquilo. Placas aceitam qualquer coisa, inclusive absurdos. A APS verdadeira deve ter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de elevada complexidade, embora de baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior freqüência e relevância no território. Além disso, a APS representa o contato inicial dos usuários com o sistema de saúde, orientando-se por princípios tais como universalidade, acessibilidade, coordenação do cuidado, vínculo; continuidade, integralidade, humanização, equidade e participação social.

Não custa nada trazer tais princípios à luz, porque tem muita coisa por aí chamada de “Atenção Primária à Saúde, sem necessariamente merecê-lo. Os motivos são os mais diversos: receber repasses do Ministério da Saúde, arrebanhar votos, iludir usuários – ou quem sabe, ignorância mesmo. Mas o fato concreto é que existem em toda parte equipes nas quais falta o médico ou este muda a cada semana; os ACS estão em número reduzido, se é que presentes; a área de abrangência não está definida; faltam equipamentos básicos como espéculo, balança e mesmo um mapa da área e abrangência; as pessoas não estão treinadas para o exercício da APS etc. Vamos combinar: coisas assim, não são é APS – definitivamente!

Mas mesmo com as vantagens que apresenta, reconhecidas em todo o mundo civilizado, por que seria que a APS ainda não decolou de verdade, seja em Brasília ou no restante do território nacional? Não há dúvida de que temos excelentes experiências no Brasil, algumas em curso, outras em decadência, mas de toda forma ainda deixa muito a desejar a expressividade da APS como real ordenadora do sistema de saúde no Brasil. Quais seriam as razões para tanto?

A primeira razão é que a APS em sua forma completa somente foi implantada no Brasil em alguns casos especiais, predominado adaptações diversas da proposta, entre as quais podem ser citadas: equipes sem médicos; equipes sem ACS; mal desempenho ou má formação de profissionais; má gestão; áreas de abrangência indefinidas ou exorbitantes; localização em “ilhas” rodeadas de desorganização; caráter não ordenador do sistema, tentativas de mix com o atendimento tradicional etc. vem daí o chiste de que trata-se de uma estratégia “10P”: “práticas precárias para pessoas pobres, periféricas, para político por placa”. O mais grave é coisas assim passam a fazer parte da paisagem e ninguém mais repara no erro.

Além disso, a APS, correta ou incorretamente implantada, é alvo de preconceitos dos dois lados da mesa. Os médicos a consideram uma especialidade pobre, de baixa tecnologia, que “qualquer um” pode exercer. Os pacientes não só absorvem tais disposições como consideram meramente burocrática uma instância pela qual são obrigados a passar quando na verdade o que desejam é um especialista, sentindo às vezes como autêntica perda de tempo o fato de serem obrigados a passar pelo generalista. A APS mal gerida e mal praticada acaba dando resposta a este tipo de distorção, ou seja, encaminhando pacientes aos especialistas sem maior critério, reforçando a ideia de que ela é, de fato, dispensável.

É frequentemente confundida com a atenção básica tradicional, aquela dos “postinhos” de saúde, que com ela convive até hoje e em muitos lugares chega a ser dominante. Mas na modalidade antiga não havia fixação territorial definida; a figura do ACS não estava presente; visitas domiciliares não faziam parte da rotina; o trabalho era centrado no médico e não na equipe; o trabalho da enfermagem era meramente “paramédico”; o processo de trabalho era receptivo e não pró-ativo; a promoção da saúde não era parte da prática geral; o planejamento raramente era feito localmente e com indicadores ali produzidos; não ocorria participação dos usuários; as tecnologias típicas da APS não eram utilizadas ou eram negligenciadas. Os verbos estão no particípio, mas a situação é concreta e presente.

A APS é geralmente tida como solução barata, no padrão “10P” (ver acima), o que não é confirmado pela realidade. São necessários investimentos, sim: para estruturas adequadas de atendimento, para tecnologias de informação e comunicação, instrumentos de supervisão e apoio, além de, principalmente, para qualificação das pessoas que nela vão atuar. Neste ponto, é bom insistir em algo que o senso comum às vezes nega: a APS requer o domínio de tecnologias sofisticadas, embora não sejam “densas” do ponto de vista material (hardware).

A qualificação do pessoal é falha em todos os níveis. Os ACS não recebem preparação adequada, mas apenas cursos superficiais e de curta duração, já que impera o pressuposto de que sua função é de pouca relevância. Os médicos e enfermeiros não são preparados em seus cursos de graduação para exercer as funções diferenciadas e especializadas que a APS exige, se rendendo muitas vezes ao estatuto social de preconceito quanto a tal atividade. Os gestores também não são preparados para atuar em uma área de fortes dinâmicas e exigências de decisões rápidas e eficazes, dentro de um terreno de tecnologias, sejam hard ou soft, de alta complexidade.

Outra questão é a da associação do conceito de APS com o conceito de “redes”. São irmãos siameses, de fato! Com efeito, o modo habitual de organizar a saúde tem uma APS que não se comunica com os demais níveis, assim como com os sistemas de apoio ou logísticos. Os serviços de saúde atuam apenas de forma fragmentada, reativa e episódica, além de focada na doença e não na saúde. Os resultados disso são precários, mas mesmo assim isso é bastante valorizado pelos políticos, gestores, profissionais de saúde e também pelos usuários. Sistemas de atenção à saúde assim tão fragmentados precisam receber doses maciças de integração e coordenação interna, ou seja, se converterem em redes de atenção à saúde, definidas como “organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela APS – prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e segura e com equidade –, com responsabilidades sanitária e econômica pela população adscrita e gerando valor para essa população”, conforme as palavras de Mendes (2011).

Infelizmente, ainda estamos longe de algo assim no Brasil; no DF nem se fala. A triste rotina de um paciente por aqui é a de um “permanente recomeço” onde quer que ele se dirija, já que os vários serviços não se comunicam e nem há decisão política, gente especializada ou domínio de tecnologia para que isso aconteça. Isso não tem custo apenas humano, em termos de perda e tempo, sofrimento e risco para a vida, mas também é muito oneroso do ponto de vista financeiro e material.

Em suma, uma APS que não esteja inserida dentro de uma rede pode ser comparada à situação de alguém que compra um telefone celular e quando chega em casa descobre que ali onde mora não há disponibilidade de sinal que lhe permita fazer chamadas. Pode servir para jogos, escutar música e outras tarefas, mas não para aquilo que importaria mais.

De acordo com o autor citado acima (Mendes, 2011) a APS somente se completa como estratégia de atenção à saúde se cumprir três papéis essenciais: resolutividade, coordenação e responsabilização. Sobre este papel de coordenação, isso faz da APS um centro de comunicação das redes de atenção à saúde, ou seja, de ordenação de fluxos e contrafluxos de pessoas, produtos e informações entre os diferentes componentes de tais redes. Isso se liga diretamente à função de responsabilização, ou seja, o conhecimento e o relacionamento, no território, da população a ele pertencente, através do que se exercita uma gestão e a responsabilização de base não só populacional, como econômica e sanitária.

Lamentavelmente, em nossa realidade, ao faltarem ou serem muito frágeis as ditas redes assistenciais, não há como a APS se firmar, de forma que, em variedades assim tão capengas, ela pode não acrescentar real valor à assistência à saúde da população.

Há ainda outros senões a serem considerados, que constituem fatores impedientes não só ao bom funcionamento da APS como seu reconhecimento amplo com elemento dinamizador e otimizador da atenção à saúde. Assim, podem ser citados: (1) os horários típicos e tradicionais a que ela se submete, por várias razões, institucionais e individuais ou corporativas, horários estes que podem não ser compatíveis com as necessidades das pessoas, aumentando o descrédito da mesma; (2) seus cenários de atendimento restritos às unidades de saúde da família, muitas vezes precárias e mal localizadas, sem que se explorem outras possibilidades, como por exemplo locais de trabalho, escolas, instituições e logradouros públicos; (3) o uso ainda restrito de tecnologias de informação e comunicação, como celulares, redes sociais, telemedicina e outros.

Por essas e por outras razões é que se poderia afirmar que, apesar de todo seu potencial de adicionar valor à assistência à saúde, a Atenção Primaria à Saúde ainda constitui uma prática paralela e até mesmo estranha ao sistema de saúde em nosso país. Medidas recentes do atual governo do DF, embora as enfáticas promessas eleitorais, ainda não permitem grande otimismo em relação ao que possa acontecer de fato por aqui.

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Saiba mais:

https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/A-Atencao-Primaria-e-as-Redes-de-Atencao-a-Saude.pdf

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