Covid-19 no DF: de onde viemos, para onde vamos (II)

Os dados que temos sobre a atual pandemia, divulgados pela imprensa, têm primado pela apresentação de números absolutos, de totais de mortes ou de casos, sem levar em conta a proporção dos mesmos em relação à população de cada local (ou por 100 mil habitantes). E isso aí é o que realmente importa. Até o presidente entendeu isso, mas se deu mal ao pedir aos repórteres que o inquiriam na porta do Alvorada que comparassem o Brasil com a Argentina ou a Suécia. E “deu ruim” nos dois casos, visto que ficamos em situação incômoda perante Los Hermanos e a Suécia não era aquilo que se imaginava, com sua política relax, guindada de repente ao submundo do mau controle da pandemia. De toda forma, é preciso fugir de certa “placarização” ou “futebolização” dos números, não no sentido escamoteador que o governo quer, mas não deixa de ser estranha esta elaboração de rankings, como se alguma coisa muito positiva estivesse em jogo, e não o contrário. Assim, como já o fiz há um mês, trago aqui uma comparação do DF, em termos de incidência por 100 mil habitantes, com um conjunto de capitais brasileiras, duas ou três de cada região e com população próxima ou superior a um milhão de habitantes. Os dados são da última semana, entre o final de maio e o dia dois de junho. Como fica o DF nesta história? Veja a seguir. 

Em primeiro lugar, é preciso ressaltar algumas possíveis distorções. A primeira delas é a subnotificação, que certamente existe em toda parte, como decorrência de incapacidades estruturais, seja de processamento de dados, inércia (ou mesmo inépcia…) e falta de testes de comprovação. Isso deveria ser mais impactante nas cidades com sistemas de saúde supostamente mal organizados, que desta forma apresentariam cifras menores ao esperado. Mas há um sinal de alerta: cidades com Manaus, Belém, Fortaleza e Recife, com suas prováveis dificuldades de estrutura de saúde, são justamente as que apresentam números mais elevados. Ou seja, mesmo com subnotificação, os números que exibem traduzem tremendo impacto.

Outra questão é a dos possíveis “pontos fora da curva”, representados, por exemplo, por Salvador, Campo Grande e Goiânia. São cidades nas quais os índices deveriam ser maiores, por analogia com outras do mesmo porte e região. Alguma coisa indica que por força de alguma injunção gerencial elas estejam em posição, por assim dizer, “falseada” frente às demais.

Belo Horizonte, com quase inacreditáveis duas mortes por 100 mil habitantes, frente a Belém e Fortaleza com mais de 80, poderia ser também um dos tais pontos fora da curva. Contudo, em favor da capital de MG, por acaso administrada por um “cartola” do futebol, a imprensa tem destacado a liderança do Prefeito e o cumprimento rigoroso das medidas propostas pela OMS e pela ciência geral, sem dar muito crédito às maluquices do Messias.

Vamos a Brasília agora.

Como se vê, estamos numa mediana até confortável em termos do número de casos, que foram até a data cerca de 350 por cem mil habitantes aqui, versus aqueles dos “quatro grandes”, ou seja, Manaus, Belém, Fortaleza, e Recife, com incidência mais do que o dobro disso. Há que se considerar, neste caso, que a tendência à subnotificação talvez seja menor aqui, por termos supostamente um sistema de saúde mais organizado do que nestas últimas cidades, o que aumentaria ainda mais a distância que no separa delas. Mas se nos compararmos com Curitiba, Porto Alegre e BH, nossas razões para relaxar não se justificariam – e isso tem especial relevância no momento em que o GDF já começa a se render aos ventos negacionistas que sopram desde o Palácio da Alvorada.

Outra razão para se manter a corda esticada aqui na Capital Federal é a de que a curva de novos casos ainda está em plena ascensão, como se pode ver no gráfico mostrado em link abaixo.

Na incidência de mortes, sem dúvida estamos em boa companhia, ou seja, das mesmas cidades de menor ocorrência da Covid-19 já citadas , deixando de lado os supostos “pontos fora da curva”. Isso sem dúvida significa que nosso sistema de saúde está dando conta do recado, como aliás já havíamos divulgado e comentado aqui, a partir de uma entrevista esclarecedora do epidemiologista da SES-DF, Eduardo Hage (ver link).

Na questão dos leitos de UTI, o Distrito Federal possuía, até a noite do dia 29 de maio, 279 pacientes infectados internados em Unidades de Terapia Intensiva, com uma taxa de ocupação de 51,3% dos leitos reservados para pacientes com a Covid-19. Tal taxa, contudo, é maior que o ideal estipulado pelo próprio governo do DF, que seria entre 35% e 40%. Ao par disso o GDF criou uma Comissão de Monitoramento de Leitos destinados ao enfrentamento da doença, com a atribuição, entre outras, de verificar as taxas percentuais de ocupação das vagas destinadas ao tratamento da doença. Ao todo, a rede de saúde do DF dispõe de 544 vagas de UTI reservadas para pacientes com o Covid-19, sendo 222  na rede particular e 322 na rede pública.

A tabela abaixo, montada a partir de dados divulgados pela imprensa, já o que o Ministério da Saúde anda negaceando com este tipo de informação,  mostra os dados que permitiram as considerações acima.

CAPITAL POP CASOS OBITOS INCID CASOS/100 MIL HAB INCID OBS/100 MIL HAB
MANAUS 2.182.763 18.971 1.389 862,3 63,7
BELÉM 1.492.745 12.681 1.381 851,1 92,6
FORTALEZA 2.669.342 24.897 2.231 932,5 83,6
RECIFE 1.645.727 15.521 1.090 940,7 66,3
SALVADOR 2.872.347 12.850 494 447,7 17,2
BRASILIA 3.015.268 10.621 148 352,9 4,9
GOIANIA 1.516.113 2.319 57 152,6 3,8
CAMPO GRANDE 895.982 306 8 34,1 0,9
B. HORIZONTE 2.512.070 1.912 51 76,2 2,0
SÃO PAULO 12.252.023 64.443 4.443 526,1 36,3
RIO 6.718.903 31.204 3.828 464,3 57,0
CURITIBA 1.933.105 1.026 51 53,1 2,6
P. ALEGRE 1.483.771 747 39 50,5 2,6
BRASIL 209.000.000 556.879 31.216 266,4 14,9

Uma atualização de última hora (dia 5 de junho) mostra que no DF já ocorrem mais de mil novos casos por dia (!), que o numero de óbitos já chegou a 200 e que o número total de casos ultrapassa os 14 mil.

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E por falar em mortes…

O Presidente da República perpetrou a sua habitual contribuição nefasta ao tema nesta última semana, ao defender que embora “lamente” as mortes, isso seria coisa normal, “faz parte, coisas da vida”. Engano, Excelência… A situação está como está, entre outras razões, porque quem deveria dar o exemplo e mostrar comando na situação, como se esperaria de um verdadeiro líder, fez e continua fazendo tudo ao contrário do que deveria: minimizou os riscos, desautorizou e demitiu ministros, confrontou as regras locais, saiu às ruas, abraçou populares, propagandeou terapêuticas falsas, ameaçou as instituições, desqualificou os que têm posições contrárias a ele, etc. Portanto, o que está acontecendo não é nada normal ou a ser relativizado. Pelo contrário, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas e tais atitudes são imperdoáveis e certamente serão julgadas pela História, não só em relação a Jair Messias como a seus seguidores.

A semana foi marcada também por duas mortes de pessoas negras: o menino João Pedro, no Rio de Janeiro, baleado pelas costas em uma invasão de sua casa pela PM e de George Floyd, sufocado até morrer pela polícia de Mineapolis-EUA. As manifestações no Brasil foram, entretanto, desproporcionais. Enquanto Floyd liderou trend topics na internet, mesmo aqui no Brasil, muito pouco se lamentou em relação ao pobre garoto carioca. E eu indago: qual a diferença entre os dois casos? A meu ver nenhuma. São situações idênticas de violência da polícia, de racismo estrutural, de desrespeito a direitos humanos. Por que não se lembrar de João Pedro cada vez que se falar em George? Mineapolis é aqui também… Pior do que racismo não seria esta combinação de racismo com colonização cultural?  Vidas negras importam, sim – e é bom lembrar que não são só as polícias que estão matando proporcionalmente mais negros do que brancos. A Covid-19 também…

E ainda dentro do tema “necro”, confesso que as manifestações pela democracia e contra o fascismo marcadas para o próximo final de semana me preocupam. Não pelo objeto em si, que é sumamente relevante e oportuno, não faltando ameaças quanto a isso. Mas vejo aí duas questões nas quais deveríamos pensar seriamente: 1. Estamos em época de pandemia e qualquer forma de aglomeração se revela perigosa e desnecessária (não para seguidores do “mito”, mas para os indivíduos “normais”); 2. Pode estar sendo criada uma oportunidade de confronto, provavelmente a partir de provocadores infiltrados, que confluirá para a situação que JMB e seus milicianos mais desejam, ou seja, o esgarçamento violento das instituições democráticas, de forma a justificar o indisfarçável golpe com que vêm sonhando. O pedido de Bolsonaro para que seus adeptos “fiquem em casa” no domingo, me cheira a um álibi prévio, que justificaria uma eventual “absolvição” do Planalto em tal questão. O resultado não será outro: mais mortes de inocentes, além das mais de trinta e tantos mil que já temos…

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