Há mais de 30 anos, um grupo de pais e mães com filhos internados no Hospital de Base do Distrito Federal se reuniu para ajudar outros pais e mães, com filhos portadores de câncer como os deles. Mas com a diferença de que estes outros provinham de lares marcados pela exclusão social. Mas ali essas famílias dividiam, democraticamente, experiências e esperança. Durante todo este tempo pais e mães desses meninos e meninas souberam mobilizar a sociedade civil e desenvolver esforços para erguer um magnífico centro especializado capaz de gerenciar de forma eficiente o tratamento integrado do paciente pediátrico.
Assim, desde 2009 um contrato de gestão foi celebrado com a Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF), através do Instituto do Câncer Infantil e Pediatria Especializada (Icipe), uma organização social sem fins lucrativos voltada para organizar, implantar e gerir as ações de saúde do recém criado Hospital da Criança de Brasília (HCB), o que se concretizou já em 2011, com crescimento e qualificação institucional progressivos desde então. E foi dentro da lógica de tal contrato de gestão que foi instituído no HCB um modelo assistencial baseado na gestão da clínica de forma ampliada e interdisciplinar, com envolvimento do paciente e de sua família no processo de cuidado e numa adequada articulação com a rede de saúde. Não é por acaso que desde sua inauguração ali foram realizados mais de 5 milhões de atendimentos, mais de 3 milhões de exames laboratoriais e quase 700 mil consultas, e além disso, mais de 251 mil diárias; 161 mil internações, com 91 mil em regime de hospital-dia); 61 mil sessões de quimioterapia; 35 mil transfusões; 10 mil cirurgias ambulatoriais; 25 mil ecocardiogramas; 72 mil raios X; 36 mil tomografias; 49 mil ultrassons. E por aí vai.
Tudo isso através de uma parceria exemplar entre uma entidade filantrópica e o órgão gestor do SUS no DF, sem politicagem, sem caixa dois, sem números camuflados, sem restrições ao atendimento de quaisquer pessoas. Dele afirmou o diretor geral da OMS, Dr. Tedros Ghebreyesus, que visitou o HCB em março de 2018: sem exagero este hospital poderia facilmente servir de modelo para outros países em qualquer lugar do mundo. Seria algo capaz de produzir, de fato e de direito, orgulho em qualquer lugar do Brasil e mesmo do mundo. Mas Brasília às vezes não parece fazer parte do mundo.
E há mais coisas a contar. Primeiro, o zelo quase religioso pela qualidade da assistência e pela segurança do paciente, em uma escala que raramente se vê mesmo em hospitais privados lucrativos. A busca da qualidade no atendimento levou o HCB a ser acreditado pelo organismo que cuida disso no Brasil, a ONA 3, também um marco de especial e destacado alcance. O grau de satisfação de pacientes e familiares, medido sistematicamente ano após ano tem sido sempre superior a 95%. O clima organizacional é demonstrado através de várias pesquisas periódicas, com índice de satisfação dos funcionários superior a 85%; mais de 95% afirmam ter orgulho de trabalhar na instituição.
Mas apesar de tudo isso, não foram poucas, ao longo dos anos passados, as ofensivas de juízes e promotores do DF, sempre inclinados a cumprir a lei em todos os seus detalhes, sem preocupações com a prestação de serviços e a utilidade pública real da iniciativa eventualmente sub judice, numa sanha punitiva que não foi capaz nem mesmo de respeitar as análises, por exemplo, do Tribunal de Contas da União, da Controladoria Geral do DF e do Tribunal de Contas do DF, que nunca encontraram qualquer tipo de irregularidade nas contas do Icipe, ou mesmo dos pareceres de especialistas nacionais em tal matéria. Se o Hospital da Criança de Brasília chegou até onde está hoje, não foi pela simpatia ou mesmo racionalidade de tais excelências togadas.
Agora, de novo, as forças da destruição de novo parecem se aproximar. O médico Renilson Rehen que ao longo dos últimos 10 anos, junto com uma equipe laboriosamente arregimentada e qualificada, dirigia do HCB, acaba de ser destituído de seu cargo sem qualquer justificativa, por parte da diretoria recém eleita do Icipe. O que era preconceito ideológico antes teria se transformado agora em disputa política interna rasteira? Enquanto os motivos de tal afastamento não forem devidamente esclarecidos pairarão dúvidas sobre sua legitimidade. Substituições de pessoas portadoras de mandatos são previsíveis e até fazem bem à gestão e à democracia nas instituições. Mas em time que está jogando bem, ainda mais se não existe um mandato temporal definido para a direção do HCB, os atuais eventos precisam ser esclarecidos, pois não se trata de vulgar mudança de direção ou de exercício de prerrogativas de um novo presidente, é bom que se diga. O que está em jogo é uma alteração feita no calor da comemoração dos 10 anos de uma parceria que só trouxe bons resultados até agora.
Precisamos saber o que está por trás disso. Mais do que os milhões de procedimentos e milhares de cirurgias e terapias de câncer em crianças ali realizadas, o que está em jogo é a demonstração cabal que se deu no HCB, ano após ano, de uma nova forma de gerir estabelecimentos públicos de saúde no Brasil. E isso não desperta apenas “controvérsias”, mas tende a provocar, sim, reações duras e iradas de pessoas ou grupos que tiveram e têm muito a perder com tal tipo de mudança de rumos.
E não é pouca coisa que está sendo posta em cheque, correndo o risco de que o HCB seja transformado num hospital público de feição antiga, ou num gigante abandonado, com todos os problemas históricos que os mesmos apresentam, bem conhecidos dos brasileiros, aliás. Mas parece que para alguns mandatários, além de promotores e juízes, nada disso importa. O que os move, afinal: seria ignorância, implicância, partidarismo, ideologia, má fé? Ou tudo isso junto? Enfim, não há qualquer “fumaça de bom direito” nisso, mas sim emanações tóxicas… Seria mais um sintoma de que no Brasil de hoje os que detêm o poder de mando abriram mão de seu papel histórico e agora se comprazem em semear o caos e promover prejuízos à sociedade?
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