“Toda unanimidade é burra”; “ninguém de perto é normal”; “assim é se lhe parece”; “por fora bela viola, por dentro pão bolorento”. Há uma infinidade de adágios sobre as contradições entre a aparência e a realidade das coisas. Eu, por conta própria, já acrescentei um corolário a tal coleção: “a unanimidade faz mal à saúde”. Para mim, tal discussão entre realidade e aparência, quando se tem em foco a Saúde, ou, como prefiro dizer em relação ao SUS, entre o “sonhado, o real e o possível”, pode ser incômoda para alguns, mas certamente é necessária. Tenho me debruçado sobre isso há tempos e a lista de textos meus que mostro em link ao final bem o comprovam. Recentemente resolvi levantar, sob a forma de um decálogo, as principais “apostasias” cometidas por mim sobre o nosso sistema de saúde . Como as submeti preliminarmente a meu amigo Vitor Gomes Pinto, emérito pensador nas coisas da saúde, resolvi acrescentar ao presente texto os comentários com que ele me brindou sobre tais heresias. Assim, vamos lá.
AS APOSTASIAS
(1) Há que se abandonar aquele “sonho” chamado SUS e ao mesmo tempo rejeitar o SUS “real” para buscar um SUS “possível”; aquela visão onírica e triunfalista, aquele pensamento desejoso, próprios dos militantes, só têm levado a impasses em relação à saúde no Brasil – é preciso pensar com realismo!
(2) O SUS não é fruto de movimentos sociais – seria bom que o fosse – mas sim de um grupo de intelectuais, acadêmicos, sindicalistas e atores políticos influentes no período de redemocratização do país, grupo este que, aliás, perdeu influência no cenário nacional.
(3) A unanimidade é prejudicial à Saúde; o excesso de consenso entre os defensores tem impedido o SUS de avançar, com eventuais ideias de reforma sendo combatidas com vigoroso preconceito – é preciso arejar o debate, buscando e aprofundando ideias novas de fato.
(4) O SUS é um produto típico dos anos anteriores à década de 80 e desde então muita coisa mudou no Brasil e no Mundo, de tal forma que o nosso sistema de saúde deve ser ressignificado e reestruturado à luz de novos conhecimentos e informações, epidemiológicos, demográficos, econômicos, políticos e culturais.
(5) Ousadia de cumprir as Leis? Melhor seria exercermos a ousadia e arregimentar energias com a mudança nas leis que não colaram e que impedem as políticas públicas, entre elas o SUS, de avançar.
(6) A “igualdade” do direito ao acesso para ricos e pobres é falsa e prejudica estes últimos; os ricos sempre têm mais chance de abocanhar o que oferecem as políticas públicas, pois “pobre só tem amigo pobre”, enquanto os ricos usufruem de uma extensa rede de contatos e influências, que lhes abrem portas em toda parte.
(7) “Sistemas de saúde com foco nos mais pobres são também pobres” – é um dito comum entre os militantes pró SUS, mas eu gostaria de saber se realmente existe alguma confirmação científica para esta afirmativa genérica.
(8) Sistemas de saúde que se prezem devem oferecer tudo para todos, esta é a base do SUS. Em que país do mundo isso foi alcançado?
(9) No SUS, dizem, “a municipalização é o caminho”. Isso significa que São Paulo, a capital, e um minúsculo município dos confins da Amazônia devem ser tratados de igual forma? Não! São Paulo e os as cidades maiores devem ter muito mais autonomia para resolver seus problemas; os menores e mais pobres devem ter sua autonomia relativizada, para não serem obrigados a assumir todo o ônus de oferecer saúde a seus habitantes. E o financiamento dos níveis centrais de governo (União e Estados) deve estar atento a tais diferenças.
(10) Os Conselhos de Saúde devem ser deliberativos, assim está escrito na Lei; mas quem paga judicialmente por deliberações equivocadas é o Prefeito ou o Secretário Municipal e não o Conselho ou seus conselheiros. Simples assim.
Falei em decálogo, mas não resisto em acrescentar algo mais, o seguinte: Gostar do SUS ou defendê-lo não significa apenas fazer-lhe louvações triunfalistas e acríticas, como a daqueles que o consideram um “Patrimônio do Povo Brasileiro” e resistem a quaisquer mudanças no mesmo, mesmo em um panorama tão fluido como é o das políticas sociais, o da saúde em especial e o da cultura. Eu amo o SUS e o defendo, mas exatamente por isso acredito que ele precisa de transformações substanciais.
São pensamentos contra a corrente, sem dúvida. Mas que fazem sentido. Não aponto aqui para uma nêmesis irreversível do sistema de saúde brasileiro, mas sim para a necessidade de que os muitos dilemas do mesmo sejam encarados, para serem também transformados, com maior senso de realidade e não apenas de sonhos de militância, que apesar de generosos, não foram capazes de dar conta dos desafios que estas três décadas de SUS nos revelaram e nos impuseram.
Revisionista, eu? Pode ser que sim. Admito. Mas prefiro assim do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo.
***
AGORA, FALA VITOR:
Estimado Flávio, como se diria nos Açores ou em Lisboa: que não te oiçam…
Tens uma invejável capacidade de traduzir em poucas palavras muitos dos dilemas essenciais do nosso anti-sistema de saúde. Verdade que agora, com generais e cabos e sargentos como donos do Ministério da Saúde, não é o momento para discutir conceitos nem culpas antigas. Mas, direis: E quando é??? Nas últimas décadas nunca houve momento propício (não o Caldas) para um verdadeiro reexame crítico do SUS. Assim, nosso (insisto) anti-sistema apresentou-se frente à Covid-19 extremamente debilitado, desfinanciado, sem nunca de fato ter discutido seus reais problemas, dos quais exemplos maiores são a universalização e a descentralização. É de chorar. Justo agora em que todo mundo enxerga o quão necessário para o Brasil é possuir um sistema forte de saúde, o que se vê é a colocação na vitrine das deficiências e dos erros acumulados. Cada um dos itens que colocas de forma tão resumida justificaria uma obra de fundo, um livro. Quem teria coragem para escrevê-lo? Faz lembrar Roger Martin du Gard em “Os Thibault”, no qual um grupo de pacifistas a bordo dos primeiros teco-tecos sobrevoava exato o ponto de intersecção entre as tropas, lançando folhetos conclamando todos à paz, a poupar o inimigo que era um irmão. Foram considerados, pelos dois lados em luta como traidores e bombardeados por ambos. Para escritos avessos ao mainstream, entretanto, não temos leitores nem parceiros. Com teu impressionante poder de comunicação e habilidade para destacar o que é fundamental, haveria que tentar algo, um reação em meio ao deserto, colocando os conceitos corretos (as práticas seriam outra coisa, outra luta) ponto por ponto. Imagino um “opúsculo” para cada tema. Por exemplo: descentralização que engloba poder local e sua incapacidade (o exemplo de São Paulo vis a vis as pequenas cidades, é excelente) para fazer o sistema funcionar bem. abordando no mesmo tópico o fracasso do poder estadual que deveria fazer o papel do setor de meio-campo e a megalomania do poder central que, na verdade, sempre se comportou como o grande obstáculo à descentralização (o que foi feito, e mal, foi um tipo de desconcentração) ao manter os recursos em suas mãos a fim de os distribuir abaixo de milhares de normas criadas exatamente para, como diria o Chacrinha, complicar ao invés de facilitar. Recordo uma secretária de saúde no Rio Grande do Norte que se orgulhava de “saber tudo sobre o SUS” porque decorara os mil decretos e ordens de serviço que a cada dia. se multiplicavam. E presenciei reuniões de “gestores municipais” (um sofisma) que se esforçavam para formar consórcios entre pequenos para ganhar força de negociação, algo que evidentemente não tinha qq. chance de dar certo. Por fim, lembro outro ponto que poderia ser motivo de um aprofundamento já e já: a questão da “saúde para todos”, hoje apelidada de universalização pelo Tedros da OMS, fazendo uma proposta concreta de definição do que pode e do que não pode ser custeado pelo SUS, ao menos com o objetivo de diminuir a judicialização. O decálogo, muito esperado por aqui, não negou fogo e pergunto se posso publicá-lo no Mundo Século XXI, o site que, por sinal, quase deixei de alimentar depois de tantos anos. Acho que sim, deves dar conhecimento aos teus numerosos contatos, se achares que com isso ampliarás o contingente dos que (muitos já o fazem) pensam criticamente, dando-lhes armas necessárias para a ação.
Um bom abraço. Vitor
E arremato eu, Flavio: o que mais posso querer se não ter leitores assim?
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A seguinte lista relaciona os posts que fiz ao longo dos últimos anos (desde 2013 na verdade), em que desenvolvo os temas traduzidos pelas tais apostasias. Como os relaciono aqui, acessíveis a quem quiser, abro mão de justificá-las. Há nisso material para mais de um decálogo, certamente, mas vamos deixar assim por enquanto. A primeira parte tem nada menos do que 47 exemplares, publicados em https://veredasaude.com. A segunda, com 15 textos está em https://saudenodfblog.wordpress.com. Tudo acessível a um simples toque.
LISTA 01
- https://veredasaude.com/2019/10/06/na-saude-por-que-a-vaca-vai-pro-brejo/
- https://veredasaude.com/2019/10/06/praticas-alternativas-integrativas-complementares-e-nao-custa-indagar-tambem-efetivas/
- https://veredasaude.com/2018/07/05/eu-e-o-conasems-30-anos-depois/
- https://veredasaude.com/2018/06/19/sus-haja-ousadia-para-mudar/
- https://veredasaude.com/2018/04/03/crepusculo-de-deuses/
- https://veredasaude.com/2018/01/15/de-controle-controlismo-controlite-e-controlose/
- https://veredasaude.com/2017/07/21/micro-participacao-social-em-saude-apontamentos-para-discussao/
- https://veredasaude.com/2017/05/29/o-sus-entre-o-sonhado-o-real-e-o-possivel/
- https://veredasaude.com/2017/03/22/carta-a-um-amigo-que-ainda-acredita-no-sus/
- https://veredasaude.com/2016/08/28/o-sus-e-fruto-realmente-dos-movimentos-sociais/
- https://veredasaude.com/2016/08/20/burra-lex-sed-lex/
- https://veredasaude.com/2016/08/01/saude-e-democracia/
- https://veredasaude.com/2016/07/28/todo-paciente-tem-seu-preco/
- https://veredasaude.com/2016/06/28/meu-espaco-militante/
- https://veredasaude.com/2016/06/21/uma-entrevista-explosiva/
- https://veredasaude.com/2016/06/12/sob-as-luzes-da-ribalta/
- https://veredasaude.com/2016/06/08/perguntas-que-nao-querem-calar-respostas-que-ninguem-da/
- https://veredasaude.com/2016/04/28/a-revolta-da-vacina-e-suas-licoes/
- https://veredasaude.com/2016/02/03/esta-ficando-dificil-defender-o-sus/
- https://veredasaude.com/2015/09/18/a-saude-publica-entre-o-super-homem-e-sao-francisco-de-assis/
- https://veredasaude.com/2015/09/01/cpmf-por-quem-os-sinos-dobram/
- https://veredasaude.com/2015/07/31/o-sus-dez-teses-na-contramao/
- https://veredasaude.com/2015/07/30/saude-da-familia-flexibilizar-sem-perder-a-compostura/
- https://veredasaude.com/2015/07/22/conferencias-de-saude-na-encruzilhada-2/
- https://veredasaude.com/2015/07/01/contratar-pessoas-por-resultado-da-resultado/
- https://veredasaude.com/2014/11/26/de-saude-e-cultura/
- https://veredasaude.com/2014/11/22/cobertura-ou-sistema-universal-de-saude/
- https://veredasaude.com/2014/08/22/o-sus-e-o-bode-na-sala/
- https://veredasaude.com/2014/08/12/mais-medicos-areas-de-sombra/
- https://veredasaude.com/2014/07/23/governanca-capital-social-e-saude/
- https://veredasaude.com/2014/06/17/para-onde-vai-o-sus/
- https://veredasaude.com/2014/06/04/dez-propostas-para-o-sus-tomar-jeito/
- https://veredasaude.com/2014/04/17/dona-cecilia-e-a-boa-gestao-em-saude/
- https://veredasaude.com/2014/04/28/circulos-virtuosos-e-boas-praticas-em-saude-da-familia/
- https://veredasaude.com/2014/04/09/saude-da-familia-e-preciso-equilibrar-musculos-e-inteligencia/
- https://veredasaude.com/2014/02/10/muita-sauva-pouca-saude/
- https://veredasaude.com/2013/12/04/nos-participamos-eles-decidem/
- https://veredasaude.com/2013/11/24/esculpindo-o-sus-a-golpes-de-portaria/
- https://veredasaude.com/2013/11/13/mudam-se-os-tempos-mudam-se-as-vontades-algumas-reflexoes-sobre-as-praticas-de-saude/
- https://veredasaude.com/2013/10/30/descentralizacao-nao-e-panaceia/
- https://veredasaude.com/2013/10/23/entorno-ou-transtorno/
- https://veredasaude.com/2013/10/17/inovacao-ou-novidade/
- https://veredasaude.com/2013/10/16/participacao-social-em-saude-e-bem-mais-do-que-manda-a-lei-8112/
- https://veredasaude.com/2013/10/10/por-que-eu-implico-com-a-tal-da-unanimidade/
- https://veredasaude.com/2013/10/10/da-logica-militante/
- https://veredasaude.com/2013/10/10/as-profissoes-de-saude-e-os-desafios-do-futuro/
- https://veredasaude.com/2013/10/04/mais-medicos/
LISTA 02
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/05/21/o-mito-da-administracao-militar/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/21/prescricao-por-enfermeirao-sim-ou-nao/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/09/por-uma-saude-baseada-em-valores/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/08/saude-o-que-o-setor-privado-pode-nos-ensinar/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/02/07/pela-atuacao-realmente-avancada-da-enfermagem-em-nossos-servicos-de-saude/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/11/19/df-melhor-como-municipio-ou-estado/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/11/07/autonomia-e-flexibilidade-quem-nao-deseja-isso-no-servico-publico/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/10/08/um-sistema-de-saude-civico-militar-nao-duvide/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/24/sobre-as-chamadas-clinicas-populares-os-tempos-estao-mudando/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/02/16a-conferencia-nacional-de-saude-qual-o-foco-afinal/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/09/06/na-saude-por-que-a-vaca-vai-pro-brejo/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/08/06/oito-mais-oito-soma-zero/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/07/30/mais-medicos-mais-do-mesmo/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/05/18/mais-um-relatorio-na-saude-para-a-critica-devoradora-dos-ratos/
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2019/04/29/volume-ou-valor-producao-ou-resultados-quantidade-ou-qualidade/

