Parcerias público-privadas no Brasil: assunto permanente na mídia e nas mesas de decisões do setor público, mas sempre causando alguma polêmica. Na saúde (e no DF), então, nem se fala… De minha parte, sou favorável a tais parcerias, mas ao mesmo tempo declaro-me partidário de um Estado competente e probo em contratá-las, fiscalizá-las e, se for o caso, denunciá-las e cancelá-las. E que seja, também, um Estado transparente e fiscalizável… O assunto vem à tona neste momento porque leio na mídia que está sendo promovido um grande mutirão de cirurgias realizadas em hospitais privados, mediante custeio provido pela SES-DF (ver link). Já foram atendidas mais de 3,2 mil pessoas nos últimos quatro meses, com procedimentos de hernioplastia, colecistectomia e histerectomia. Os recursos totais alocados estão na ordem de R$ 20 milhões e sete hospitais privados do DF se associaram à iniciativa: Águas Claras, Anchieta, Daher, Hospital das Clínicas, HOME, São Francisco e São Mateus. Pode ser que nem todos sejam tão santos como alguns de seus nomes indicam, mas se estiverem sendo fiscalizados e acompanhados de forma honesta e competente, tudo bem. O atendimento inclui não só a intervenção cirúrgica, como também a internação e as consultas pré e pós-operatórias. Os hospitais recebem de acordo com o número de procedimentos realizados (aí mora um grande perigo!). Vou comentar tal assunto, referente às parcerias público privadas em saúde, não pela primeira vez aqui no blog, mas agora tendo como foco um documento que uma entidade que congrega representantes da iniciativa privada em saúde no Brasil, o Instituto Coalizão Saúde (ICOS), vem divulgando, no qual estão incluídas propostas de ampliação de tais parcerias entre o Poder Público e o setor privado em saúde.
A primeira constatação, digna de nota, é a de que neste caso uma representação da iniciativa privada toma a iniciativa de propor uma associação (ou que nome se queira atribuir a tanto) com o Poder Público. A recíproca, todavia, por parte deste último não é total, pois tal assunto costuma ser tratado quase sempre com desconfiança e mesmo algum preconceito. Aliás, é o que também acontece nos dois lados da mesa e mesmo por parte da opinião pública.
O documento do ICOS está organizado em torno de quatro grandes propostas para a ação do poder público: (1) financiamento e sustentação do sistema; (2) gestão operacional e assistencial; (3) saúde digital; (4) inovação e complexo científico e tecnológico. De uma forma que considero mais esclarecedora para a presente discussão, organizo tais propostas em termos de sustentação financeira; modelo de gestão e de assistência; disponibilidade de tecnologias em saúde, como se poderá apreciar no texto de síntese preparado por mim, ao qual remeto o leitor através do link ao final .
Vamos analisar o teor de tal proposta com a devida cautela, mas sem preconceitos, ok? Ao final voltaremos ao caso presente do DF.
Para início de conversa, qualquer aperfeiçoamento real do sistema de saúde no Brasil se somente se alcançaria muito além das propostas apresentadas pelo ICOS. Muito além mesmo. A essência das relações (que devem existir de fato) entre o público e o privado não está clareada neste documento, enfático em deplorar o desequilíbrio financeiro nos planos de saúde, porém sem oferecer indícios de que se preocupa também em proteger, além da saúde dos cidadãos, as contas públicas. Além disso, questões de importância capital no SUS, como política de recursos humanos, modalidades de remuneração de pessoal, capacitação da força de trabalho, intercâmbio tecnológico, responsabilidade sanitária de gestores, regionalização de serviços, modelo de gestão pública baseada em valor, estruturação em redes, conteúdo jurídico de contratos, judicialização, além de outras, são tratadas com certa superficialidade ou simplesmente não cogitadas. Há também uma pergunta que não quer calar e eu a deixo no ar: por que tal entidade se manteve em silêncio durante a pandemia? Certamente não havia (e nem há ainda) um governo receptivo ao tipo de propostas que ora oferecem ao novo governo, mas poderiam ter feito, assim como outras entidades, a veiculação de alertas e denúncias quanto à atuação das autoridades, o que estaria plenamente justificado por ser eticamente correto.
É digna de nota (e até de elogios) a preocupação com que o documento trata do modelo assistencial, com notável detalhamento de propostas que dizem respeito à Atenção Primária à Saúde, não só como modo de atenção a pessoas e famílias, mas também como instância ordenadora do sistema de saúde. Isso na verdade não traz nenhuma novidade para quem já milita historicamente na luta pela APS, como eu e tanta gente mais dentro do sistema público. A novidade é ver a iniciativa privada tão empenhada nisso, fazendo os mais céticos desconfiarem que alguma coisa pode estar se escondendo por detrás de tal entusiasmo. Eu também desconfio, mas sem exacerbar no ceticismo: quem sabe é uma boa oportunidade para se discutir algum tipo de colaboração, desde que republicana, entre estes dois setores, tendo como foco a atenção primária?
Da mesma forma, a forte ênfase em tecnologias, como Tele-saúde, prontuários digitais, bases de dados ampliadas, ESD28 e outras, parecem traduzir algum interesse diferenciado por parte dos propositores, interesse este que certamente implicaria em foco econômico, ou seja, em produtos para um Mercado, para sermos mais diretos. É bom lembrar que a origem do documento não é propriamente de profissionais de saúde, como o mesmo é apresentado, mas de representantes empresariais variados, que incluem inclusive produtores de medicamentos, serviços e equipamentos. Não há nele nenhuma benemerência, certamente, mas sim interesses. Mas de toda forma, pode-se conversar. Por que não?
A divulgação deste documento traz a possibilidade, também, de levantar discussões sobre as ações concretas a serem objeto de uma adequada relação entre o público e o privado no Brasil. Há cases relevantes em toda parte. Aqui no DF mesmo, além da atual iniciativa (modesta, na verdade) comentada acima, existe aquela significativa e já consagrada pelo tempo, entre a SES-DF e o Hospital da Criança e possivelmente outras de que não tenho notícias no momento. Mas é certo que existem possibilidades múltiplas a serem exploradas, por exemplo, na responsabilização na porta de entrada através de Unidades Básicas de Saúde destinadas indistintamente a filiados de planos e cidadãos em geral, com responsabilização territorial por assistência integral; no intercâmbio de tecnologias; no desenvolvimento de estratégias e ações de capacitação de RH; na adoção e operacionalização de campanhas vacinais e educativas; na responsabilização informacional; no compartilhamento de recursos físicos e processuais. E por este caminho certamente surgiriam numerosos desdobramentos interessantes.
Mas falando em tecnologias, é bom lembrar que a colaboração pode se dar em dois sentidos, pois no SUS também existem bons exemplos de programas e aplicativos de sucesso, como é o caso do software de avaliação da atenção básica especialmente desenvolvido (PCATool).
Mas vamos combinar: a noção de valor, mencionada e valorizada no documento aqui em foco, deveria ser incorporada também na relação entre o Estado e o setor privado. Isso implica em mensuração realista e transparente de custos e resultados em saúde, valendo não só para a parceria em si, mas também para o sistema de saúde como um todo e seus trabalhadores, mas, principalmente, para a sociedade e para os pacientes em geral. Entre as noções associadas então eficiência, controle de custos, transparência, redução de riscos, definição de indicadores, personalização de cuidados, adequação de tecnologias, trabalho em equipe, responsabilização, compartilhamento de informações, coordenação do cuidado, compliance, entre outras.
Volto à pergunta capital: é possível confiar em tais relações? Sem querer dizer sim ou não, uma coisa é certa. É preciso parar de pensar que estaremos sempre diante de lobos em pele de cordeiro. As distorções de tal relação, que dominam o imaginário dos militantes do SUS, o mais das vezes resultam da corrupção, ineficiência ou morosidade do Estado em cumprir seu papel. É preciso adicionar ao cenário ingredientes como monitoramento (rigoroso e just-in-time), valor, economicidade, responsabilização etc. Com este Estado frouxo (com os poderosos, pelo menos) com que de fato temos convivido historicamente no Brasil, seria pouco provável avançar no campo das parcerias, ao ponto de levar muita gente a pensar se não seria melhor deixar apenas aos cuidados do mesmo a assistência rústica (para não usar palavras mais grosseiras) que o Poder Público muitas vezes oferece.
É o caso de parar de esconjurar a escuridão para, inversamente, acender luzes no cenário…
Para finalizar, um comentário sobre o caso do DF apontado no preâmbulo deste post. É um bom caminho, embora bastante modesto, perto das potencialidades do campo das parcerias público-privadas. Não se trata nem mesmo de “um bom começo”, eis que o caso local do Hospital da Criança está aí, às vistas de todos, para demonstrar o acerto de tais medidas. Acrescente-se que as propostas devem ser, de fato, resultantes de construções realizadas a partir da realidade local. Mas de toda forma, é preciso muita cautela com a forma de pagamento assumida nesta iniciativa. Pagamento por procedimento é coisa superada em quase todos os sistemas sérios de saúde do mundo e faz parte do folclore famoso das cesarianas realizadas em homens e dos apêndices removidos três ou quatro vezes em um mesmo paciente.
E assim me lembrei de um ditado árabe, recolhido no velho Malba Tahan: confia no amigo, mas amarra o teu camelo.
Tenho dito.
Abraços a todos.
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Acesse também:
Abaixo o resumo do documento do ICOS preparado por mim:


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