Saúde no Brasil: a Grande Marcha para trás…

O bolsonarismo como fenômeno político existe de fato, sendo inúmeras as análises disponíveis sobre o mesmo, seja de cientistas políticos, sociólogos ou jornalistas, que identificam e tipificam tal fenômeno. Por alguma razão o sufixo “ismo” é também aplicado a alguns governantes (trumpismo, lulismo, janismo, getulismo, bolsonarismo, por exemplo), mas não a outros. Com todos os defeitos e qualidades que possam ter, Obama, Dilma, FCH, Temer, entre outros, para ficar em exemplos recentes, não fizeram jus a tal epíteto. Mas não é bem isso que me ocupa no momento. A análise que pretendo fazer aqui, condizente com as minhas luzes e com um pé na realidade atual do país, é de caracterizar um fenômeno que me parece bastante notório hoje, qual seja o surgimento de um já influente bolsonarismo em saúde, que a meu ver reúne condições para ser delineado, até com certo detalhe. E ele se instala e se avoluma justamente no decorrer de uma paralisia sem precedentes, para não dizer atraso ou mesmo retrocesso, nas políticas de saúde do país, enquanto uma pandemia que já matou 160 mil brasileiros, ainda não perdeu seu fôlego assassino.

Começo por uma marcação necessária: como podemos definir o bolsonarismo? Já existem muitas aproximações ao tema, mas para a presente reflexão utilizo a do jornalista alemão  Philipp Lichterbeck, que escreve no portal Deutsch Welle-DW (ver link ao final) e me parece bem apropriada. Ele chama atenção para os “cinco pilares” do fenômeno, que na verdade dão sustentação a todo um pensamento da extrema direita no Brasil. São eles: (1) militarização; (2) atendimento a uma suposta vontade do povo; (3) messianismo; (4) hostilidade à ciência e (5) anticomunismo. Alguns deles são especificamente brasileiros, outros pertencem ao conjunto de ideias da nova direita internacional. Lichterbeck alerta que é fácil considerar simplesmente “ridículos” o presidente e seus seguidores, já que eles vivem dando oportunidade para isso, por exemplo, quando o líder ostenta, como um cálice sagrado, um pacote de hidroxocloroquina perante sua plateia fanática, em frente ao Palácio da Alvorada, ou quando oferece o medicamento a uma ema. Mas, segundo ele, há certa metodologia por trás dessa loucura, e reduzir o caso a mero histrionismo de um sujeito “sem noção” seria um erro fatal. O caso presente, para ele, é semelhante ao que acontece em alguns países da Europa e nos Estados Unidos e não representa algo surgido do nada, mas provém de toda uma história, com lógica interna e objetivos explícitos.

Da mesma forma, vamos passar uma olhadela no conceito de fascismo, aplicável ao bolsonarismo, sem dúvida, nos termos colocados no prestigiado Dicionário de Política de Norberto Bobbio, conforme análise de C. M. Dadico (ver link). Ali se vê que o fascismo se caracteriza por práticas autoritárias, derivadas de certas visões políticas monolíticas, associadas a um partido único de massas, organizado hierarquicamente, personificado ideologicamente na figura de um líder, regime do qual decorrem aniquilamento violento de adversários; exaltação nacionalista; uso intensivo da propaganda; instauração de uma lógica totalitária, com unificação do controle sobre a sociedade. A lógica fascista, além do mais, não tem como base argumentos racionais, mas sim o recurso à intimidação e a incitação à violência, além da desqualificação e do desprezo aos que não se incluam em um modelo de “cidadão de bem”. Trata-se, como se vê, de um raciocínio binário e empobrecido, que divide o mundo entre amigos e inimigos, “nós” e “eles”, trazendo um discurso de ódio como veículo e o medo como matéria-prima.

Vamos então ao bolsonarismo sanitário.

  1. O primeiro aspecto a ser lembrado não poderia deixar de ser o negacionismo científico, propagado pelo mandatário e seu cortejo de forma exacerbada ao longo da pandemia de Covid-19. Onde há bolsonaristas, como é fácil constatar, tem alguém negando alguma verdade à qual a ciência já conferiu legitimidade, seja a respeito do uso da cloroquina e outros medicamentos, dos efeitos da vacinação, da potencialidade do contágio, das medidas de isolamento ou da gravidade dos sintomas da doença. Tudo isso parece derivar diretamente de algo que também se faz no EUA, graças ao trumpismo, mas aprofundar tal questão seria insistir no dilema do ovo e da galinha, para lembrar que isso, na verdade, faz parte do universo autoritário populista professado lá e cá.  
  2. Desvalorização de conquistas e realizações anteriores ou de origem em terceiros, mediante filtro ideológico. Ideologia, aliás, é só a dos outros, pensam eles. Isso seria um derivado do quesito acima, mas aqui apresenta uma feição mais política do que científica. O ataque ao Programa Mais Médicos é um bom exemplo disso, mas de certa forma a rejeição à vacina chinesa e ao trabalho do Instituto Butantã, associado ao Governo Doria, a acusação de “balbúrdia ” nas universidades, também fazem parte de tal quadro.
  3. Estranhamento em relação a tudo que não é costumeiro. Na perversa lógica bolsonarista tudo que é novo ou venha de realidade estranha à ideologia professada pelos militantes é rejeitado ou posto em desconfiança. Militantes (de qualquer coloração, aliás), são aqueles sujeitos que recortam o mundo em janelinhas e passam a enxergar tudo através delas. Isso não acontece apenas em relação às situações citadas acima, de fundo científico, mas também em relação a costumes que começam a se difundir e serem aceitos pelo mundo a fora, inclusive juridicamente, como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, das considerações relativas a gênero, do conceito ampliado de família, do aborto legal, da não-naturalização do estupro, da obrigatoriedade de proteção individual, do valor das vacinas e das medidas preventivas em saúde, além de outras situações.
  4. Obediência e fidelidade irrestritas ao líder condutor. Aqui há um encontro forte e definitivo com a ideologia que orienta o fascismo. Obediência é tudo e mesmo a remota possibilidade e de que ela seja negada ou contrariada já custou a cabeça de dois Ministros da Saúde em plena vigência da pandemia, além da compulsória fidelidade de todo o conjunto de auxiliares do Presidente. Isso ficou traduzido de forma espantosa pela proverbial frase recente de Pazuello, o comandante-de-guarnição na saúde: aqui uns mandam, outros obedecem. Mesmo que seja contra as regras da ciência e do bom senso. E sempre com o aplauso da claque que ordinariamente frequenta a beirada da cerca do Palácio da Alvorada.
  5. Meritocracia e aparelhamento institucional. Isso tem como diretriz irrevogável a seguinte tese: quem não concorda comigo é meu inimigo. Valeu para auxiliares que acabaram por perder prestígio, como Moro, Mandetta e aquele outro Ministro da Saúde cujo nome ninguém mais se lembra e continua valendo para pessoas ou grupos situados mesmo fora da esfera do governo e não sintonizados com ele, tais como, comunidade científica, OAB, estudantes, manifestantes contrários em geral. Já os que estão de acordo com o governo passam por um processo sui-generis   de seleção “meritocrática”, no qual o que conta é a fidelidade e a não-contestação de ordens que vindas de cima, não a competência técnica e o conhecimento. Isso se dá não só nas nomeações de ministros, mas também de cargos de outras esferas, nos quais o governante é responsável legal por indicações, como Ministério Público, AGU e STF. Organismos externos ao governo, mas a ele sintonizados, como são os casos notórios da FIESP, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Medica Brasileira, entre outros, procuram obedientemente fazer a sua parte, mesmo não sendo obrigados a isso. É isto que denomino aparelhamento das instituições, ainda não praticado tão intensivamente no Brasil, mesmo nos anos da ditadura. 
  6. Apologia das redes sociais. No atual governo, vale o que está registrado no Facebook, no Instagram ou no WhatsApp, quando não nas lives presidenciais semanais, não nos textos sérios e referendados cientificamente ou na mídia independente. Assim ocorre, por exemplo, com a indicação de medicamentos para o Covid, a validade de vacinas e outros procedimentos médicos e até com a escolha dos inimigos da vez em relação aos interesses nacionais. Trata-se de um quadro de extrema valorização e consequente tomada de posição em função de informações circulantes em redes sociais, inclusive em questões de interesse nacional evidente, como foi o caso recente da negativa em adquirir a vacina chinesa após um comentário dirigido a Bolsonaro por um ignaro membro de sua milícia digital.  
  7. Modelagem a partir de realidades externas. Não é só a Trump e aos EUA que se aplica o presente postulado. O olhar para fora do bolsonarismo é seletivamente atento, dentro de uma visão antolhada e enviesada, que insiste em propagar que ideologia é só a dos outros. Se a vacina é chinesa, ela não presta, mas a cloroquina que os Estado Unidos usam só pode ser boa para nós. A tecnologia israelense de transformar água do mar em potável é o que há de melhor. É claro que ignoram o que a realidade nega, como foi o caso da rejeição posterior da cloroquina naquele país, ou que as demais vacinas em teste também possuem componentes chineses, além de que a ciência brasileira instalada no Nordeste já dominava a tal tecnologia da água salgada.  O liberalismo econômico à moda de Chicago e Pinochet, professado por Paulo Guedes, representa mais um bom exemplo disso. As redes sociais do bolsonarismo são extremosamente dedicadas a louvar as virtudes da medicina praticada nos EUA, ao mesmo tempo que negam, com veemência, a qualidade dos médicos formados em Cuba, ignorando que os indicadores de saúde neste país são superiores àqueles vigentes na potência mais ao Norte. 
  8. Bonapartismo. Isso representa uma forma de ideologia política inspirada na maneira como Napoleão Bonaparte governou. É o mesmo que Cesarismo, numa referência ao todo-poderoso imperador romano. Suas características principais são: culto à personalidade; esvaziamento do Legislativo e do Judiciário perante o Executivo; exercício desmedido de um suposto carisma pelo governante; liderança autoritária; antiliberalismo político. Precisa dizer mais alguma coisa? A questão se torna especialmente intensa no Brasil dada a aceitação acrítico-mítica com que o grupo bolsonarista encara seu líder, inclusive nas questões de saúde, que faz lembrar o título de Duce (condutor) que Mussolini atribuía a si próprio. Complementam o quadro a pletora do governo com agentes militares, inclusive na saúde, enquanto a manada aplaude e pede mais. Afinal de contas já se reivindicou até uma intervenção militar no Brasil. Não é que ela chegou?

Como escreveu a jornalista Eliane Brum, sempre lucida e atenta à realidade contemporânea do país, o bolsonarismo, assim como o trumpismo (que ainda respira, malgrado nosso), tem como uma de suas principais características o apelo a uma pós-verdade (ou auto verdade, segundo ela), o que pode ser entendido como a hipervalorização de uma opinião pessoal e autoproclamada, a partir de alguém que se sente autorizado a dizer “tudo” e que tem o apoio das redes sociais de forma imediata e totalmente acrítica. E tem mais: o valor dessa verdade não está na sua ligação com os fatos, Assim se percebem os horrores em matéria de saúde que estamos assistindo se propagarem pelas redes de acólitos bolsonaristas (a tentação de usar de novo a palavra “manada” aqui é grande…), com total ausência de ligação entre a realidade dos fatos e as ideações de lideranças e militantes. Já vimos isso antes em Orwell e, na vida real, em Hitler, Goebbels, Goering, Trump e Jair Messias, entre outros.

Pois é, no campo da saúde já tivemos no Brasil pensadores e intelectuais do campo da saúde como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Noel Nutels, Mario Magalhães da Silveira, Nise da Silveira, Josué de Castro, Carlos Gentile de Mello, Sérgio Arouca, Davi Capistrano, Adib Jatene, além de muitos outros. Será que este novo “sistema de pensamento” que surge na órbita do bolsonarismo nos reduzirá apenas às emanações mal digeridas emanadas da ação dos “intelectuais orgânicos” de tal movimento?  No presente cenário, em que um astrólogo é tratado como “filósofo”, isso tem foros de realidade e representa um enorme risco .

O tal sujeito disse certa vez, num daqueles arroubos de ignorância, grosseria e incontinência que lhe são rotineiros, que no seu governo o Brasil voltaria aos tempos de 40 anos atrás, quando mandavam os militares. Na saúde ele já superou tal meta.

É a marcha a ré engatada, com o acelerador pisado até o assoalho do veículo – com a luz de ré apagada…

E por aí vamos…

***

Referências:

6 respostas para “Saúde no Brasil: a Grande Marcha para trás…”

  1. Flávio,

    Como vai, tudo bem?
    A propósito de seus comentários sobre a ‘marcha para trás’, apresento-lhe dois comentários:
    a) Senti falta de uma síntese após os oito ‘indícios’ de ‘marcha atrás’;
    b) Não diria que se trata de uma ‘marcha para trás’, pois estritamente falando ao marchar para trás supostamente encontraríamos coisas de nosso passado (na saúde, lógico). Sou tendente a crer que se trata de uma marcha ensandecida que nos levará a um ‘brejo’, a um ‘terreno pantanoso’, desconhecido, num futuro próximo ou imediato, mas não a reviver algo que tivemos a oportunidade de ter experimentado no passado. É que nesses tempos o futuro é negro ou nebuloso ou arriscado e até mesmo insano.
    Um abraço,
    Mauro Márcio

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