Interesses singulares, prejuízos plurais

Esta semana as manchetes da imprensa, locais e nacionais, reproduzem o que já vai virando rotina no Brasil: a cúpula inteira da Secretaria de Saúde do DF foi parar na cadeia. Entre os presos o Secretário de Vigilância à Saúde, a quem inclusive elogiei aqui no blog, recentemente. Mas esclareço: não o condenarei por ora; continuo sendo um dos que acreditam que todo mundo é inocente, até prova em contrário. Aguardarei tal confirmação, portanto, antes de antepor algum veredito ou opinião pessoal. No país da Lava Jato tal atitude não é só uma questão de bom senso, mas de justiça verdadeira. Continuarei acreditando nisso mesmo que alguém venha ameaçar de “encher minha boca de porrada”. Mas cabe a pergunta: por que neste país tudo tem que ser sempre assim? Seria um dito Bíblico: onde houver Poder Público que haja sempre corrupção? Seria uma lei natural? Sempre me recordo daquele terremoto seguido de tsunami no Japão, alguns anos atrás. O aeroporto da cidade de Narita tinha lama na altura do segundo andar e aviões virados de ponta cabeça. Em uma semana voltou a funcionar de forma quase regular. Será que havia boas leis do tipo da brasileira 8.666 (Contratos e Licitações) por lá? Ou seriam outros os ingredientes, de fundo moral e de consciência política?

Dante Allighieri reservou, em seu Inferno, um lugar especial para os corruptos. eles seriam açoitados por um punhado de demônios, mergulhados em um tonel de piche fervente. Não chego a tanto, mas cá entre nós, penso que já era hora de esta turma ter um pouco de medo…

Lembrei-me também de outro episódio, este local, de uma década ou mais: o assassinato de um sujeito em plena travessia de um dos semáforos de uma quadra comercial na Asa Norte. Vingança, dívidas, luta de gangues? De tudo um pouco. O morto estava envolvido diretamente em uma disputa licitatória (mais uma vez, pela Lei 8.666) no Ministério da Saúde e aparentemente tinha sido mais hábil de que seus adversários em cooptar, corromper e distorcer os termos da licitação. E assim os derrotados o executaram, à luz do dia e também de outra Lei, de tradição centenária, aquela que os mafiosos consagraram em Nápoles, depois em outras partes do Planeta.

Em suma, a grande questão a mover as engrenagens principais das irregularidades na saúde tem a ver com licitações e compras, e, portanto, dinheiro.  A recente compra superfaturada de cloroquina em produtores de matéria prima da Índia é bem um exemplo disso. Já se foi o tempo em que falcatruas eram aquelas singelas cobranças por cesarianas em homens, prostatectomias em mulheres ou apêndices extraídos duas ou três vezes na mesma pessoa. Isso virou lenda, chega a ser até uma relíquia romântica. Ninguém mais rouba assim até porque os sistemas de controle, inclusive automatizados e incorporados nos sistemas informatizados de AIH já realizam a faxina adequada. 

Por outro lado, quando se fala em privatização, o que vem à cabeça de todo mundo é a entrega de empresas estatais ou rodovias para a exploração privada. Este, para mim, é o menor dos males, pois geralmente, embora nem sempre, é feito à luz do sol e os resultados podem ser até benéficos. Mas o que passa desapercebido (e nem é reconhecido como privatização) é a existência de mecanismos sub-reptícios, debaixo de panos e segredos, que ocorrem do cotidiano das organizações públicas, envolvendo transações de dinheiro e influências nos setores de compras dos órgãos públicos, realizadas de forma absolutamente opaca muitas vezes. Este pessoal não reconhece limites. É gente infiltrada em toda máquina pública, da Casa da Moeda à coleta de lixo de uma Prefeitura remota; das Forças Armadas ao pequeno hospital público; do fornecedor da bandeira que orna o Palácio do Planalto ao setor de merenda escolar do pequeno município da Amazônia.

A grande questão continua sendo: tem que ser assim? Ou há outras maneiras, isentas de desvio, de fazer as ações de governo andarem? Vamos considerar o caso da Saúde, que é nosso foco permanente aqui neste blog. Neste caso, há que se reconhecer que a Saúde tem especificidades reais, que nem sempre facilitam o controle da corrupção.

Em primeiro lugar, recorrendo àquela famosa explicação do ladrão que justificava a razão de assaltar só bancos: é porque ali está o dinheiro… E na Saúde o dinheiro, mesmo não sendo suficiente, tem vulto, e além disso coloca em jogo a vida das pessoas, sendo esta uma área altamente permeada por tecnologias tão onerosas quanto mutáveis, ao sabor de interesses industriais e comerciais muito poderosos.

Outro aspecto que está em jogo é o domínio de uma poderosa corporação de burocratas, não exatamente de médicos, (vai chegar a vez deles) que dominam o conhecimento de tudo o que diz respeito de compras, convênios, contratos, licitações, empenhos, prestação de contas etc.  Poderíamos chamá-los de “Postos Ipiranga”, se tal alcunha já não tivesse sido apropriada por alguém. Gente que sabe caminhar e se safar dentro do proverbial cipoal normativo existente no país. Quando isso se soma ao desconhecimento de causa por parte dos dirigentes, muitas vezes guindados aos postos de Ministros ou Secretários diretamente de seus consultórios (ou, no caso presente, diretamente de algum quartel), isso adiciona fome à vontade de comer e já seria meio caminho andado para a situação com que ora nos deparamos aqui no DF.

Mas o domínio médico dos serviços de saúde também faz a sua parte. A formação liberal dos doutores, calcada num conceito de “autonomia” profissional que eles estimam e apregoam como valor absoluto, se funda em uma verdadeira ojeriza a coisas simples como “controle de custos”, por não considerarem questões, digamos, aritméticas como pertinentes ao que fazem ou deixam de fazer. Para eles os orçamentos são feitos de látex e constitui verdadeira ofensa à autoestima profissional trocar o que é “ótimo” pelo simplesmente “bom”. E quanto mais tecnologia, melhor, independente de quanto isso custe ou de algum efeito real e comprovado dela. E os agentes da corrupção, seja os internos ou os externos à máquina pública, sabem muito bem disso e agem com desenvoltura dentro de tal cenário.

É claro que no meio de tais distorções existiria também uma regra de ouro, irrecorrível: vidas de pessoas não têm preço e assim qualquer raciocínio que almeje a economia de recursos pode ser acusado de, no mínimo, ser questionável do ponto de vista ético. Mas a verdade é que todo paciente tem seu preço, embora tal frase nos assuste um pouco. Deriva do desconhecimento disso a crença de que o sistema de saúde tem a obrigação de oferecer “tudo para todos”. Difícil, se não impossível, realizar algo assim e a questão fica ainda mais complicada diante da escalada das intervenções do Poder Judiciário na saúde – a chamada judicialização – com juízes facultando aos pacientes uma aproximação com o mundo irreal do “tudo para todos”. O resultado acaba sendo um “muito para poucos”, esbarrando em recursos limitados, longe de qualquer resposta a uma questão simples: “quanto podemos pagar por isso”. Na pior das hipóteses – e a mais frequente – o verdadeiro resultado é o estouro dos orçamentos, além da intrusão de agentes promotores de gastos, muitas vezes agindo de forma ilícita, com apoios dentro dos próprios serviços de saúde, de gente que “dorme com o inimigo”, por assim dizer.

Não nos esqueçamos, também, da cultura de frouxidão que nos domina, associada à ideia do “jeitinho”. Na saúde, a tradição de benemerência dos profissionais e das instituições de saúde, que remonta à época medieval, contribui muitas vezes para que os desonestos passem por inocentes e, dependendo da ocasião, do Promotor que acuse e do Juiz que julgue, os inocentes sejam condenados. É como eu ouvi certa vez um Presidente de Comissão de Licitação no Ministério da Saúde dizer enfaticamente a respeito de um dos membros da mesma, que por acaso também assinava uma proposta de prestação de serviços que ali estrava sendo apreciada: “eu duvido que o Doutor Fulano seja capaz de ter más intenções nisso”. Depois, numa daquelas operações de nome mitológico e maneiro, conduzida pela Polícia Federal, o referido burocrata foi agraciado com um estágio na Papuda, do qual só escapou porque morreu antes.

Sobre os órgãos de controle, seja do Legislativo ou do Judiciário, menos mal que existam, mas agem muitas vezes com desconhecimento da realidade no campo da saúde, tratando os processos intrínsecos respectivos dentro do mesmo quadro normativo e processual que utilizam, por exemplo, para fiscalizar a construção de uma estrada. Essa turma do controlismo (ou controlose, se quiserem) age em favor de um desequilíbrio entre a necessidade de gestão e a de controle, instaurando um verdadeiro “apagão decisório”, ao infundir nos gestores uma atmosfera de terror, enquanto a corrupção corre solta, quando não apoiada por aqueles. Relembrem de Narita.

O fato é que vivemos em uma verdadeira cultura do “é assim que funciona” e tanto o homem da rua como o burocrata, o jurista ou o político instalado em gabinetes refrigerados assumem isso como regra de outro.

O que fazer? Pelo visto, nada será produzido de útil mediante ações isoladas e dispersas e o que é pior, num ambiente cultural omisso e negativo em relação à corrupção. Mas é preciso, sem dúvida, compreender o mal partir de suas raízes principais. E eu arriscaria a fazer uma análise a respeito disso, abordando três das vertentes do problema: (a) as leis; (b) os agentes; (c) a sociedade.

Lei é algo que já temos de sobra, a meu ver. Mais do que isso, parece existir verdadeira fascinação do brasileiro pelo aparato legal, como já apontou o antropólogo Roberto da Matta. Mas longe de ser uma espécie de legalismo, contraditoriamente é porta aberta para se burlar e escapar incólume aos rigores da lei. Há leis para tudo e leis que se superpõem a outras leis de mesmo objetivo. Há leis que proíbem de matar, mas se a vítima pertence a determinadas categorias sociais ou antropológicas outras leis são criadas, forjando um ambiente no qual o que abunda… resulta em impunidade. Em relação a roubar é a mesma coisa. Acho mesmo que tanta energia legalista deveria ser canalizada para melhorar as leis existentes e mesmo substituí-as, não apenas para fazê-las serem cumpridas, sendo que seu cumprimento muitas vezes é objeto de ficção. As prisões estão cheias de gente ali recolhida para cumprir o que mandam as leis, sem que se indague qual a contribuição disso para a recuperação desses indivíduos ou sobre os possíveis benefícios que isso traz à sociedade. Não é por aqui que devemos começar a faxina. Mais uma vez recorro ao case Narita, referido no preâmbulo deste post.

Quanto aos agentes, o caso recente do meritíssimo desembargador paulista que rasgou sua multa por não usar máscara e além do mais maltratou o fiscal que a lhe impusera, me traz a imagem necessária e suficiente. A Justiça brasileira é useira e vezeira em tais artimanhas – sabem aquela história de só mandar para a cadeia os cidadãos dos “três P”? Os mensaleiros de várias espécies, os doleiros, os lavajatistas, os aécios, os alkimins sabem muito bem se defender e têm como pagar advogados especialistas em chicanas diversas. Já o cidadão que subtrai um litro de leite um simples xampu num supermercado, a mãe que trafega uns parcos envelopes de maconha para garantir a comida aos filhos, estes que se cuidem, pois correm o risco de ficar longos anos numa masmorra. Justiça, sim, mas para todos. Que ninguém se locuplete, mas que ninguém fique impune também; que os maus tenham medo e que os podem ser recuperados sejam poupados. Essas deveriam ser as regras de uma boa justiça.

Sobre o povo, a sociedade, o “terceiro estado”. O que dizer deles? São os menos culpados sem dúvida, mas na ignorância e na falta de informação que lhes é historicamente peculiar, além da carência de bons exemplos, tendem a não valorizar a verdadeira probidade de homens públicos, bem como fazer dos piores deles seus ídolos, consagrando-os nas urnas. E isso vale não só para os ímprobos de variadas naturezas, mas para os violentos, os antidemocráticos, os preconceituosos, os inoperantes etc. A realidade está aí para não desmentir.

Dentro de tal quadro sombrio, trago aqui algumas diretrizes de busca de transparência nos órgãos de governo, tais como os defende a organização não governamental “Transparência Brasil”, que talvez possam oferecer alguma contribuição para o que devemos, sem mais tardar, começar a fazer pelo nosso país.

Em primeiro lugar, estabelecer colaborações parcerias e intercâmbios com organizações não governamentais, universidades, poder público e outras entidades, facilitando a atuação dos mesmos e da sociedade civil, em âmbito nacional e internacional, incentivando ao mesmo tempo a criação, a organização e a atuação de entidades e instâncias voltadas para a promoção do combate à corrupção e reformas institucionais e conscientização pública. Além disso, ao contrário de qualquer postura anticientífica e de negação do conhecimento, tão apreciada pelos governantes atuais, é preciso também estimular e desenvolver estudos e trabalhos com a finalidade de incentivar a implantação de políticas públicas e atitudes privadas, incriminando com rigor o uso indevido do Poder Público para benefício privado, de forma a não só coletar e organizar, como também dar publicidade a dados sobre a corrupção nas diversas esferas de governo e no setor privado, visando a defesa do interesse público.

Tudo isso sem esquecer: tolerância zero e totalmente democrática com a impunidade!

Não fazer nada, dizer “e daí”, “não posso fazer milagres” ou coisas assim, também é possível. Mas enquanto nos omitirmos, perfeitamente conciliados com nossos interesses individuais e imediatistas, cada vez mais a força da corrupção estrutural irá prevalecer e trazer cada vez maiores prejuízos aos interesses da sociedade. E só nos restará chorar pelo leite derramado.

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Momento cultural…

Dante Alighieri incluiu a penalização dos corruptos no Oitavo Círculo do Inferno, o chamado Malebolge, que em italiano significa fraude. Trata-se de um ambiente todo construído em pedra, com cor ferruginosa, assim como a muralha que o rodeia, estando dividido em dez fossos (ou Bolgias), ligados entre si por pontes, conforme descrito nos cantos XVIII a XXX.

Assim, na Bolgia V, os corruptos estão submergidos em um lago de espesso piche fervente; os que tentam ficar com a cabeça acima do caldo são torturados por demônios, que os dilaceram. Em vida, os corruptos tiraram proveito da confiança que a sociedade depositava neles; no inferno estão submersos em caldos, escondidos, pois suas negociações eram feitas às escondidas. Os demônios e o significado literal dos nomes que habitam o quinto fosso são: Malacoda (malvada cauda); Calcabrina (pisa neve); Alichino (asa baixa); Cagnazzo (focinho de cão); Barbariccia (barba crespa); Libicocco (libiano); Draghignazzo (dragão feio); Ciriatto (porcalhão); Farfarello (duende); Rubicante (vermelhaço) e Scarmiglione (cabelo bagunçado); Graffiacane (esfolador de cães). Em tal fosso encontra-se um Ciampolo, que é pego pelos demônios fora do piche, e os engana, dizendo que ia entregar outros companheiros que de vez em quando também ficavam fora do caldo, mas ainda consegue fugir dos demônios e mergulhar novamente no piche, o que provoca uma briga entre os demônios.

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Referências

Leia o restante deste post no link abaixo.

Uma resposta para “”

  1. Muito, muito bom, Flávio: análise detalhada e suficientemente profunda (mesmo em se tratando de paper a divulgar pela internet). Contém preciosidades. Uma delas é o “é assim que funciona”. Acostumei-me a isso nos tempos de Ministério da Saúde, quando conheci a “máquina” composta por inocentes funcionários públicos que nada tinham a ver com o objetivo maior, de fazer saúde para a população. Com o, andar da carruagem, os micro grupos foram tomando conta e ai de quem os desafiasse: era fracasso nas suas ideias e missões, na certa. A maneira mais prática e eficiente, que cheguei a usar, era ter ao seu lado um chefe administrativo que conhecesse e soubesse andar pelos corredores do Ministério. Então, nada lhe faltaria, nem as bucólicas resmas de papel, canetinhas e até os a aparelhos de xerox e os computadores (há lá um andar inteiro para supervisioná-los). Outra é o que referes sobre os especialistas, os mais “produtivos” são os da área de orçamento. Havia um, que depois até se tornou prefeito de uma grande cidade mineira, que sabia tudo e entrava na sala do ministro na hora em que bem entendia. Enriqueceu, certamente. Grandes corporações internacionais não são melhores, embora não tão rasteiras como as tupiniquins. Basta ver a tomada da OPAS pelos cubanos e o triunfo do Tedros para o posto de diretor geral da OMS. Este, quando a competência realmente se tornou necessária, como na atual crise da Covid-19, lascou-se. É, mas a Fundação SESP funcionava, diriam os que viveram aquela experiência. Será? De fato era exemplar. Dirigida com mão de ferro com regras definidas de cima para baixo, um modelo de centralização. Sim, funcionava porque era pequena, mas serviu de exemplo do que não deveria ser feito no Brasil para os que aprovaram o SUS, entre eles nós todos. Com esse comentário, por favor não o interprete mal. Não imaginaria dizer que o oposto, o modelo “administrativo” eficaz da FSESP funcionaria fora de uma ditadura militar. Este fracassaria por outros motivos. Enfim, sempre voltamos à velha tecla tão batida pelo Solon e antes pelo Dadá maravilha: somos ótimos na problemática, mas ruins na solucionática, mesmo porque esta não está em nossas mãos. Um último comentário sobre o que abordas em relação ao componente mais débil da equação: a população, os consumidores. Qual a esperança de que se comportem em defesa dos seus reais interesses? Por quê elegeram Bolsonaro (e se poderia lembrar: por quê elegeram a dona Dilma, que tanto não fez até conseguir entregar o poder, pouco depois de ser saída, à turma do Bolso)? Será a “democracia representativa” a culpada por nos forçar a eleger e reeleger (como se nossa sina fosse carregar a pedra de Sísifo pelo resto dos tempos), administradores e representantes encarregados de nos assaltarem? Há uns dois anos comprei um livro, ainda em oferta por ai, intitulado “Contra as Eleições”. Mas achei muito ruim. Também não resolve o problema. A alternativa é a “democracia direta” que, em nossas complexas sociedades, igualmente se tornou capenga.

    Abraços, Vitor

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