Volume ou valor? Produção ou resultados? Quantidade ou qualidade?

Vejo na mídia (link ao final) que o GDF, em mais uma das suas habituais soluções simplistas ou autoritárias, quer punir os funcionários que porventura tratem mal aos pacientes nas diversas unidades de saúde da cidade. Não é que tal coisa não aconteça por aqui; acontece de verdade, e muito, em toda parte!  E os responsáveis devem pagar por seus erros, até porque o que se vê nas recepções das unidades de saúde é apenas aquele maldito aviso “maltratar funcionário público é crime previsto na legislação”. O contrário disso, não seria crime também? Mas a verdadeira questão é se a solução estaria de fato em simples portarias e atitudes ameaçadoras como esta, nas quais se fala em penalidades diversas, em delações internas e punição e até penalidades para quem fizer uso incorreto da rede de computadores, além de outras obviedades? Ou haveria modos mais apropriados de tratar a questão? Corro o risco de ser mal visto, ao falar em coisas que já fazem parte de uma verdadeira cultura institucional global (lembram-se do “marxismo cultural”, ao gosto do atual Chanceler?), ou de apelar para evidências científicas (no caso, derivadas, algumas delas, das atualmente malditas ciências sociais) nas ações de governo. Mas mesmo assim introduzo a minha pobre colher de pau em tal discussão.

Antes de passar ao mérito propriamente dito de tal questão, cumpre destacar o que disseram as lideranças sindicais do DF em relação a tal medida, tanto os da área médica, como dos servidores da saúde de modo geral (vejam no link). Os egrégios dirigentes sindicais não chegam a ser contra este tipo de medida, claro, não ousariam tanto, mas argumentam de forma uníssona, como se tivessem combinado entre si, que “faltam condições de trabalho para que isso aconteça”. Responsabilizam, assim, como de hábito, os governos (quaisquer governos…) e os gestores, mais do que os operadores na ponta da linha, se eximindo de maior responsabilidade face a tal problema. Saída cômoda essa, até porque não chegam a detalhar por completo o que seriam tais “condições de trabalho” que advogam e nem admitem que mesmo em ambientes degradados ou pouco arejados – e até por causa disso – não se deveria prejudicar ainda mais os pacientes. Ou seja, é preciso lutar pelas tais condições adequadas, ao mesmo tempo que se cumpre, minimamente que seja, os requisitos éticos inerentes às profissões de saúde.

A questão da recepção, tratamento e encaminhamento adequados a pacientes, além da gestão em geral nos serviços de saúde hoje se insere em um capítulo mais amplo das teorias gerenciais e das relações de trabalho, qual seja a distinção entre o que é “volume” e “valor”. Com efeito, no Brasil ainda se pratica a saúde dentro da primeira acepção, isto é, de “volume”, seja no pagamento de serviços prestados por terceiros, na compra de insumos e equipamentos, na remuneração profissional, na definição de metas institucionais – enfim, na própria filosofia de ação dos serviços de assistência.

É possível falar, então, em uma “saúde baseada em valor”, como modelo de prestação de cuidados de saúde no qual os prestadores, incluindo as instituições, empresas, profissionais e servidores de maneira geral, são pagos na base dos resultados proporcionados aos pacientes, e não apenas em termos de quantidades, seja de consultas, de internações, de procedimentos ou custos. O que se almeja, assim, é recompensar àqueles que prestam os serviços, pelo favorecimento que dão aos pacientes (que estão no centro da equação!), no sentido de melhorar sua saúde, reduzir a incidência e os efeitos das doenças crônicas, viver vidas mais saudáveis, enfim. Sempre de forma baseada em evidências, não em “achismos” de qualquer natureza, do tipo daquele que emitem as autoridades de hoje, ao considerarem, por exemplo, que “nazismo é coisa de esquerda” e que um astrólogo folclórico e boquirroto possa ser considerado um verdadeiro filósofo…

Tal noção de valor deriva, então, da mensuração de resultados em saúde, relativos aos custos que correspondem aos mesmos, seja para o sistema de saúde, prestadores, trabalhadores, financiadores e, principalmente, para a sociedade e para os pacientes em geral.  Entre as noções associadas então eficiência, controle de custos, transparência, redução de riscos, definição de indicadores, personalização de cuidados, adequação de tecnologias, trabalho em equipe, responsabilização, compartilhamento de informações, coordenação do cuidado, entre outras. Nem todas essas coisas, vamos admitir, fazem parte dos sonhos das corporações de médicos e de servidores da saúde em geral.

Representa ainda uma modalidade de pagamento por performance, fazendo parte de uma cadeia de desempenho voltada para a melhoria dos resultados e dos processos associados à relação entre financiamento e prestação de serviços. Tal conceito pode ser aplicado tanto à remuneração de trabalhadores de saúde, de conformidade com resultados alcançados, como na orientação de contratos entre entes públicos e privados.

Entretanto, existem alguns desafios, de natureza cultural, política e institucional, ao se implementar um sistema assim, ou seja: (a) a intolerância dos sindicatos face à avaliação de trabalhadores e associação de salários a desempenho ou produtividade; (b) a complicada aceitação de processos de avaliação de desempenho associada a negociação coletiva de salários, ainda mais se diferenciados por categoria; (c) a questão da métrica a ser utilizada na definição dos indicadores de resultado e o cálculo de sua factibilidade relativos ao que medir, por que medir, quem vai medir, quando e como; (d) a realização de contratos entre governos, unidades de saúde e seus trabalhadores para definir cláusulas justas entre uma parte fixa de vencimentos e a bonificação associada a resultados.

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E no Brasil, isso poderia dar certo? No caso do setor público, alguns bons exemplos são as Organizações Sociais em São Paulo, a Fundação de Saúde da Família na Bahia e a SMS de Curitiba, entre outros.

No caso das OSS, quase sempre vistas com suspeição por parte dos sindicalistas e defensores intransigentes do SUS, existem avaliações positivas, em que pesem críticas que aparentemente têm foco maior nos possíveis benefícios individuais dos trabalhadores, versus o interesse coletivo. Isso tem impedido a expansão de tal modelo, restringindo-o aos hospitais sob contrato e não ao pessoal das unidades de saúde.

Na Fundação Estatal de Saúde da Família da Bahia (FESF-SUS), a qual tem a adesão de 69 municípios do Estado, existe o interesse de superar mecanismos tradicionais, centrados no faturamento de serviços produzidos, e valorizando os resultados advindos de programações ascendentes, pactuadas e integradas. Nesta entidade, o pagamento por desempenho não é feito mensalmente, mas a avaliação de desempenho é considerada como critério para definir os planos de carreira, promoções e remuneração adicional do pessoal de saúde a cada ano.

O caso mais notável, sem dúvida, é o da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba, que instituiu, desde há alguns anos, instrumentos e estratégias de gestão através do planejamento compartilhado, negociação de metas, monitoramento continuo de processos de trabalho, assegurando resultados e premiando méritos, atingindo mais de duas centenas de gestores de níveis estratégico, gerencial e operacional e aproximadamente 6,5 mil trabalhadores em saúde (dados de 2015). Assim, são definidas ações, metas e processos de trabalho transformados em cláusulas contratuais e pactuada as responsabilidades de cada nível, com subsequente formalização de um termo de compromisso anual entre gestores, equipes e representantes de usuários, com 81 indicadores para monitoramento. É estabelecido um Incentivo ao Desenvolvimento da Qualidade-IDQ, com remuneração variável em função da para qualidade dos serviços prestados, vinculados a avaliação do desempenho e metas e indicadores monitorados no período ou até que se consolidem a sua execução. Leia mais no link abaixo.

No caso do setor privado brasileiro, embora a maioria das operadoras e hospitais no Brasil continuem a remunerar seus prestadores por procedimentos dispostos em tabelas padronizadas e o seu pessoal por salário ou unidade de serviço, há preocupações com a mudança de tal sistema. O grande problema é que isso tem estimulado mais o volume de produção do que a qualidade dos serviços prestados, sem oferecer reais benefícios para o usuário. Entre as experiências em curso, estão as de algumas Unimed, como em como São José dos Campos e Belo Horizonte, com resultados ainda preliminares, mas já demonstrando melhorias no nível de satisfação dos usuários.

No exterior, já existem experiências consolidadas. No Plano Obama para a saúde (Obamacare ou Patient Protection and Affordable Care Act – ACA, 2010), atualmente sob fogo cerrado do governo Trump, com base em conceitos semelhantes, o reembolso do hospital ou o salário do médico passam a refletir seu desempenho baseado na adesão a processos de atendimento, pontuações em pesquisas de satisfação do paciente, ou nos resultados da melhoria da saúde dos pacientes. Isso, aliás, é resultado de uma revisão de coisas que não estavam dando certo, tais como os incentivos para o pagamento de médicos que não estavam alinhados com a geração de valor ou benefício adicional para os pacientes. Em outras palavras, uma situação na qual médicos e hospitais buscavam fazer cada vez mais exames e procedimentos como meio para maximizarem remuneração, independente das necessidades dos pacientes. Assim, resultados são medidos através de 12 indicadores de processos clínicos, que refletem adesão aos protocolos de tratamento, bem como aos resultados dos inquéritos de satisfação do paciente e há indicativos de que isso vem funcionando bem.

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E para o futuro, o que se espera dessa “saúde baseada em valor”? Os especialistas, conforme os trabalhos citados abaixo, admitem que passar do sistema atual de taxação de serviços e procedimentos para valor levará tempo, com uma transição que parece ser mais difícil do que o esperado. Há de fato um cenário de saúde continua em evolução, no qual os prestadores devem aumentar a adoção de modelos baseados em valor, já que podem vislumbrar vantagens financeiras de curto prazo antes do declínio dos custos a longo prazo. No entanto, a transição de serviço para valor mostra ser o melhor método para reduzir os custos de saúde, aumentando o cuidado de qualidade e ajudando as pessoas a levar vidas mais saudáveis.

No caso da remuneração pessoal, ou seja, de servidores, principalmente médicos, mediante tal sistema, que cria responsabilidades e obrigações novas, o quadro é um tanto mais sombrio, dado o habitual interesse corporativo em focalizar com exclusividade o que impacta cada segmento, e não a população como um todo. As manifestações dos representantes de médicos e demais servidores da saúde aqui no DF, como demonstrada acima, é bem um indicativo disso.

E no DF, como ficamos? É uma boa questão. O governo local, em seus primeiros passos, tem demonstrado um grau de voluntarismo e mesmo de amadorismo sem precedentes, além de marcante indefinição relativa ao que pretende fazer realmente, na saúde e em outras áreas. Embora as ameaças de demissão e outras punições explicitadas na portaria aqui comentada, o que se vê é uma atitude de “dar uma no cravo outra na ferradura”, em relação aos servidores. Haja vista as recentes decisões relativas à constituição de um plano de saúde específico para os mesmos e até mesmo a promessa de dar a eles um hospital próprio, afastando-os do SUS onde uma parte é servidora, ou melhor, deixando o sistema público “para os outros”, não para a corporação. Sendo assim, é pouco provável que tenhamos por aqui inovações do tipo aqui comentado, ou seja, continuaremos, na saúde, sob o império da produção e da quantidade (e olhe lá!) e não da qualidade e do valor.

A questão de tratar bem os pacientes é um VALOR verdadeiro e legítimo, portanto. Depende de muitos fatores, entre os quais está a satisfação dos usuários, mas não apenas ela. Assim, em termos individuais é necessário ser acolhedor e humano com os usuários, ser produtivo, ter assiduidade, se relacionar bem em equipe, atender as normas e protocolos do serviços. Nas equipes, além da somatória disso tudo, é preciso programar, ter compromisso e promover melhorias reais na saúde da população atendida, isto é,  trazer resultados concretos na saúde da mesma, mediante indicadores a serem acompanhados devidamente, sem manobras escusas corporativas. Isso tudo vai muito além da emissão de portarias burocráticas, nascidas para serem descumpridas e esquecidas. Assim é preciso também pensar em investimento educacional, em responsabilização de fato e de direito, em incremento na participação de usuários, em exercício real do poder e da autoridade por parte de quem comanda, mediante parcerias sociais diversificadas, por exemplo, com sindicatos, organizações sociais, Ministério Público, Defensoria, ONGs de Defesa da Cidadania, entre outros.

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Sempre é possível saber mais…

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2019/04/18/interna_cidadesdf,750221/servidor-da-saude-corre-risco-de-demissao-se-tratar-mal-pacientes.shtml

 

 

 

 

4 respostas para “Volume ou valor? Produção ou resultados? Quantidade ou qualidade?”

  1. Excelente, meu caro! Parece-me que falta espírito público exatamente nos que se arvoram em “servidores públicos”. Esquecem-se de que, em assim sendo, devem servir ao público, que em última análise é o patrão.

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  2. Parabéns doutor. A noção de valor, no aspecto de algo intangível se espelha em parte no aforismo do médico plantonista e dá forma a responsabilidade aqueles que trabalham nos pronto artendimentos: ” o plantão é do medico”.

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