Tenho tratado da questão do Entorno aqui neste blog por vezes sucessivas. O foco maior dos problemas, para mim, é a maneira um tanto superficial, bem longe de se transformar em prioridade, com que as sucessivas administrações do DF vêm tratando a questão. Aliás, do outro lado da mesa, em Goiás, também. Estabelece-se, assim, um jogo de empurra, que junta fome com vontade de comer – na verdade ações (ou falta delas) presentes nos dois lados. Vejo no Correio Braziliense desta semana (ver link) uma abordagem diferente da habitual, com moradores da região do Entorno – e não políticos ou burocratas – se posicionando sobre como vêm a atuação do GDF em relação a seus problemas. Ênfase maior é colocada nas políticas de Saúde e de Transporte, mas dentro de um contexto que se extrapola para muitas outras ações de governo. Há uma proposta, ainda dos anos 90, que é a da criação de uma Região de Desenvolvimento Integrado (RIDE), abrangendo duas dezenas de municípios, proposta carregada de boas intenções, mas que nunca saiu do papel. Uma alternativa que começa a ser discutida em anos recentes procura superar o conceito de RIDE, demasiadamente amplo em sua extensão geográfica, para colocar foco em uma Periferia (ou Área) Metropolitana de Brasília (PMB), com12 municípios. Pode ser um bom recomeço para discussões que estão paradas há tempos. Como exemplos da situação existente, o Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) estima a presença de 826 mil pessoas residentes em tal área, das quais 17,92% buscam serviços de saúde no DF, 8,98% dos jovens estudam em instituições da capital do país e 36,14% dos trabalhadores têm emprego no DF. Vamos conversar sobre isso nas linhas abaixo.
Para início de conversa vamos combinar: Entorno ou transtorno? Isso é apenas um trocadilho infame, ok? Ele nasce desde quando o “quadradinho” se emancipou de sua Terra Mater, já se vão mais de 60 anos. Não se pode esquecer que quem vem dos territórios vizinhos para trabalhar aqui vem também para fazer compras, utilizar serviços pagos e realizar outras atividades que contribuem para a economia do DF. Além do mais, a Constituição assegura o direito de ir e vir. Portanto, qualquer solução não passa por colocar barreiras e catracas, criando assim um apartheid interfederativo peculiar, como, aliás, o afastado governador do DF já tentou fazer em meados de seu primeiro mandato, tendo como desculpa a pandemia de covid.
Cabe lembrar, ainda, que o IBGE já mostrou que mais da metade dos municípios brasileiros não oferece serviços de atenção básica em saúde, de forma completa e resolutiva, e com isso precisa encaminhar os usuários para outras cidades para a realização de exames, mesmo os mais simples. Na internação hospitalar, chegam a 60,7% os locais que precisam encaminhar pacientes para outros municípios. Além disso, apenas 14,7% dos municípios dispõem de serviços de nefrologia públicos ou conveniados ao SUS; 9,7% possuem leitos ou berços de UTI neonatal; 34,6% leitos para cuidados intermediários. Isso se aplicaria, sem grande diferença, ao Entorno do DF, o que certamente implica em relação de sobrecarga ao DF.
Como resolver isso? Seguem alguns princípios orientadores.
- O caso específico do Entorno do DF mostra relações complexas entre entes federativos, bem como entre governos e população, com problemas muitas vezes agravados pelas barreiras políticas e geográficas, derivadas da tendência competitiva e até predatória vigente na federação brasileira. Em tal contexto, problemas de natureza sanitária, econômica, demográfica, cultural e política não têm como serem resolvidos de maneira singela ou apenas dentro dos moldes formais, nos limites de municípios ou estados, isoladamente.
- A solução está na busca de uma governança integrada, o que requer a ampliação do escopo da gestão dos vários participantes da equação assistencial, em termos de meios e de fins. Não há lugar para alguma soberania e mesmo a noção de autonomia deve ser qualificada e até relativizada.
- Assim, surge a necessidade da criação de novos arranjos institucionais, fugindo daquele cada um cuida de si tradicional. Bom exemplo disso, embora na área de segurança pública, é a Força Nacional de Segurança, algo praticamente impensável até alguns anos atrás, por ameaçar, supostamente, a marcante autonomia dos entes federados, mas que uma vez instalada veio ao encontro das demandas e das necessidades da sociedade. Haja vista os recentes episódios de vandalismo bolsonarista no DF
- De forma consequente com esses novos arranjos institucionais, o princípio básico de ação governamental deveria se apoiar em valores de solidariedade e cooperação, com definição de novos papéis e novos modus operandi das máquinas administrativas, com foco na responsabilização das três esferas gestoras. Das TRÊS esferas, insisto. Isso implicaria em aumentar recursos e poder decisório, não necessariamente de cada um dos entes federados, mas do conjunto deles, com a criação de instrumentos eficientes de gestão integrada, sem abrir mão da responsabilização individualizada de cada ente envolvido.
- Organismos colegiados de gestão interfederativa, como já previsto nas normas do SUS, são necessários, seja entre municípios, mas principalmente entre Estado e estes. Mas atenção: não se deve prescindir de papéis a serem exercidos pelo Gestor Federal, que não seja apenas o de árbitro, mas de agente atuante de uma expressiva ação trilateral, sem que isso se transforme em usurpação do poder pelo governo central.
- Tal ação interfederativa deve se estender ao conjunto de serviços públicos comuns aos estados e municípios que compõem a região, o que ultrapassa a possível pauta de atuação de governos locais, de forma a incluir itens tão diversos como: infraestrutura urbana; capacitação profissional específica em saúde; política de saneamento básico e limpeza pública, em função dos indicadores epidemiológicos; proteção ao meio ambiente e controle da poluição ambiental; educação e cultura, nos aspectos relacionados à saúde, além de segurança pública.
- Isso implica em que as próprias atribuições específicas em saúde de cada ente federativo sejam ampliadas, de forma a incluir a coordenação das ações e programas de saúde; o desenvolvimento dos sistemas locais e microrregionais de saúde; o fomento à integração dos serviços públicos de saúde comuns; a utilização cooperativa dos instrumentos de planejamento local e regional, entre outras possibilidades, tendo como foco o a redução das desigualdades sanitárias.
Em suma, o pressuposto maior de tais ações deve ser o de que o Entorno não é simplesmente um transtorno para o DF, pois a população que nele habita, além de ser portadora de direitos de cidadania tanto quanto aquela que habita a Capital Federal tem também um importante papel na movimentação da economia do DF, já que é no comércio local que costuma fazer suas despesas de custeio familiar e outras. Além disso, estas pessoas não podem pagar os custos da incúria de governantes que permitiram e estimularam a atração fantasiosa de centenas de milhares de migrantes, movidos de outras regiões do País por promessas vãs, com o consequente descalabro da exploração imobiliária nas áreas onde foram forçados a se alojar.
Uma coisa é certa. Atitudes de levantar paliçadas, instalar catracas ou fechar as fronteiras, como volta e meia os vários governos do DF ameaçam, fazem parte de uma lógica política medieval e totalmente ultrapassada em termos políticos e humanos, como aquela das “cidades-estado”, não se coadunam com as diretrizes do SUS e nem com a necessária colaboração e solidariedade entre os entes federativos, muito menos em situações sanitárias limite, como agora. Quanto ao papel do gestor federal, considerando os anos recentes de descontrole e não-governança durante a pandemia, por parte dos fardados e assemelhados que ocuparam a Babel que se instalou no Bloco G da Esplanada dos Ministérios, fica claro tudo isso precisa mudar radicalmente.
Quem sabe, no futuro, poder-se-ia dar um jeito nisso. Até lá, o Entorno continuará sendo um incômodo transtorno para o DF e seus cidadãos tratados como gente de segunda classe.
Veja a matéria do Correio Braziliense citada no texto:
Publicações deste blog sobre o tema Entorno:
- https://saudenodfblog.wordpress.com/2018/03/27/entorno-ou-transtorno/
- https://saudenodf.com.br/2019/10/04/ainda-e-ate-quando-as-questoes-do-entorno-do-df/
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Para saber mais sobre a Área Metropolitana de Brasília:
- https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10390/1/brua_22_ensaio_urbana_artigo_7.pdf
- https://books.openedition.org/irdeditions/35764
- https://ipe.df.gov.br/area-metropolitana-de-brasilia-um-espaco-integrado/
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Mais? Do mesmo?
O número de novos registros de médicos no país mais do que dobrou nos últimos anos e bateu recorde em 2022, segundo dados do próprio CFM. No ano passado, 39.551 profissionais entraram no mercado de trabalho. em 2010, tinham sido 18.781. Isso se mostra particularmente expressivo a partir de 2020, quando, pela primeira vez, o total de profissionais ingressantes no mercado ficou acima de 30 mil. Isso coincide com a graduação dos alunos das dezenas de novos cursos abertos a partir de 2013, com a criação do programa Mais Médicos, que expandiu os vagas de Medicina no País. Bom ou ruim para a sociedade? Cabe muita discussão e pretendo voltar a isso dentro em breve. Entrementes volto a texto publicado por mim há dois anos, levantando algumas questões sobre tal assunto. Acesse: https://veredasaude.com/2020/03/05/e-a-medicina-a-que-sera-que-se-destina-2/.
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‘Menas’ ideologia…
Leio no site Outra-Saúde (ver link abaixo), geralmente sério e bem informado ao tratar dos assuntos da nossa área, comentários do médico sanitarista e epidemiologista Heleno Corrêa Filho, a respeito da ADAPS, agência criada durante o último governo para tratar diretamente da questão da atenção básica à saúde no país, no bojo do programa Médicos pelo Brasil, que o bolsonarismo tentou, sem sucesso, lançar em substituição ao Mais Médicos, da era petista. Os comentários de Heleno são bem críticos e em se tratando do desgoverno que nos infelicitou por longo quatro anos, têm tudo para serem razoáveis. Mas é preciso não confundir alhos com bugalhos… O modelo das agências pode, sim, ser bem sucedido. Veja-se o caso da Anvisa, e até certo ponto da ANS, além de muitas outras fora da área da saúde. Agora, afirmar que tudo se trata de uma “invenção de Bolsonaro para expulsar os profissionais cubanos de saúde do país”; de “um puxadinho neoliberal na saúde”; da retirada da “função estatal do controle público e a possibilidade de que tal função seja acompanhada, como orçamento, metas, desempenho, objetivos, uma coisa clássica da economia neoliberal”; nada mais do que “um concorrente não declarado do ministério da Saúde na condução de políticas públicas do setor”. Eita! É preciso qualificar tal discussão! Desvesti-la um pouco de tal carga ideológica. É o que pretendo fazer em próxima comunicação, já que por hoje já temos a agenda cheia. Em tempo: acredito que o governo passado não legou praticamente nada (ou quase nada) de positivo para a saúde no país, para as políticas públicas em geral e para cultura cívica nacional, salvo ter despertado um movimento de rejeição a ele. Mas uma coisa é tentar analisar o que nos apresenta realidade, outra é rejeitar isso de forma preliminar e não discriminativa…
Se quer ver a entrevista de Heleno Corrêa Filho acesse: https://outraspalavras.net/outrasaude/um-puxadinho-neoliberal-na-saude-que-precisa-acabar/


Quero comentar sobre o item colocado pelo autor neste Blog “Mais? Do Mesmo?”
Acredito que aumentar o número de médicos no Brasil sem mudar o paradigma da formação médica e a lógica de atuação desses, não irá trazer nenhuma qualidade de vida e saúde para nossa população. Explico.
O ensino médico é centrado nas vias curativas-hospitalares, tipo quanto mais tecnologia, especialização e isolamento do médico das equipes multiprofissionais de saúde, melhor será sua formação. Equívoco total. A saúde acontece de fato em uma comunidade, em um país, quando se investe em medidas de promoção da saúde e preventivas de doenças. Prá isso, há que se investir em uma visão e prática médica que incluam esses componentes quer para preparar médicos para a atenção básica de saúde, em todos os cantos e recantos do país, quer também formar todos os jovens médicos, inclusive especialistas. Essa preparação entende a saúde da população como algo bem mais amplo, que inclui a humanização da relação médico-paciente, a integração interdisciplinar com as demais áreas da saúde, o desenvolvimento pessoal e filosófico do próprio médico, e o entendimento de que saúde seria como uma corrente a qual todos seus elos importam equanimamente. Se algum desses elos estiverem atrofiados ou avariados, a corrente se romperá e a saúde não acontecerá, mesmo que os demais elos sejam robustos.
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Obrigado minha amiga por mais esta contribuição – eu diria mesmo aperfeiçoamento – de minhas ideias. Este realmente o grande foco da questão: o ensino médico. Tenho escrito e refletido sobre isso e aproveito para lhe encaminhar um texto antigo que escrevi sobre tal tema, já se passaram 20 anos desde então. Algumas ideias principais estão colocadas nele, de forma talvez meio irreverente. Aqui vai… https://veredasaude.com/2013/10/17/phantasilia-e-belgladesh/ E obrigado pela força e pelo prestígio que você dá ao meu blog.
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