Dengue: quosque tandem?

Anuncia a SES-DF (ver link ao final) que está trabalhando com todo vigor para combater as larvas e o mosquito Aedes aegypti, cobrindo com suas ações, ao longo de poucos meses, 359.417 residências nas diversas regiões administrativas do Distrito Federal, sem contar a aplicação do “UBV pesado”, vulgo fumacê, em nada menos do que 441 mil imóveis. Os números prosseguem e chegam a ser exaustivos, mas para fazer justiça à SES vamos registrá-los: 13 mil imóveis tratados, 653 armadilhas colocadas, 1.032 imóveis revisitados, 582 escolas públicas inspecionadas. Mas será que é isso mesmo que importa?

  • SUMÁRIO: Quando assumi o posto de Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia, no início da década passada, fiquei abismado com a existência de quase 300 pessoas empregadas na Prefeitura para realizarem o “controle da dengue”, que àquela altura ameaçava não só a cidade como muitas outras partes do país. Para uma doença tão grave, imaginava que seu controle dependeria de ações que iriam muito além de catar latinhas nos quintais e lotes vagos e visitar as casas para constatar a existência de vasos com pratinhos cheios d’água. E eu me perguntava se para doenças muito mais graves, como a hipertensão arterial, a diabetes, as doenças derivadas do stress e do tabaco, além de outras, haveria, por parte do Poder Público, uma ação semelhante, ou seja, mandar os agentes da saúde nas próprias casas dos pacientes para ver se estavam bem, se tomavam os remédios, se faziam dieta e outras medidas recomendadas. Só recentemente constatei que minhas ideias se justificavam, ao ler uma entrevista da médica e pesquisadora da Fiocruz, Lia Giraldo,  afirmando que o problema deve ser realmente revirado do avesso: o maior inimigo não é o mosquito! Disse ela: “Inspecionar as casas, mandar as pessoas olharem seus vasos de planta e ficarem de olho nos vizinhos, passar carro com fumacê, perseguir cada gota de água parada. Há 30 anos o Brasil quer controlar a multiplicação do Aedes aegypti, e há 30 anos falha. Não só a epidemia de dengue volta a cada ano como outras doenças passam a ameaçar:  zika e chikungunya se tornaram grandes problemas, e a febre amarela volta a assustar em termos nacionais, inclusive com o espectro da sua versão urbana pairando sobre alguns municípios”.  Ações inócuas e inoportunas, portanto. Será que a Saúde Pública está falida, diante de seu fracasso na dengue? O certo é que tal problema, bem como das outras doenças endêmicas não se traduz apenas em uma questão de mosquitos ou de um ambiente natural inadequadamente utilizado e maltratado pelo homem. Os governos, embora tenham papel importante e intransferível no controle da doença, pouco podem fazer face a alguns problemas culturais, tecnológicos e políticos. A polarização e o reducionismo conceitual normalmente colocados no cenário encobrem a verdade, ao levar ao risco de culpabilizar as vítimas ou, quem sabe, prender-se nas malhas de um discurso ideológico ou não-científico, sem consequências que não sejam as de atacar o problema pelo lado errado e produzir ações inócuas.

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LEIA O TEXTO NA ÍNTEGRA, ABAIXO:

Esta questão mexe comigo há muito tempo…  Quando assumi o posto de Secretário Municipal de Saúde em Uberlândia, no início da década passada, fiquei abismado com a existência de quase 300 pessoas empregadas na Prefeitura para realizarem o “controle da dengue”, que àquela altura ameaçava não só a cidade como muitas outras partes do país. A dengue era e continua sendo uma doença potencialmente grave e seu controle depende de  ações que vão muito além de  catar latinhas nos quintais e lotes vagos e visitar as casas para constatar a existência de vasos com pratinhos cheios d’água. Não se trata de uma ironia, mas era basicamente isso o que aqueles laboriosos trabalhadores faziam.

Na ocasião eu me perguntava se para doenças muito mais graves, como a hipertensão arterial, a diabetes, as doenças derivadas do stress e do tabaco, além de outras, haveria, por parte do Poder Público, uma ação semelhante, ou seja, mandar os agentes da saúde nas próprias casas dos pacientes para ver se estavam bem, se tomavam os remédios, se faziam dieta e outras medidas recomendadas. Mas em relação à dengue, que mata bem menos do que a hipertensão e a diabetes, algo parecido era feito… Eu fiquei bastante inconformado com isso e resolvi dar um freio de arrumação em tais ações, até porque era notória a falta de compromisso de muitos daqueles agentes, nomeados em momento anterior graças à indicação pura e simples de vereadores. Entre eles havia advogados, professores, comerciantes falidos e outros. Será que o negócio dessa gente era realmente catar latinhas e bisbilhotar residências? Não haveria algo errado naquilo? Era o que eu me perguntava.

Na ocasião, mesmo visto com olhos de suspeita por parte de meus subordinados na SMS de Uberlândia, e mesmo por gente graúda da FNS, em Brasília, reduzi drasticamente o plantel da dengue. A Câmara de Vereadores quase me crucificou, pois muitos dos que ali estavam eram protegidos dos políticos, de todos os partidos, aliás. Ninguém morreu por causa disso. Aliás, os indicadores da epidemia não se alteraram.

Eu havia assistido, algum tempo antes, uma cena insólita. O Ministro da Saúde em exercício, Barjas Negri, em substituição a José Serra, foi fazer uma palestra em um evento no Rio. Serra também estava indisposto com a turma do “cata-latas”, tanto que havia promovido uma baixa geral no plantel carioca, inclusive sob a alegação de que nas indicações deles havia o dedo do crime organizado (naquele tempo, final dos anos 90, ainda não se falava em “milícias”). O substituto foi recebido com uma faixa aberta nas fileiras de trás do auditório: “Serra Assassino”, com todas as letras. Mal-estar geral, claro. Foi aí que eu assisti uma rara manifestação de coragem de um homem público. O Prefeito do Rio na ocasião, Luiz Conde, que também fazia parte da mesa, interrompeu a constrangida saudação de Barjas  e disse em alto e bom som: “gostaria que vocês retirassem esta faixa agressiva, imediatamente”. Não foi obedecido, claro. Então foi taxativo: “quem está falando é o Prefeito da cidade, a maior autoridade aqui presente. Ou vocês retiram logo esta agressão ou eu tomarei de imediato as providências necessárias, com a força policial se for o caso”. A faixa tremulou por um momento e foi devidamente enrolada e recolhida. Simples assim… Faço aqui um elogio apenas à coragem de Conde, não a suas condutas como homem público, pois pelo que sei ele foi depois condenado por operações inescrupulosas com dinheiro que não era dele. Mas achei uma grande lição um governante enfrentar com tanta coragem uma situação daquela. Lembrou-me Mario Covas, outro sujeito a quem admiro. Conto essa história aqui apenas para reforçar o folclore existente sobre tal assunto.

Voltando ao início: muitos anos depois pude constatar que eu tive razão em aplicar o tal freio. Ou, pelo menos, obtive apoio para minhas ideias. Há alguns meses li que a médica e pesquisadora da Fiocruz e da UFPE, Lia Giraldo, também colocava o dedo na ferida, ao dizer que o problema deve ser realmente revirado do avesso: o maior inimigo não é o mosquito! Diz ela: “Inspecionar as casas, mandar as pessoas olharem seus vasos de planta e ficarem de olho nos vizinhos, passar carro com fumacê, perseguir cada gota de água parada. Há 30 anos o Brasil quer controlar a multiplicação do Aedes aegypti, e há 30 anos falha. Não só a epidemia de dengue volta a cada ano como outras doenças passam a ameaçar:  zika e chikungunya se tornaram grandes problemas, e a febre amarela volta a assustar em termos nacionais, inclusive com o espectro da sua versão urbana pairando sobre alguns municípios”.  Ações inócuas e inoportunas, portanto.

Concluindo, será que a Saúde Pública está falida, diante de seu fracasso na dengue? O certo é que tal problema, bem como das outras doenças endêmicas não se traduz apenas em uma questão de mosquitos ou de um ambiente natural inadequadamente utilizado e maltratado pelo homem. Os governos, embora tenham papel importante e intransferível no controle da doença, pouco podem fazer face a alguns problemas culturais, tecnológicos e políticos. A polarização e o reducionismo conceitual normalmente colocados no cenário encobrem a verdade, ao levar ao risco de culpabilizar as vítimas ou, quem sabe, prender-se nas malhas de um discurso ideológico ou não-científico, sem consequências que não sejam as de atacar o problema pelo lado errado e produzir ações inócuas. É preciso avançar um pouco além do senso comum para se ter respostas adequadas …

As pessoas que trabalham com a Saúde, com a Educação, com a Educação na Saúde precisam ter essas coisas em mente para agirem. Um ditado oriental alerta para os riscos que correm os que insistem em se ater às aparências e às revelações do senso-comum: o sábio aponta a lua; o tolo não vê mais que o dedo…

Em outras palavras: até quando – quosque tandem (em bom latim – porque o problema é quase tão velho como esta língua morta)?

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Leia na íntegra a entrevista da Professora Lia Giraldo:

E vai aí também uma pensata minha anterior sobre a questão:

E aqui o informe da SES-DF:

 

Uma resposta para “”

  1. Obrigado, meu caro. A falta de efetividade dessas ações, que consomem grandes somas de recursos públicos, é bem conhecida. Há anos teimamos em manter a mesma estratégia, apesar de sua ineficácia. Qual será a melhor saída?

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