É preciso criminalizar o negacionismo

Vivemos em tempos tão estranhos… Umberto Eco de certa forma já os anteviu, quando disse que a internet deu voz e notoriedade a uma multidão de imbecis, até então calados e recolhidos à sua platitude. Esta pandemia, porém, ampliou o conceito, liberando as manifestações de uma manada de insensatos insipientes e conferindo crédito às suas eventuais eructações. O atual Presidente da República e seu séquito não me deixam mentir. Ouvi há algum tempo, aliás, um dos generais que dá expediente no Palácio do Planalto, dizer que não via nenhum problema em se ensinar o criacionismo nas escolas, eis que isso era apenas uma das várias versões existentes sobre a origem do homem. Para a “teoria” da terra plana certamente seria a mesma coisa. Assim, na visão desse grupo, o fenômeno da “gripezinha”, o uso da cloroquina, o endosso a aglomerações, a origem “comunista” do vírus, a decisão de salvar primeiro a economia, a ocupação militar do Ministério da Saúde, além de outras “verdades” estabelecidas por saturação nas redes sociais e na propaganda oficial, seriam versões ou opiniões, porém validadas implicitamente pela ausência de provas contrárias. Entenda-se por “provas” aquilo que já estaria incorporado ao discurso oficial; fora disso, é puro mimimi. E assim, la nave va. Mas agora, mais do que nunca, é preciso ouvir o que gente realmente séria está pensando e falando, seja sobre a pandemia, a economia, a democracia, além de outros temas. E assim trago aqui uma economista que tem respeito internacional, Monica De Bolle. Ela é brasileira, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Johns Hopkins University, tudo isso in USA. Para os bolsonaristas, que consideram como “intelectual” e “filósofo” um astrólogo boquirroto e dinheirista refugiado nos EUA, Monica não passaria de mais uma comunista impatriótica. Mas deixa pra lá.

Em texto recente, publicado em O Estado de São Paulo, e que ora comento (ver link ao final), Monica recorre a dois prestigiados economistas David Cutler e Larry Summers, que em artigo recente para o o também prestigiado Journal of the American Medical Association, apresentaram e discutiram os custos do negacionismo relativo à pandemia de coronavirus nos EUA, cujo governo, copiado simiesca e descaradamente por aqui, acha que tudo não passa de uma armação de inimigos. Assim, partindo de evidências (palavra que as hordas de lá e daqui não sabem bem o que significa), estimam que as perdas norte-americanas podem chegar a US$ 16 trilhões até outubro de 2021, o que equivaleria a 90% do PIB deles. Isso, numa visão até certo ponto otimista, supondo que a situação seja controlada em meados de 2021. Os referidos autores consideram em suas analises não só os dados econômicos, mas também os pedidos de seguro-desemprego, o custo das vidas perdidas, diretamente ou indiretamente por outras doenças.

Monica pondera que não há contas semelhantes feitas para o Brasil, mas busca estimativas relativas ao montante de recursos que o SUS e outras política sociais deveriam obter, para dar conta minimamente do recado. A situação se agrava diante do envelhecimento da população brasileira, com crescente carga de doenças daí decorrentes, tais como, diabetes, câncer, hipertensão, cardiopatias, além da obesidade, entre outras. Assim, em nosso país, supondo que o número de casos graves ou severos é cerca de 7 vezes maior do que o de óbitos e que cerca de 30% dos que sobrevivem aos quadros mais preocupantes de covid-19 apresentam alguma sequela séria, poderiam surgir até cerca de 350 mil pessoas em tal situação até o final de 2021. Isso corresponderia a mais gente a depender do SUS, em curto período. Não é uma cifra exata, admite ela, é até otimista demais, mas certamente dá uma ideia da ordem de magnitude dos problemas que o Brasil enfrentará no horizonte de um ano apenas. 

Lembra ainda a autora, que mesmo com limitações técnicas e mesmo éticas, é possível falar de um “valor estatístico de vidas”, ou seja, o montante teórico que as pessoas estariam dispostas a pagar para reduzir seu risco de vida. Isso poderia chegar a US$ 7 milhões de dólares para cada “vida estatística”. Assim, com os atuais 150 mil óbitos no Brasil, ainda em conjectura otimista, nos próximos doze meses caso se registre a metade desses, chegaremos a 225 mil mortes. O custo econômico disso seria, naturalmente, catastrófico: nada menos do R$ 9 bilhões, ou até R$ 12 bilhões, dependendo de uma estimativa um pouco menos otimista. Isso sem contabilizar diversos outros custos inerentes. 

Monica De Bolle conclui: O negacionismo pandêmico tem um custo para lá de elevado. Se o governo e parte da população brasileira não conseguem se sensibilizar com a absurda perda de vidas, em boa parte evitável com a adoção dos protocolos de segurança e de mudanças no padrão de comportamento, quem sabe se sensibilizem com as perdas econômicas que haverão de perdurar por muitos anos. Não é improvável que ultrapassemos 90% do PIB do Brasil nesse quesito.

E eu, modestamente, acrescento: precisamos ir além de apenas levantar dados e lamentar nossa má sorte de termos nos transformado em um país em vias de deterioração com a infelicidade de ter um governo tão incapaz e insensível face a um problema de tal magnitude. Um dia isso vai mudar, é claro. Mas desde já é preciso pensar, além da reconstrução da nação propriamente dita, que será onerosa e penosa para todos, que possamos também responsabilizar, incriminar, julgar e principalmente condenar aqueles que nos atiraram em tal fosso.

E, da mesma forma, responsabilizar os que elegeram e acreditaram em tais irresponsáveis, mesmo que apenas no plano de nossas relações pessoais com estes. Para mim, o bolsonarismo é muito mais do que uma questão ideológica – é uma falha imperativa de caráter. Para os que cometeram tal despautério, o arrependimento é pouco. Penso que se deve responsabilizá-los simbolicamente em todas as instâncias da vida social, já que não podemos leva-los formalmente aos tribunais apenas pela sua opção eleitoral. Não cabe anistia ou jeitinho neste caso.

Afinal, agir com negação irresponsável e negligência operacional frente a tantas vidas perdidas, que não será possível repor; tantos prejuízos que afetarão o país por décadas: se isso não é crime, da variedade hedionda, inafiançável, contra a humanidade, o que mais o seria? Isso não pode ser esquecido ou relevado, à triste moda tropical. Pelo contrário, é o caso de começarmos a pensar em um tribunal, ao modo de Nuremberg. não para conceder alguma anistia capenga e caolha, como já foi feito antes por aqui, mas para levar os responsáveis a uma condenação verdadeiramente exemplar. Não podemos, definitivamente, deixar por menos!

O bolsonarismo é de fato deletério para o pais. Não é por acaso que nas cidades onde o elemento teve mais votos os indicadores da pandemia são piores, em termos de mortes e número de casos. Por má fé, mas principalmente por ignorância, há milhões que não veem isso. Cabe a quem tem consciência política e social, como eu, você e muitos outros brasileiros, agirmos na hora certa; que pode ser agora, aliás.

É preciso começar a pensar nisso desde já. A praga bolsonegacionista um dia vai passar.

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Monica de Bolle, para quem não conhece:

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Quer saber mais?

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,o-custo-do-negacionismo,70003474150

Uma resposta para “”

  1. Você disse:- “E la nave va” e eu complemento, de vento de proa em direção à beirada da terra plana. Abraço lusitano.

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