De unhas encravadas e transplantes…

De volta do DF – e já não é sem tempo. Penso que podemos dar uma folga às discussões sobre as eleições (sem perder de vista o fato de que ser crítico é um valor e que uma boa maneira de ajudarmos o novo governo é manter sobre ele a nossa vigilância cidadã) e também sobre covid (em que pese o fato de que o perigo ainda não esteja de todo esconjurado). Dito isso, vamos em frente, de volta às questões que interessam diretamente à nossa cidade. Comento aqui hoje uma notícia recente (07/11/2022) do Portal da SES-DF onde se anuncia o seguinte: “De unha encravada a transplantes, saiba qual dos três tipos de unidades de saúde procurar quando houver algum incidente. UBS, UPA ou hospital: em qual local buscar atendimento médico”. Quem dera fosse simples assim, mas em todo caso já é alguma coisa positiva, pois é grande a dificuldade em encontrar informações realmente relevantes para a população em tal sítio, especializado que é apenas em questões internas da Secretaria de Saúde. A essência de tal comunicado é a seguinte: a rede pública do Distrito Federal conta com 174 unidades básicas de saúde (UBS), 13 unidades de pronto atendimento (UPA) e 16 hospitais. Tal sistema seria “organizado em rede”, segundo um gestor da SES entrevistado na matéria, do que é possível discordar, embora ele também diga que isso garante a “eficiência do sistema de saúde”, coisa que aqui no DF, sinceramente, não vejo acontecer. Mas vamos por partes.

Em primeiro lugar, será que tal informação está completa? Parece que não. Embora seja possível acessar endereços e horários de funcionamento através de um link, pouca informação está disponível sobre o tipo de serviços que poderão ser demandados (ou não) em tais unidades, bem como o grau de completude de suas equipes e equipamentos, bem como se estão alocadas lá tanto gente como equipamentos e instalações qualificadas – mas aí seria querer demais. Aliás, uma coisinha simples, mas que é pouco valorizada no Brasil é este tipo de informação fornecida diretamente ao cliente, que já na entrada saberá o que ele poderá demandar no serviço, bem como quem são as pessoas que lhe atenderão. Ao contrário, o que mais se vê nos serviços públicos de saúde são certos avisos sobre o que está temporária ou definitivamente suspenso ou negado, mutas vezes acompanhadas daquela famosa e proverbial inscrição, de natureza quase bíblica: “maltratar funcionário público é crime”.

Sobre as UBS, a nota informa que como parte da Atenção Primária em Saúde elas representam o primeiro nível de contato do paciente com o sistema e o seu coordenador, Fernando Damasceno, explica que se trata de um modelo de atenção menos voltado para as causas emergenciais, já que os pacientes em estado realmente agudo, como os infartados, poderiam ter sido acompanhados precocemente evitando o infarto e a internação. E realmente não o são, pois eles estão e sempre estiveram lotando as filas nas unidades emergenciais hospitalares.

O número de UBS na cidade nos obriga a um raciocínio simples. Elas são cento e setenta e quatro. É muito ou pouco? Se o sistema fosse todo calcado na base da estratégia de Saúde da Família, supondo que cada uma delas pudesse abrigar quatro equipes (um número arbitrário, mas não irreal) e considerando que cada equipe daria cobertura a 3.500 pessoas (número real, baseado na Política Nacional de Atenção Básica), nós teríamos então uma cobertura de 174 x 4 x 3.500, ou seja, cerca de 2,5 milhões de pessoas, o que parece até razoável, por se aproximar dos 80% da população. Mas provavelmente este cálculo é irreal, porque nem todas funcionam com equipes de SF (quantas? Ninguém sabe); se tais equipes estiverem presentes não se sabe se estariam completas e, além do mais, se estariam de fato distribuídas regularmente no território da cidade.

Além disso, aqui no DF existe uma tendência de chamar de APS tanto a modalidade antiga, aquela dos “postinhos”, como as novas metodologias baseadas em conceitos arduamente desenvolvidos em variados países do mundo e que orientam (ou orientavam) os documentos seminais da Estratégia de Saúde da Família. E assim, o que chamam de “Atenção Primaria à Saúde” é uma mistura dessas duas coisas, com provável predomínio do modelo arcaico.

Não custa nada lembrar, também, o que vem a ser uma Atenção Primária em Saúde realmente eficiente, que certamente não é aquilo que o emérito coordenador Damasceno trata como tal. Sem dúvida, existe consenso geral é de que ocorreu melhoria da qualidade da estratégia de APS no Brasil nas últimas décadas, associada a reduções nas hospitalizações e na mortalidade de algumas condições. São achados que acrescentam evidências sobre a importância da APS, traduzida aqui pela Estratégia de Saúde da Família, na melhoria da saúde da população e também para alavancar o desenvolvimento sustentável relacionado à saúde.

Assim, uma APS de qualidade deve conter, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) ações de saúde, no âmbito individual e coletivo; (2) abrangência que inclua a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, além da manutenção da saúde; (3) trabalho em equipe, com médico, enfermeiro e pessoal auxiliar, inclusive agentes comunitários de saúde; (4) foco da ação dedicado a populações de territórios bem definidos e explícitos; (5) responsabilização sanitária formal de tal equipe; (6) domínio de tecnologias de complexidade alta e baixa densidade: (7) capacidade de resolver os problemas de saúde de maior frequência e relevância no território (que podem chegar a 90% do total). Além disso, ela representa o contato inicial dos usuários com o sistema de saúde, orientando-se por princípios tais como universalidade, acessibilidade, coordenação do cuidado, vínculo; continuidade, integralidade, humanização, equidade e participação social.

Isso simplesmente é o oposto das grandes e permanentes filas – estas verdadeiramente reais – nas portas de emergência dos hospitais da cidade. Ou seja, é preciso não se deixar iludir por números (e nem por declarações iluminadas de autoridades). Cifras frias, como aquelas mostradas na matéria aqui em foco, muitas vezes possuem o dom de iludir, como diria Caetano Veloso.

Outra questão é a das UPA, em número de 13 em todo o DF. Elas foram criadas no início da década passada como uma tentativa de resolver uma crise nas emergências hospitalares, sendo caracterizadas como unidades de Pronto Atendimento/24h, para atender casos emergenciais e, quando necessário, encaminhar aos serviços hospitalares de maior complexidade. Ficaram como estações intermediárias entre as UBS e os Hospitais, mas na prática não são nem uma coisa nem outra, pois não só competem com os serviços básicos, atraindo uma parcela dos pacientes que deveriam estar nas UBS, mas também, devido sua debilidade na estrutura humana e física, não chegam também a aliviar os pronto-socorros dos hospitais.

Pelo menos três grandes problemas podem ser vislumbrados no projeto das UPA. O primeiro é que seus recursos e qualificações, tanto em termos de equipamento e pessoal, são restritos e decrescentes, com marcante incapacidade de realmente resolver situações emergenciais. As equipes incompletas predominam. No encaminhamento aos hospitais, previsto no projeto inicial, é óbvio que se esmeram, muitas vezes sem maiores diagnósticos ou intervenções, por falta de recursos para tanto. A segunda questão é de sua distribuição geográfica, que na verdade mostra grandes vazios assistenciais aqui no DF. Na prática, do ponto de vista da população existiria pouca distinção entre tais unidades e as UBS, sendo a grande diferença entre elas o menor tempo de espera nas UPA, embora isso tenha a desvantagem associada de serem os atendimentos mais superficiais, sem a continuidade de cuidados para os quais a atenção primária à saúde seria a estratégia mais qualificada. Para os usuários, todavia, isso soaria como coisa positiva. Ademais, a inserção de tais UPA no sistema de saúde não se dá dentro de um desenho de verdadeira rede, mas, ao contrário, como uma malha de unidades não coordenadas entre si, aí incluídos as UBS e os Hospitais.

A rede hospitalar, constituída por 16 hospitais, situados em praticamente todos os quadrantes do DF, é sem dúvida pujante, pelo menos em termos quantitativos. Mas as notícias de seu funcionamento precário e mesmo sucateamento de instalações e equipamentos são verdadeiramente abissais, sem falar da eterna crise na alocação de pessoal, com transferências e licenças dominado o cenário, agravado pela raridade dos concursos e dificuldades no preenchimento de vagas nas equipes.

Em resumo, a informação que tal “rede” estaria capacitada para atender “de unha encravadas a transplantes” deve ser vista com reserva. Além disso, muitos outros serviços que também compõem o sistema de saúde local nem são citados, embora tenham a ver diretamente com o assunto, como é caso dos CAPS (saúde mental), zoonoses, SAMU, vigilâncias e muitos outros.

Aliás, no quesito “rede” é que mora a maior deficiência de tal conjunto de unidades. Vejamos alguma coisa sobre tal conceito. Para Mendes (2009), seriam organizações não exatamente hierárquicas, de conjuntos de serviços vinculados entre si por uma missão única e objetivos comuns, mediante ações cooperativas e interdependentes, que permitiriam ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela Atenção Primária à Saúde (atenção para isto!) Sobre a APS nas redes, lembra o autor ainda que ela deve ser prestada no tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma humanizada e com equidade, com responsabilidade e geração de valor para a população.

A Organização Pan-Americana de Saúde e a OMS oferecem explicação bastante semelhante, preconizando ainda que tais redes integradas de serviços de saúde, organizadas sistemicamente e também clinicamente integradas representam arranjos para a prestação de serviços de saúde equitativos e integrais a uma população definida, e que além do mais se dispõe a prestar contas pelos seus resultados clínicos e econômicos, bem como pelo estado de saúde da população a que ela serve (OPS; OMS, 2011).

Definição mais simples é a de Shortell et al (1996), que fala em redes de organizações que prestam um contínuo de serviços a uma população definida e que se responsabilizam pelos resultados clínicos, financeiros e sanitários relativos a essa população.

Em síntese – e para terminar. O que temos no DF é apenas um conjunto de instalações de saúde, defasado em termos de cobertura populacional, estrutura física, tecnologias, recursos humanos e, principalmente, carentes de uma organização que inclua algum tipo de atenção contínua, integral, humanizada e equitativa destinada a uma população definida e além do mais coordenada pela APS e prestada em tempo, lugar, qualidade e custo certos, com responsabilidade e geração de valor para a população.

Não é uma pequena carência, realmente; devemos admitir, aliás, que estamos bem longe disso. A ingênua (para não dizer outra coisa) matéria jornalística do Boletim Informativo da SES-DF está a anos-luz de mostrar toda a verdade, ou seja, mais escamoteia do que revela o que a população deveria ter o direito de conhecer.  

Enfim, caro leitor, mesmo se o seu problema for somente uma prosaica unha encravada, talvez nem assim você tenha garantia de ser atendido em tal conjunto desconexo de instalações. Transplante? Será bem mais difícil…

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Para saber mais:

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E ainda dentro do tema da unha encravada…

Quando é que estes manés que soltam vivas nas portas de quartéis vão se convencer que perderam e que aquele a quem chamam Mito não passa de uma criança mimada que não sabe o que fazer da vida, agora que lhe tiraram o brinquedo? Caramba: até para ser bolsotário tem limite…

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Confira as UPAs nas regiões de saúde do DF:
Brazlândia
Ceilândia
Ceilândia II
Gama
Núcleo Bandeirante
Paranoá
Planaltina
Recanto das Emas
Riacho Fundo II
Samambaia
São Sebastião
Sobradinho
Vicente Pires

2 respostas para “De unhas encravadas e transplantes…”

  1. Muito verdadeira esta análise do sistema de saúde no DF feita por Flávio Goulart. Sempre me faço a mesma pergunta, por que não investir maciçamente na Estratégia de Saúde da Família??? Quando bem estruturadas e com princípios humanizados no atendimento, essas unidades cumprem realmente seu objetivo de promover a saúde, prevenir e tratar doenças. Nessas unidades da família os usuários tem nome, tem endereço e são vistos realmente como pessoas e não como números!
    Eu pessoalmente acho que as UPAs foram um retrocesso radical na rede de saúde. Antes investir maciçamente na atenção básica e nas equipes da familia do que utilizar os recursos de profissionais e materiais (que já são escassos) em instâncias que não resolvem verdadeiramente a saúde da popluação.
    Como sempre, nos relatos da SeS DF sempre fica claro a omissão escancarada da atenção à saúde mental. Será que não sabem que mais de 60 % da procura para as unidades básicas de saúde estão relacionadas aos sintomas psíquicos e/ou ao sofrimento vivido por nossa população????? (se não souberem, melhor procurar as pesquisas que levantam os motivos e queixas das pessoas que procuram as unidades de saúde).

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    1. Obrigado Henriqueta. Sua atenção e seus comentários enriquecem esta página! Concordo com você, embora pense que acima de tudo e para além da decisão política insatisfatória, ainda falta ao SUS adentrar ao imaginário das pessoas, seus usuários, de forma mais robusta. O povo brasileiro costuma achar que o sistema de saúde é apenas uma espécie de quebra galho e neste ponto não há maior diferença entre os que nele trabalham. É preciso, de fato, “conquistar o coração das pessoas”, o mais depressa possível. Para isso o SUS tem que aprimorar sua qualidade, nada de esperas demoradas, instalações sucateadas e cartazes negando quase tudo na porta das unidades, além de gente pouco preparada e avessa à ideia do direito em saúde. E além disso, a necessidade de que toda esta parafernália de UBS, UPA e Hospitais se articule efetivamente como uma REDE de serviços e não como unidades autônomas, isoladas e desconexas.

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