O “transtorno” do Entorno: Decreto de Ibaneis impede atendimento de casos de Covid-19 vindos de fora do DF

O governador do DF, Ibaneis Rocha, assina nesta quinta-feira (14/5), decreto, em fase final de preparação, que impede pacientes do Entorno, portadores da Covid-19, serem atendidos na rede pública de Saúde da Brasília. É uma ideia antiga do Governador que, mesmo antes da pandemia, defendia brecar a suposta sobrecarga trazida por tais pacientes no DF. Informa a imprensa (ver link ao final) que o GDF estaria tentando, sem sucesso, um acordo com o estado de GO neste sentido. Os vizinhos goianos, todavia, retrucam, alegando que tal decisão causa estranheza e que na verdade havia diálogo entre as partes, em busca de cooperação. História antiga esta…

Segundo pesquisa recente do IBGE, sobre informações básicas municipais (ver link ao final), mais da metade dos municípios brasileiros não oferecem serviços de atenção básica em saúde, de forma completa e resolutiva, e com isso precisam encaminhar os usuários do SUS para outras cidades para a realização de exames, mesmo os mais simples. Se há necessidade de internação hospitalar, chegam a 60,7% os locais que precisam encaminhar pacientes para outros municípios. A pesquisa revela que o serviço mais ofertado localmente é o atendimento das emergências, presente em 91,9% dos municípios, porém sem revelar o repertório e o grau de complexidade e de tais serviços. Demonstra ainda a pesquisa do IBGE que em 2018, 93,2% das cidades brasileiras tinham estabelecimentos municipais de saúde e que, destes, 13,2% tinham estabelecimentos administrados por terceiros. Algumas variáveis estudadas: apenas 14,7% dos municípios dispunham de serviços de nefrologia públicos ou conveniados ao SUS; 9,7% possuíam leitos ou berços de UTI neonatal; 34,6% possuíam leitos/berços para cuidados intermediários. Tais informações, exaustivamente detalhadas no relatório da pesquisa, inclusive em relação ao entorno do DF refletem de maneira muito próxima o que ocorre por aqui, o que implica em relação tumultuada e de grande sobrecarga do DF, em relação à região. Assim foi no passado, continua no presente e sem dúvida deverá prosseguir até um futuro ainda remoto. O que poderia ser feito?

Este é um tema que se reitera na mídia e no discurso dos políticos. Eu próprio tenho tratado dele aqui em inúmeras ocasiões. Vamos a uma síntese de meus pontos de vista:

  1. O DF e seu Entorno constituem um espaço complexo de relações interfederativas, bem como entre os governos e a população, com problemas muitas vezes agravados pelas barreiras políticas e geográficas, derivadas da tendência competitiva e até predatória vigente na federação brasileira, problemas estes, sejam de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural, política etc, que não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais; antes requerem a ampliação dos mecanismos de governança, com ampliação do escopo da gestão dos vários participantes de tal região .
  2. Cabe pensar, assim, em “novas institucionalidades”, que requerem novos instrumentos de ação, tomando-se,  como exemplo, a atuação da Força Nacional de Segurança, praticamente impensável até alguns anos atrás, por ameaçar, supostamente, a marcante autonomia dos entes federados, mas que uma vez instalada veio ao encontro das demandas e das necessidades das sociedades política e civil nos locais em que atua.
  3. Assim, uma ação integrada no Entorno do DF deve se pautar por valores de solidariedade e cooperação, com definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três esferas, longe do predatismo e da competição, o que implica em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente a cada um dos entes federados, mas ao conjunto deles.
  4. Colegiados de gestão interfederativa são necessários, sem dúvida, mas não se deve prescindir também de novos papéis para o Gestor Federal, com a consequente ação trilateral daí advinda, sem temor de que isso se transforme em usurpação do poder do governo central, na perspectiva de ação interfederativa a se estender ao conjunto de serviços públicos comuns aos estados e municípios que compõem a região, o que ultrapassa a possível pauta de atuação de governos locais, dentro de uma pauta tão diversa como: infraestrutura urbana; capacitação profissional específica em saúde; política de saneamento básico e limpeza pública, em função dos indicadores epidemiológicos; proteção ao meio ambiente e controle da poluição ambiental; educação e cultura, nos aspectos relacionados à saúde, além de segurança pública.
  5. De forma análoga, as próprias atribuições específicas em saúde poderiam ser ampliadas, de forma a incluir a coordenação das ações e programas de saúde dos entes federados na região, visando o desenvolvimento e a redução das desigualdades sanitárias correspondentes, bem como a constituição de instâncias de mais flexíveis contratação de recursos humanos; a elaboração de planos, programas e projetos para o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns aos membros; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional; a constituição de instâncias de apoio (transporte, laboratório, capacitação, entre outras), etc.

O pressuposto maior de tais ações deve ser o de que o Entorno não pode ser visto como simplesmente um transtorno para o DF, pois a população que nele habita, além de ser portadora de direitos de cidadania tanto quanto aquela que habita a Capital Federal tem também um importante papel na movimentação da economia do DF, já que é no comércio local que costuma fazer suas despesas de custeio familiar e outras. Além disso, estas pessoas não podem pagar os custos da incúria de governantes que permitiram e estimularam a atração fantasiosa de centenas de milhares de migrantes, movidos de outras regiões do País por promessas vãs, com o consequente descalabro da exploração imobiliária nas áreas onde foram forçados a se alojar.

Uma coisa é certa. Decretos como este de Ibaneis, com sabor de uma lógica política medieval, aquela das “cidades-estado”, não se coadunam com as diretrizes do SUS e nem com a necessária colaboração e solidariedade entre os entes federativos, muito menos em situações sanitárias limite, como agora. Quanto ao papel do gestor federal, considerando as cenas recentes, quando o Ministro é avisado pelos jornalistas que o ouviam na ocasião, de um decreto presidencial tratando de tema de sua alçada específica, que até então ignorava, fica claro que pouco se pode esperar do Ministério da Saúde neste momento. Aliás, enquanto durar este governo destituído de noção, não só de saúde, como de gestão racional e, principalmente, de alguma sensibilidade humana. Aliás, parecem ser “qualidades” que vicejam dentro do “quadradinho” também…

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Uma resposta para “”

  1. Causa espanto essa iniciativa de um Governador, ao pretender negar assistência em saúde a um cidadão que mora em município vizinho, embora pertencente a outra unidade federativa. Vale a comparação com Portugal, um dos exemplos no manejo da Covid-19. No início da pandemia, Portugal regularizou a situação de todos os ESTRANGEIROS em situação pendente para que TODOS os residentes no país pudessem ter acesso ao SNS. É imensa a diferença de pensamento.

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