E não é que o General nos deixou alguns ensinamentos…

Em seu grotesco depoimento à CPI da Covid, o General Pazuello pelo menos nos ofereceu uma lição inesquecível, ao demonstrar de maneira bem clara e didática, por sinal, tudo aquilo que um homem público, um ministro que faça jus a tal cargo, NÃO deve e nem pode ser: mentiroso, ignorante, pusilânime, dependente, obtuso, antolhado, limitado, indiferente. E como se não bastasse, omisso e arrogante. De quebra, nos ofereceu a possibilidade de entender que tais atributos, ou seus opostos, nos permitiriam uma completa definição sobre o que deveria constituir o currículo de um bom Ministro da Saúde, seja do ponto de vista técnico ou político. Não é supérfluo lembrar, aliás, que já tivemos alguns exemplos de gente digna na gestão da saúde do país, na nossa história recente. De saída, lembro-me de José Serra e Agenor Alvares, nos governos FHC e Lula, respectivamente. E nenhum dos dois era médico, diga-se de passagem, o que indica que tal profissão não é um requisito fundamental para o cargo. Pode até ser militar, sem problema, mas tem que ser competente. Seria bem fácil resgatar da memória ou de algum dicionário os antônimos de todos aqueles adjetivos citados e que constituem o perfil do general de três estrelas, para definir, ainda que de maneira genérica, o tal perfil desejável. Mas vamos fazer uma síntese, por partes.

Quando falo de atributos para o cargo de Ministro, podemos incluir nisso os demais cargos na cadeia de comando do SUS, ou seja, secretários estaduais e municipais de saúde, dirigentes de autarquias e fundações, diretores de hospital e de outras instâncias de prestação de serviços de saúde.  

Vamos ver então alguns atributos fundamentais.

Conhecimento. Ser médico, como já dito, não é essencial. Mas é preciso dispor de boa bagagem de conhecimentos, seja aqueles derivados das ciências sociais, da economia, do direito ou da história, entre outros. É claro que conhecer o campo da saúde também tem importância, não ao ponto de saber receitar ou diagnosticar, mas o bastante para agir com bom senso e saber distinguir o que é conhecimento autêntico daquilo que é crendice, novidade não confirmada ou mera suposição de alguns. Ou de procurar ouvir, na hora certa, quem realmente conhece a questão em foco. Conhecer o SUS, ou seja, sua história, sua filosofia e sua legislação é essencial. São coisas que a própria “escola da vida” deveria ensinar, mas que muitas vezes não alcançam aqueles que vivem enclausurados em seus preconceitos, limitações ou nas muralhas de algum Forte Apache.  

Empatia. Esta seria a capacidade de alguém compreender, baseado em emoções, algo que lhe vem de fora , seja de uma pessoa ou objeto. Sua acepção mais comum seria simplesmente a capacidade de se identificar com alguém, de sentir o que este sente, de querer o que quer, de apreender do modo como apreende. O exercício pleno de tal atributo seria uma algo desejável em qualquer pessoa que viva em sociedade, mas particularmente em uma autoridade ou pessoa na posição de gestor de saúde, sendo aspecto sem dúvida essencial em quem exerce uma função em que a vida de pessoas esteja em jogo. Só para dar um outro exemplo positivo, quando houve o incêndio da boate Kiss, na manhã mesma do rescaldo, o então Ministro da Saúde, Alexandre Padilha, esteve presente no cenário da tragédia, em Santa Maria-RS. Difícil imaginar alguma autoridade do atual governo fazendo algo semelhante.

Inteligência. Em definição de dicionário, seria a capacidade humana de apreender e organizar os dados relativos a uma dada situação, em circunstâncias que vão além do instinto, da aprendizagem e do hábito; em outras palavras, capacidade de resolver problemas e empenhar-se em processos de pensamento abstrato. Isso é atributo fundamental para qualquer pessoa que tenha sob sua responsabilidade pessoas ou mesmo coisas inanimadas. Mas há um conceito associado que deve ser focalizado aqui, o de inteligência emocional, traduzida pela capacidade de identificar e lidar com emoções e sentimentos, seja de si próprio ou de terceiros. Associados a tal atributo estão o reconhecimento das próprias emoções; o controle e o gerenciamento dessas emoções; a potencialidade da automotivação, da empatia e do relacionamento interpessoal. Não precisa dizer mais nada, não é? Gente obtusa e incapaz de ter tal sensibilidade não deveria jamais ocupar cargos de gestão na área da saúde.

 Transversalidade. Dou este nome à capacidade de enxergar a realidade de forma abrangente, além de barreiras ideológicas, isenta de preconceitos, com base científica, incorporando em sua ação os conhecimentos gerados fora de seu campo habitual, seja através da ciência ou mesmo da cultura coletiva, com reconhecimento e atenção às mudanças trazidas pelo tempo. A saúde é, por excelência, um campo multidimensional, e trabalhar com ela, seja em termos de fins, no plano individual ou coletivo, bem como na gestão de meios, requer uma visão de tal natureza. As decisões na saúde não podem jamais ser referendadas apenas por preferências pessoais ou considerações ideológicas, economicistas ou burocráticas – é preciso ir muito além disso. Ousadia, aqui, não é aquela de apenas cumprir o que dizem as normas, pois é preciso muitas vezes adequá-las ao momento presente. Esta lição a pandemia nos trouxe, e sua negação, a la Pazuello, nos foi profundamente desastrosa e assassina.

Cosmopolitismo. O filósofo Emmanuel Kant, a despeito de nunca ter saído de sua aldeia natal, produziu uma obra filosófica marcante na história da humanidade. Mas ele era Kant, não um indivíduo de inteligência comum. Na vida como ela é, as pessoas que atravessam o Rubicão e chegam a conhecer realidades diferentes daquela em que vivem, levam vantagens cognitivas sobre os demais. Pobres daqueles que nunca ultrapassaram as fronteiras de suas aldeias, sejam geográficas ou mentais. Não é preciso ser uma pessoa viajada, mas é preciso ser ávido pelo conhecimento da realidade, sobre os modos como outras pessoas ou culturas fazem as coisas acontecerem. Na saúde, a auto referência, a contemplação do umbigo, a resistência ideológica ao que vem de fora e também a carência de capacidade crítica, são erros perniciosos, de graves consequências.

Liderança. Um manda, outro (apenas) obedece. Antes fosse tão simples assim. A verdadeira liderança, coisa bem mais complexa, envolve além de conhecimentos e habilidades técnicas, uma boa dose daquela inteligência emocional. Sem esquecer da capacidade de se trabalhar em equipe, sem impor aos liderados apenas as expectativas pessoais, mas alinhando no processo os interesses da instituição à qual se pertence. Significa também atrair, inspirar e influenciar os comportamentos das pessoas, sempre em busca de resultados previstos na missão institucional. Enfim, algo completamente diferente da visão militar em que a obediência é tudo e jamais poderia ser contestada. Nas organizações civis em geral e particularmente na saúde, as inovações e as verdadeiras soluções podem surgir em qualquer camada da estrutura da organização, de forma independente da posição hierárquica. Liderança é uma coisa, comando é outra, como bem nos ensina Hannah Arendt

Autonomia. Os inúmeros e onerosos equívocos da recente gestão militar do Ministério da Saúde – e antes e depois dela também – demonstram que a autonomia de decisão é fundamental. Não é preciso arrolar tais erros aqui, pois a inquisição do general intendente na CPI as expôs de sobra. É claro que isso não pode antagonizar os ditames da missão organizacional (desde que estejam explícitos) ou, identicamente, de um plano de governo. Mas tais postulados devem se ater às regras gerais; para o dia a dia da gestão a autonomia do gestor é fundamental, e ele deve saber exercê-la com brio e independência real. Ordens descabidas não podem ser cumpridas e as próprias leis do país, inclusive sobre a função dos militares, garantem isso. E caberia sempre lembrar do julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann em Jerusalém: cumprir cegamente ordens “de cima” não isenta ninguém, ao fim e ao cabo, de receber condenação por seus atos.

Coragem. Tudo isso vale pouco se não houver coragem. Coisa que não se dá e nem se ganha. Antes, faz parte de uma bagagem simbólica e moral que uma pessoa carrega consigo desde o berço ou vai acumulando pela vida a fora. Não tem nada a ver, também, com algum enfrentamento cara a cara de desafios que coloquem em risco a vida de terceiros, como ir a shopping center ou participar de manifestações públicas sem máscara. Coragem diz respeito a: assumir compromissos que sejam legítimos e responsabilizar-se pelos atos que executa; pelas palavras e atitudes que manifesta; pelo cumprimento crítico das atribuições que recebe; pelo respeito aos diferentes; pelo respeito aos valores democráticos e pelo exercício do decoro que o cargo impõe. Nada mais do que isso.

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2 respostas para “E não é que o General nos deixou alguns ensinamentos…”

  1. O novo ministro, disfarçadamente, vai pelo mesmo caminho. Ou seja, e la nave va, de vento em popa, em direção à beirada gélida da da terra plana.

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