Quem ligar o rádio por esses dias certamente ouvirá no noticiário que uma novidade foi lançada em Brasília: a Carreta da Hanseníase. Em princípio poderia ser até algo razoável e fico imaginando se um dia poderíamos usufruir também de carretas como essa, dedicadas à hipertensão, ao diabetes, ao aleitamento materno, ao câncer de próstata e por aí vai. Aliás, em tempos não muito remotos já tivemos, aqui no DF, veículos de tal categoria dedicados às mulheres e às crianças. Quem se lembra? Pego também a imaginar a situação a que tal artefato se dedica: o cidadão ouve falar sobre a novidade no rádio e movido pela curiosidade natural do ser humano, depois de ir ao dicionário e verificar o significado da palavra que qualifica tal veículo, corre até o local onde o mesmo está estacionado para saber e ele seria mais alguém acometido por aquilo que um dia foi chamado de lepra. Sinceramente? Pensando bem, acho que não iria funcionar. Não só pelo estigma envolvido na questão, mas principalmente pelo fato de que este tipo de estratégia não encontra respaldo nas boas práticas de saúde pública. Quem sabe, no interior mais remoto da África e mesmo assim com abrangência maior do que o foco de uma única doença? Nunca em uma cidade como a nossa, que bem ou mal possui uma rede de serviços de saúde consolidada e difusa. Sim, meus amigos, porque há maneiras muito mais racionais, econômicas e eficazes de se fazer diagnóstico desta e de outras moléstias na população. Este Projeto Carreta me parece, realmente, apenas uma maneira canhestra de se tentar viabilizar um equipamento que já havia mostrado sua ineficácia quando aplicado à saúde das mulheres e outros grupos populacionais. Piada pronta: assim como o transporte de cargas nas ferrovias é muito mais funcional do que aquele realizado nas carretas rodoviárias, algo parecido ocorre também na saúde pública. Vamos a mais esclarecimentos.
Para começar (e terminar sem maiores delongas…) é bom esclarecer: ampliar o acesso da população aos serviços de saúde é algo valioso e está inteiramente respaldado pela legislação do SUS e seus complementos. Para tanto existe um conceito que deveria orientar a organização dos serviços de saúde, que é o da sua conformação em REDE. Para definir melhor o que é isso vamos a um autor referencial no Brasil: E. V. Mendes (ver link ao final). Diz ele:
Redes de atenção à saúde conformam-se socialmente através da interação de três elementos fundamentais: uma população, um framework (estrutura) operacional e um sistema lógico. O primeiro elemento constitutivo das redes de atenção à saúde é uma população definida, estabelecida, ou não, em territórios sanitários. O segundo elemento constitutivo das redes é o de uma estrutura operacional que se compõe de pontos de atenção à saúde, ou seja, uma unidade de produção específica determinada por uma função de produção singular (por exemplo, uma unidade ambulatorial especializada, uma unidade de atenção domiciliar, uma unidade de atenção paliativa etc); acompanhada de um centro de comunicação exercitado pela atenção primária à saúde e também de sistemas de apoio que são transversais a todas as redes de atenção à saúde (apoio diagnóstico e terapêutico e assistência farmacêutica). Além disso, sistemas logísticos de identificação dos usuários, prontuários únicos, regulação da atenção e sistemas de transportes sanitários. Por último, sistemas de governança e de lógica de funcionamento, expressos por um modelo de atenção à saúde singular.
Se a palavra transporte entra aí, é para designar ambulâncias e vans para transportar pacientes em determinadas situações, além de furgões ou caminhões de transporte de insumos e equipamentos etc. Jamais tais carretas dedicadas ao atendimento direto de pacientes, muito menos a portadores de patologias específicas.
Sem querer cometer nenhuma injustiça contra as autoridades de saúde na cidade, certamente imbuídas das melhores intenções, fico pensando: será que verdadeira e última tarefa das tais carretas não seria a de simplesmente cativar eleitores?
A cereja do bolo de tal comunicado é trazida pelo seu arremate, nos seguintes termos: Até sexta-feira (19/5), das 9h às 17h, a Carreta da Hanseníase estará no estacionamento da Administração Regional de Brazlândia para fazer testes e tirar dúvidas de quem suspeita ter a doença. De fato, é demasiado ruído por nenhum resultado, como já dizia Shakespeare. Ou, melhor ainda, como disse Cazuza: isso é um verdadeiro museu de grandes novidades.
E vamos combinar: ações consequentes em saúde pública dependem fundamentalmente da existência de uma rede de serviços, na qual uma estrutura operacional de pontos de atenção, ou seja, unidades de produção de determinadas funções de produção estão presentes. Sistemas móveis, ainda mais e permanência temporária, pouco ou nada contribuem para a saúde da população, a não ser em situações muito específicas, como em imunizações ou campanhas educativas, por exemplo. Diagnóstico de hanseníase e de outras doenças são coisas que só obtêm alcance se forem realizadas em estruturas de tal tipo.
Só mais um comentário: que não percamos de vez o bom costume de ouvir o que diz a ciência. Na pandemia já se perdeu muito por não fazê-lo. A lição não teria sido o bastante para nossas autoridades?
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A ESTRUTURA FUNCIONAL (vá lá o termo) DOS SERVIÇOS DE SAÚDE É UM PONTO ESSENCIAL PARA O SEU PLENO FUNCIONAMENTO. E AS PESSOAS QUE COMPREENDEM ISSO SÃO FUNDAMENTAIS. MUITO BOM VC TER TRAZIDO ESSE TEMA PARA DISCUSSÃO. VALEU, MEU CARO FLÁVIO. abs
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Bom dia Flávio!
Uma carreta é um veiculo, mesmo que tracionada por um cavalo mecânico, de custo muito elevado, seja de investimento e de manutenção, mais as taxas de licenciamento e eventuais multas, além do risco de acidentes, quando atende fica parado, imóvel e quando se desloca não pode atender! Essa crítica me ocorre desde os famigerados odontomóveis, só atendiam quando parados, mas custavam o preço do um veículo, muito mais caro o continente do que o conteúdo. Carretas são graneleiros, mas Saúde não é uma comódite!
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