Tenho em mãos documentos atualizados, firmados por representantes do setor privado em saúde, com propostas para o novo governo que se inicia. (1) A Saúde que devemos ter, tem como signatário uma entidade denominada Iniciativa FIS, um “ecossistema de lideranças da Saúde da América Latina”, declara como objetivo principal promover transformações no setor a partir de um encontro entre atores públicos, privados e das academias, através de conexões e debates e inovações. (2) Saúde do Brasil 2023-2030 vem do Instituto Coalizão Saúde (ICOS), formado por organizações públicas e privadas de toda a cadeia produtiva e de serviços de saúde, representando posições de consenso e convergência de interesses do setor saúde, voltado para ações de governo, mas com expectativas de tenha utilidade também para orientar o debate nas diversas organizações de saúde públicas e privadas. Pretendo aqui confrontá-los com um terceiro documento, (3) Relatório de Transição de Governo 2023, visando verificar até que ponto tenham propostas convergentes – ou não. De toda forma, a simples existência de tais peças oriundas do setor privado é motivo de regozijo e esperança para mim, pois acredito realmente que a separação “água e óleo”(ou o Bem contra o Mal) que historicamente domina a relação entre tais atores e o setor público não mostra o melhor dos caminhos para resolvermos a problemática que nos cerca. Tenho escrito muito sobre isso aqui (ver alguns links ao final) e a pergunta que não se cala é: seria possível confiar nas associações do setor privado com o Poder Público? Sem querer dizer sim ou não, creio ser preciso não imaginar apenas que estaremos sempre enfrentando lobos em pele de cordeiro nesta questão.
Para começo de conversa, as distorções que a realidade mostra em toda parte e que dominam o imaginário dos militantes do SUS, não dependem apenas da voracidade empresarial capitalista, mas também de um somatório de corrupção, ineficiência e morosidade do Estado em cumprir seu papel. Com efeito, isso inclui ingredientes como monitoramento, rigor, ação just-in-time, assunção de noções como valor, economicidade, responsabilização, etc; além, é claro, de competência específica em fiscalização, auditoria e controle. Com este Estado frouxo (quando lida com poderosos, pelo menos) com que convivemos historicamente no Brasil, seria pouco provável obter sucesso em parcerias com o setor privado.
Creio que até certo ponto se justifica o senso comum, que imagina se não seria melhor deixar apenas aos cuidados do Poder Público aquela assistência rústica (para não usar palavras mais grosseiras) tradicional, deixando de lado, sempre e acima de tudo, o setor privado, por supor que com ele as coisas correriam de forma ainda pior. Mas acredito que não podemos descansar sobre isso, em atitude de rendição, sem tentar nada. E feito este preâmbulo, vamos à análise dos documentos citados.
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O documento da Iniciativa FIS, afirma que o atual modelo assistencial em saúde no país está obsoleto e requer profundas mudanças e atualizações, seja em relação ao setor público ou privado, inclusive no chamado terceiro setor, com foco em dificuldades de acesso, qualidade não medida, custos crescentes, baixa efetividade, baixa eficiência e resolutividade. Assim, defendem que gestores públicos e privados devem agir em conjunto para garantir o acesso a quem necessita e entregar serviços de Saúde mais resolutivos e sustentáveis.
São formuladas algumas propostas, em síntese: Definir ações que garantam o acesso de forma equânime por toda população brasileira aos serviços de saúde; realizar levantamento imediato da capacidade instalada dos serviços assistenciais de Saúde existentes no país; construir um data lake que permita orientar as políticas públicas de Saúde com base em dados e na utilização da inteligência artificial; propor a estruturação de uma Rede de Atenção à Saúde ao nível dos cuidados básicos, integrada para os setores público, privado e terceiro setor; propor a implementação de uma política pública de Saúde digital que possa ampliar o acesso da população aos métodos diagnósticos e terapêuticos; implantar, monitorar e aprimorar o desenvolvimento das regiões de saúde; estruturar programas e ações para o acompanhamento de subpopulações estratificadas por riscos a partir da utilização de predições analíticas construídas pela inteligência artificial; propor a criação de um sistema único de regulação pública para a rede federal, estadual e municipal.
De forma diretamente relacionada à origem privada de tais ideias, afirma-se que é preciso ampliar a participação do setor privado na formulação das Políticas de interesse coletivo de modelos assistenciais da Saúde, assim como discutir o financiamento e a criação de incentivos para atrair investimentos privados na área da Saúde.
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O segundo documento, do Instituto ICOS, deplora, preliminarmente, que não exista uma demarcação clara dos limites de atuação dos setores público e privado no Brasil, o que resulta em sobreposição e duplicação de esforços. Considera ainda que nas empresas que se submetem às diretrizes do SUS, seus serviços são equiparados àqueles prestados diretamente pelos órgãos e entidades governamentais, enquanto na Saúde Suplementar as ações e serviços são prestados de forma independente, sem a existência de vínculos com o SUS – o que constituiria um fator negativo. Entre as propostas do mesmo, especial ênfase é dada à sustentação financeira do SUS, no que se reafirma o conceito do mesmo como único, de fato e de direito. Lembram ainda que apesar de submetida à legislação e regulação públicas, a saúde privada não é financiada ou sustentada pelo SUS, mas que mesmo assim precisa alcançar sustentabilidade operacional e financeira, já que os custos em tal área são crescentes e devem ser avaliados em função de sua sustentabilidade, tanto no sistema público quanto no privado. Isso acarreta que a gestão dos sistemas de saúde precisa ser mais eficiente, efetiva e eficaz em todos os níveis, com a adoção obrigatória de melhores práticas de gestão e atenção, o que requer recursos financeiros, organizacionais, humanos e operacionais que atualmente estão defasados.
Além disso, constata-se marcante insuficiência de dados no sistema, indispensáveis para melhor capacidade de gestão, com repercussões também nos processos clínicos. Por outro lado, o avanço da Saúde Digital e das estratégias associadas têm apontado caminhos para que as tecnologias digitais cumpram importante papel, transformado os processos diagnósticos e terapêuticos, como já acontece em todo o mundo. Nisso a participação brasileira ainda é considerada insuficiente e aquém das nossas potencialidades, com forte dependência externa.
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O Relatório de Transição na Saúde, constata, inicialmente que o País ainda convive com a grave crise sanitária que, além das quase 700 mil mortes pela COVID-19, exacerbou o quadro de deterioração da saúde, revertendo uma tendência anterior de melhoras neste campo. Isso se evidenciaria, por exemplo, pela piora generalizada em indicadores de saúde, tais como a redução da taxa de coberturas vacinais, a queda acentuada de consultas, cirurgias, procedimentos diagnósticos e terapêuticos realizados pelo SUS, o retorno de internações por desnutrição infantil provocadas pela fome, a estagnação na trajetória de queda da mortalidade infantil, além do aumento de mortes maternas. Aponta-se um conjunto de retrocessos institucionais, orçamentários e normativos, com degradação da autoridade sanitária nacional e do papel de coordenação e articulação do Ministério da Saúde, com a desestruturação de políticas e programas até então bem-sucedidos.
Deplora-se que as perdas do SUS, em decorrência da EC 95/2016, tenham chegado a quase R$ 60 bilhões e além disso, para 2023, a saúde sofrerá o impacto da atual proposta de orçamento, com consequências deletérias para programas como o Farmácia Popular, o Mais Médicos, Saúde Indígena, entre outros, com altíssimo risco de colapso de serviços essenciais, o que indica a necessidade de recuperar o orçamento da área, além de estabelecer medidas de resgate da autoridade sanitária e da capacidade técnica do MS, colocando-se como prioridades o resgate das coberturas vacinais; o fortalecimento da capacidade de resposta à COVID-19 e outras Emergências de Saúde Pública; o enfrentamento das filas na atenção especializada.
Esforços que devem estar articulados à reorganização da Atenção Básica, com prioridade à recuperação das áreas de Saúde Mental, da Mulher, da Criança e do Adolescente, da população indígena. Ênfase é dada à recuperação da Assistência Farmacêutica do SUS; da retomada do estímulo ao desenvolvimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde; da transformação digital do SUS; das condições de suporte, insumos e contratos em geral. Além disso, os colegiados de participação institucional e social, que foram desarticulados e desacreditados no governo encerrado em 31 de dezembro de 2022, devem ter suas funções recuperadas e incentivadas.
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Comentários
A diferente ênfase e aprofundamento dos dois primeiros documentos em relação ao Relatório de Transição se explicam pelas ênfases temáticas que os mesmos apresentam, já que aqueles pretendem analisar e propor soluções abrangentes para os problemas já conhecidos, enquanto o outro se detêm sobre o verdadeiro estado de calamidade e terra arrasada deixados pelo bolsonarismo nas instituições e programas de saúde no país. Mas no essencial, são convergentes.
Nos documentos do setor privado, há que se destacar, por exemplo, a defesa do SUS enquanto sistema de saúde universal e de fato único e o consequente valor do Direito à Saúde; a definição da atenção primária à saúde como fulcro organizador e porta de entrada do sistema; a necessidade de recuperação financeira do sistema, a partir de recursos públicos; a importância da regulação assistencial; as modalidades de gestão adaptadas a uma nova era tecnológica e cognitiva; a ênfase na saúde digital. Mesmo que algumas dessas definições não estejam de todo contempladas no documento da Transição, elas certamente já fazem parte do arcabouço discursivo dos setores progressistas pró-SUS, estando implícitas nas declarações das autoridades recém nômadas para o Ministério da Saúde.
A ênfase em Saúde Digital parece estar traduzindo algum interesse diferenciado por parte do segmento privado, com possível foco em produtos para um mercado, sem impedimento de que seja também uma questão de alto interesse também para o setor público. É bom lembrar que a origem dos documentos não é propriamente de profissionais de saúde, como um deles é apresentado, mas provêm de representantes empresariais variados, que incluem inclusive produtores de medicamentos, serviços e equipamentos. Não há nele nenhuma benemerência, certamente, mas sim interesses. Mas de toda forma, se pode e se deve conversar; por que não? Não só sobre tal tema como em relação a muitos outros aspectos, tais como: compartilhamento de responsabilidades na atenção primaria e especializada, tecnologias de saúde, processos de regulação, informação e comunicação, conceito de valor etc.
Mas enfim, defendo que se deveria tentar avançar nas possibilidades de colaboração e não apenas de antagonismo entre uma parte e outra. Há muitas distorções, de fato, em tal relação, e isso tem dominado o imaginário dos militantes do SUS e da sociedade em geral. Mas é preciso entender que tais coisas não dependem apenas de alguma voracidade empresarial inerente ao capitalismo, mas também resulta de corrupção, ineficiência e morosidade do Estado em cumprir seu papel.
Alguns tópicos divulgados neste blog sobre a mesma questão (Parcerias Público-Privadas).
- https://saudenodf.com.br/2022/11/23/parcerias-publico-privadas-na-saude-confiar-desconfiando/
- https://saudenodf.com.br/2018/04/06/parcerias-publico-privadas-na-saude-solucao-ou-problema/
- https://saudenodf.com.br/2019/11/07/autonomia-e-flexibilidade-quem-nao-deseja-isso-no-servico-publico/
- https://saudenodf.com.br/2022/12/14/a-saude-que-devemos-ter/
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Mais Médicos
Sobre a volta deste programa e as polêmicas que continuam a se acumular em torno dele, fico aqui me coçando para dizer algumas coisas – e digo. (1) Não deixam de ter razão dos doutores do CFM em relação à necessidade de qualificação e passagem pelo Revalida que os novos contratados devem ter, bem como a preferência por brasileiros (aliás, já atendida nas novas regras). (2) Porém (ai, porém…) isso deveria ser estendido à legião anual de novos médicos egressos das escolas de medicina criadas, sabe-se lá em que condições, pelo Brasil a fora – porque tal situação é muito grave também, em termos de qualificação dos profissionais formados nelas. (3) O CFM e os CRMs, aliás, a categoria médica de maneira geral, deveriam fazer um exame de consciência antes de dizer qualquer coisa dizer sobre tal programa, pois não dá para esquecer da hostilidade com que trataram os médicos cubanos há 10 anos (já seria um ovo de serpente bolsonarista sendo chocado?), além da total indisposição em ocupar os espaços abertos pelo programa, ou mesmo de discuti-lo seriamente, sem ideologia ou preconceitos.
De toda forma, ficam pendentes no cenário pelo menos duas questões-chave, que merecem aprofundamento: (1) o delineamento de uma carreira única para médicos do serviço público, especialmente aqueles da porta de entrada na atenção básica; (2) o serviço civil obrigatório para egressos das faculdades de medicina e outras da área da saúde, tanto públicas como privadas.

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Veja também os documentos citados acima


Flávio, a menção à relação entre estado e mercado como sendo desdobrada da dicotomia água X óleo ou bem X mal não é apropriada em geral pois o que temos visto é a associação entre voracidade (privada) e corrupção e morosidade (pública)
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Flávio, bom dia. Expresso novamente a minha concordância com as questões colocadas, o que já tivemos a oportunidade de discutir em várias ocasiões. Aqui em Portugal, onde resido há exemplos interessantes que passo a relatar. O médico de família solicitou ecografia abdominal para investigar uma pedra na vesícula, exame feito na rede privada às custas do SNS. Quando fomos marcar, o tempo de espera era muito grande e perguntei se o exame fosse feito pelo seguro saúde não seria mais rápido. A resposta nos surpreendeu. A fila é única e a demora se devia ao grande número de pedidos de exames. Se houvesse urgência o exame seria realizado logo. Vou dar um outro exemplo. Quando se vai ao médico particular, o prontuário médico é preenchido através do sistema informatizado do SNS e a receita também é feita da mesma forma, proporcionando os mesmos descontos no valor de medicamentos específicos que são custeados pelo SNS. Aqui existe um prontuário único que é acessado por qualquer médico que você consultar. Os hospitais públicos realizam apenas os exames ali solicitados. Os exames solicitados nos postos e centros de saúde são realizados na rede privada. E, antes que me esqueça, o Hospital Público de Braga é considerado o melhor do país, considerando a rede pública e privada.
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