Acabo de ter acesso a um artigo da revista The Lancet (ver link ao final) no qual os autores indagam se este negócio de democracia é realmente bom para a saúde pública. Assim, recorrendo a estimativas de mortalidade por causas específicas e expectativa de vida livre de HIV, além de dados da carga global de ferimentos e fatores de risco, relativos a 2016 e cotejando tudo isso com informações sobre o tipo de regime em uma série de 170 países, foi analisada a associação entre a democratização e a saúde da população , no período de 1980 a 2016. Isso permitiu descobrir que a expectativa de vida adulta livre de HIV melhorou mais rapidamente nos países em desenvolvimento que fizeram a transição para a democracia no último meio século. E mais: que a qualidade da vida democrática, particularmente definida como ocorrência de eleições livres e justas, seria responsável por 22% da variação positiva nas doenças cardiovasculares, 18% nas lesões de trânsito, 17% na tuberculose, 10% no câncer, com frações menores para outras doenças, principalmente não transmissíveis. Isso parece ser mais influente do que próprio PIB, que seria responsável por apenas 11% da variação nas doenças cardiovasculares e 6% no câncer, por exemplo. A “qualidade da democracia” não parece estar associada a aumentos no PIB per capita, mas sim a declínios na mortalidade por doenças cardiovasculares e aumentos nos gastos públicos em saúde.
Será que nós realmente precisamos de democracia? – indagam os autores. Os choques entre movimentos políticos populistas e as instituições liberais, como se vê hoje não só no Brasil como em outros países, recomendam, por si só, prestar atenção no assunto, além de levantarem questões urgentes sobre como os seres humanos devem ser governados. É lembrado, também, que os países mais democráticos permitem mais queixas sobre abusos dos direitos humanos.
Os autores do estudo sustentam que a democracia provavelmente funciona como aquela “mão invisível” de que falava Adam Smith, ao criar equilíbrio entre oferta e demanda. Mas, em contrapartida, se tal mão invisível regula os mercados para coisas boas, as mãos invisíveis do escândalo, a exposição na mídia, as eleições e a reforma também influem na regulação dos sistemas de saúde públicos e privados. Lembram que os historiadores demonstraram como a expansão dos direitos civis desempenhou um papel importante na melhoria da saúde, tendo como exemplos o Reino Unido e os EUA. O presente estudo sugere que o mesmo se aplica globalmente, com descobertas relativas às maneiras como, durante o último século e meio, a mortalidade em países de alta renda declinou e os sistemas de saúde melhoraram em paralelo ao aumento da renda e melhores condições de vida, no que o economista Angus Deaton chamou de “ grande fuga ”da pobreza e da doença.
Como possíveis razões para a realidade desalentadora de muitos países, particularmente na África, com os piores sistemas de saúde, está o fato de que têm sido governados por autocratas corruptos que mantêm o poder pela força e podem ignorar o bem-estar de seu povo sem repercussões. Isso deveria ter implicações nas atitudes da comunidade global de desenvolvimento, que precisa continuar investindo em programas médicos para empoderamento das mulheres, da comunidade LGBT e das pessoas com deficiências, que são pessoas que não desafiam diretamente o poder do governo. Tal ênfase é às vezes justificada pela antiga suposição de que, nos países pobres, especialmente, os ditadores são melhores em fazer as coisas porque podem ignorar as demandas de pequenos e competitivos eleitorados.
As recomendações dos autores são de que os grupos globais de defesa da saúde precisam fazer mais do que clamar por mais financiamento e, ocasionalmente, lamentar a corrupção. Eles precisam conclamar os EUA, a Comunidade Europeia e outros setores que são donos do dinheiro a impor sanções aos ditadores, incluindo aqueles que cooperam com os objetivos militares ocidentais. Como Rudolf Vichow, um dos pioneiros da saúde pública moderna, escreveu depois de testemunhar os estragos do tifo sobre os camponeses oprimidos da Silésia, “a política nada mais é que medicina em escala maior.
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MEUS COMENTÁRIOS (FLAVIO GOULART)
Democracia é bom, não só para a Saúde, ora pois!
Mas cabe lembrar que a saúde é algo que depende de múltiplos fatores, entre eles a renda, a educação, o acesso a serviços, a qualidade de vida, o trabalho exercido, as desigualdades sociais em geral. As conclusões do estudo parecem se aplicar diretamente a países pobres da África, além de situações específicas de adoecimento. Cuba, por exemplo, que tem excelentes níveis de saúde, não é rigorosamente o que se poderia chamar de “democracia”, pelo menos nos termos definidos no presente estudo (“ocorrência de eleições livres”). Já o Brasil formalmente classificado como “democracia”, embora saibamos que com muitas limitações, tem indicadores de saúde apenas sofríveis. Nem tanto ao mar, portanto…
Penso que é melhor valorizar e acreditar mais nos fatores de saúde que já são de conhecimento amplo, desde os trabalhos clássicos de Virchow e outros, ou seja, educação, renda, alimentação, segurança, acesso a serviços, qualidade da vida nas cidades etc. Mesmo na ausência de um regime totalmente democrático eles continuarão a ser válidos.
Além do mais, isso remete a uma espécie de fantasia dos militantes da reforma sanitária no Brasil, a de que o SUS foi um fator indutor da democracia em nosso país, de acordo com o lema “Mais Saúde, mais Democracia”. O SUS é fruto da redemocratização brasileira, sem dúvida, mas inverter tal equação já me parece sonho de uma noite de verão, ou um delírio de militantes.
Mas que não se esqueça, de fato, da Democracia – esta pobre senhora tão ameaçada nos dias de hoje… Se ela não for útil para a saúde, para muitas outras coisas certamente o é – assim demonstra a História.
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Quem quiser conhecer o artigo em foco: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(19)30431-3/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email


Ótima sua análise, meu caro Flávio! Obrigado…
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