Um diálogo sobre a formação médica na atualidade

Há algumas semanas apresentei aqui, junto com Henriqueta Camarotti, algumas reflexões sobre o que seria uma boa formação médica (ver link:  https://saudenodf.com.br/2023/04/04/3809/). Na ocasião, solicitei a alguns colegas com experiência docente em saúde, que manifestassem suas opiniões sobre as propostas apresentadas. Alguns responderam e trago aqui uma síntese de suas generosas participações, sob a forma de um diálogo, que na verdade não aconteceu em tempo real. Assim, vou identifica-los: LC é Luiz Augusto Casulari, da ESCS de Brasília; CL é Carmem Lavras, da PUC de Campinas; AR é Armando Raggio, da Fiocruz de Brasília, somando a isso a participação da própria Henriqueta, do Núcleo de Ciência, Arte, Filosofia e Espiritualidade do CEAM/UnB.

UM POUCO DAS VIVÊNCIAS DE CADA UM, PARA COMEÇAR.   

LUIZ CASULARI: vou me alongar com a minha experiência desde quando iniciei o curso de medicina em 1970. muitas das suas ideias são respaldadas com a minha experiência. Serão 50 anos de formado no próximo ano. No primeiro ano do curso tive a maior decepção: não via objetivos nos estudos de anatomia com enorme tempo com dissecções de cadáveres, decorar os nomes das estruturas, na hora da prova com uma pegadinha com o pedido do nome de uma artéria anômala. Detestei também histologia. Fui reprovado nas duas disciplinas. Para quem entrou na faculdade com a vontade de aprender tirando notas máximas, ser reprovado foi desanimador. Um monitor de minha Faculdade em Juiz de Fora ensinava anatomia inserindo a fisiologia. Lembro que mostrou o rim com o seu funcionamento. Eu, ali maravilhado: então é para isso que existem essas estruturas? Com isso voltou o meu entusiasmo pela medicina. Eu estudava para ter o prazer de aprender. Raramente usava o caderninho. Gostava de estudar em livros da biblioteca. Cheguei em Brasília para fazer residência no Hospital de Base. Como morava no 12 andar, à noite, muitas vezes, descia para o andar da clínica médica para fazer anamnese e exame físico. Estudava nos livros que tinha no quarto, voltava para melhorar a história, fazia minhas hipóteses diagnósticas e os exames que deveriam ser solicitados. Os médicos que me orientavam eram em pequeno número, mas bem formadas, inclusive eticamente. Isso fez muita diferença no meu aprendizado. Parece óbvio, mas, dentro das atuais condições das faculdades, não existe corpo docente qualificado para tantas faculdades. Em 1988 fui ser professor requisitado de endocrinologia na UnB. O sistema era de blocos: na endocrinologia o aluno aprendia simultaneamente anatomia, fisiologia e embriologia daquela glândula. Pensei comigo: era isso que deveriam fazer no curso de Juiz de Fora. Esse sistema funcionou desde a fundação da faculdade de medicina da UnB. Também, na época existia na UnB a Faculdade de Ciências da Saúde, que englobava a medicina, educação física, odontologia e enfermagem. Dentro daquilo que você preconiza como interação entre as várias profissões. Tínhamos alunos na mesma sala desses três cursos. Funcionava muito bem. Contudo, veio a separação traumática com a medicina. Não vou entrar em detalhes porque isso aconteceu por fugir do objetivo desse meu texto. Contudo, acho que se perdeu muito na integração das profissões da área médica como você preconiza. Um atraso, vamos dizer assim.

ARMANDO RAGGIO: Suas propostas revisitam nossa inquietação desde quando compartilhávamos a gestão municipal de saúde em Uberlândia, em Curitiba, em São José dos Pinhais ou Sorocaba e mais recentemente aqui, em Brasília. Ouso dizer que mais egressos de Medicina vão mais atribuir doença a seus consulentes do que mitigar o sofrimento que os traz à consulta. Medicina pode fazer bem à saúde, mas fomos formados para tratar de doenças  e não  de pessoas e assim, quando  estamos praticando como médicos, dando consultas, como gestores e/ou como professores – estar é diferente de ser – atribuÍmos diagnósticos a partir dos quais seguimos protocolos, adoençando ainda mais as pessoas, prorrogando o sofrimento, mal ouvindo, mal examinando, pedindo exames demais, além dos necessários.

HENRIQUETA CAMAROTTI: indago: por que seria tão difícil mudar comportamentos, seja de um grupo social ou de pessoas? Me lembro aqui de uma conversa recente com Luiz Carlos Prata, um médico e ex-Secretário de Saúde de uma cidade de cerca de 50 mil habitantes (Manhuaçu-MG). A população de tal cidade, ameaçada pela dengue, não conseguia reconhecer e aceitar as práticas essenciais para impedir a multiplicação do mosquito. Seria só por causa da pobreza? Ou mais do que isso, um problema do conjunto da sociedade, inclusive dos médicos, que não acreditavam verdadeiramente na prevenção de doenças e nas práticas de promoção de saúde? Luiz não teve dúvidas, atacou o problema por todos os lados. Convocou a população através de uma campanha de esclarecimento maciço, mas foi também atrás de cada um dos outros atores sociais influentes na cidade, ou seja, médicos, promotores, policiais, juízes, dirigentes comerciais e de entidades sociais, envolvendo e responsabilizando todos na luta contra a doença, que teve como ponto de partida uma ampla coleta de lixo e detritos no ribeirão que banha a cidade. E a partir daí a história da dengue foi outra naquela cidade. E pego outro exemplo: por que seria que os pediatras não investem na orientação alimentar saudável das crianças que atendem, para reduzir as inflamações intestinais, as diarreias, bronquites de repetição e as alergias? Será que eles realmente não “acreditam” nisso ou simplesmente se recusam a mudar o paradigma de sua prática? Será que os médicos não se sentiriam parte da promoção de hábitos saudáveis, preferindo se concentrar em passar antibióticos e paliativos, sem entrar fundo na causalidade? Isso tem a ver com o ensino médico, sem dúvida, que deveria ter resposta para a seguinte pergunta: como mudar verdadeiramente tais visões omissas ou preconceituosas dos futuros médicos?

CASULARI, FALE UM POUCO DE SUA EXPERIÊNCIA DOCENTE EM UMA FACULDADE QUE DE FATO INVESTIU E AINDA INVESTE EM MODELO AVANÇADO DE PEDAGOGIA MÉDICA, QUE É A ESCS DE BRASÍLIA.

CASULARI: Fui da primeira turma de professores da ESCS. Tivemos um treinamento com professores de Marilia e Maringá. Foi muito doloroso porque tínhamos de reformular todas as nossas convicções de ensino baseado em aulas com os alunos sendo passivos. Foi uma experiência muito boa e exitosa para mim. Acho que é o modelo que atende o seu, e o meu, modelo de aprendizado. Vou estender um pouco para mostrar que o sistema da faculdade da ESCS atende muito das suas sugestões. Os alunos aprendem a estudar, a procurarem informações e depois compartilharem com os colegas. É o que fazemos a vida toda de médico. Um parêntese: fazia isso durante a minha residência médica no Hospital de Base: tinha o problema, ia estudar e depois discutia as minhas conclusões com o médico assistente e os colegas da residência.

Participei da feitura dos casos para que os estudantes tivessem os estudos para atingir os objetivos em anatomia, fisiologia, patologia, farmacologia, etc. Então, o aluno somente estuda anatomia para entender o que acontece com o paciente. Muito diferente na minha época. O estudo do problema é feito individual: cada um estuda por conta própria e depois se reúnem para cada um apresentar o resultado do seu estudo. O professor fica observando e somente interfere quando fogem dos objetivos de aprendizado. As avalições são feitas no final de cada módulo. Os alunos são aprovados ou não. Não existe nota. O aluno tem que provar que aproveitou bem o módulo. Se fossemos comparar com as notas das provas: todos têm que tirar 10. Uma ideia que passaram para mim muito interessante. Um médico tem que ser como um piloto de avião: taxiar, ir para a pista, elevar o avião no ar, fazer o avião voar durante todo o percurso e pousar. Se não aprende tudo isso, o avião cai e todos morrem. Como eles são obrigados a estudar todos os dias, não há a situação de estudar somente para a prova. Situação de estresse e sem sentido de ter nota para passar. Também existe uma avaliação anual para todas as turmas. A prova é a mesma para todos os alunos do primeiro até o sexto ano. Então, com isso, o aluno avalia o seu progresso durante o curso. A avaliação é liberada somente para o aluno. Ele que faz o seu controle de aprendizado. Um parêntese: o MEC deveria fazer isso durante os cursos de medicina e, se não alcançarem um patamar aceitável, o curso seria fechado. Depois de formados, a faculdade não tem nenhuma responsabilidade sobre a qualidade do seu formado, mas o dinheiro já está em tasca. No sistema de aprendizado na ESCS o aluno aprende a procurar a informação. Pode ser em livros, revistas e na internet. Depois que pesquisou, livremente, por conta, participa da reunião com outros 8 a 10 alunos e um tutor. Então, o resultado do modo da sua pesquisa vai ser comparado com os dos outros alunos. Isso é muito engrandecedor.

EXISTE TAMBÉM A QUESTÃO DA FORMAÇÃO HUMANÍSTICA…

ARMANDO: Penso que o corpo fala, como dizia Pierre Weil, e o corpo do sistema fala de seu sofrimento, do sofrimento dos seus consulentes e do nosso sofrimento. Assim, estudantes de todas as profissões, nossos alunos, muito poucos têm vontade, disposição para se expor a tanto sofrimento além do mínimo necessário para se suprir dos créditos necessários pra se graduarem. Uma vez graduandos, ainda no internato, cumprem todas as etapas, mas se dedicam mesmo a treinar para as seleções com vistas à especialização  apenas um digito por cento, – triste que seja essa proporção de tantos que se formam – se voltam para as bases do sistema , buscando especialização em MFC, Saúde Coletiva, e muito poucos Medicina Preventiva e Social.

HENRIQUETA: Penso que outro problema fundamental da formação médica, que tem consequências importantes no processo de atenção à saúde é a baixa capacidade de escuta, em relação aos pacientes, à sociedade, aos outros profissionais. Neste aspecto, pude ajudar a disseminar com a tecnologia da Terapia Comunitária Integrativa (TCI), com suas rodas ou grupos de escuta, que representam meios eficientes de abordagem comunitária, capaz de desenvolver nas pessoas sentimentos de fazerem parte ativa em um processo de superação de dores, angústias e carências diversas. Acredito que uma coisa assim teria também implicações na relação médico-paciente, tornando estes últimos mais bem informados e participativos, com utilização mais eficaz e consciente de mecanismos de ajuda mútua e autocura. Grupos de fala, de escuta e de construção de redes solidárias, de trocas e ajuda mútua, no meu entendimento, fazem parte do que o futuro próximo imporá à profissão. Em suma, trata-se de promover grupos de diálogo e reflexões voltados para o autoconhecimento e crescimento, seja para pacientes ou profissionais do cuidado, de forma a enfatizar o trabalho em equipe multi e transdisciplinar, investindo no respeito interprofissional, nas práticas horizontalizadas e complementares entre as diversas profissões da saúde. Há mais questões que não querem calar, por exemplo: será que o estudante de medicina de fato amadurece como pessoa e em termos de visão de mundo ao longo dos seis anos de curso? Será que este conseguiria perceber além do seu umbigo, mesmo tendo participado de tantas situações críticas nos atendimentos? Ele seria capaz de perceber o que significam os contextos de sofrimento trazidos pelos pacientes? Por exemplo, no caso de uma criança que chega ao setor de queimados por ter ficado em casa sendo “cuidada” por irmão de seis anos, será que a equipe discutiria sobre as causas que subjazem no sofrimento das pessoas que acorrem aos serviços? Existe, assim uma Arte de Cuidar, que a meu ver não está inserida como tema em nenhum momento na formação do médico. Haveria muitas formas de trabalhar isso, não necessariamente como uma disciplina isolada, mas como conteúdos “transversais” que ao longo de todo o processo de formação, como atividades complementares ou inseridas diretamente nas disciplinas curriculares. Em suma, penso que deveria haver mecanismos para transformar os futuros médicos em pessoas mais humanizadas, na mais ampla acepção desta palavra.

VAMOS COMENTAR ALGO SOBRE AS PROPOSTAS APRESENTADAS POR NÓS NO POST ANTERIOR…

CASULARI: Concordo plenamente. Todas as faculdades de Brasília têm a lógica do lucro, cobram muito caro e oferecem aos alunos a ilusão de que terão sucesso monetário como retorno ao seu investimento. A exceção da faculdade da ESCS, que tem um perfil SUS, devido ao seu método de ensino e ser da SES-DF. O médico é formado generalista. Destaque-se a questão do enfrentamento de um panorama mutante: um aspecto interessante porque o médico nunca para de estudar. Ele tem de gostar e saber estudar. Com o avanço das pesquisas médicas, ocorre mudanças importantes na prática médica. Os medicamentos são cada vez mais aperfeiçoados para termos resultados melhores no controle do paciente. Contudo, precisamos criar mecanismos críticos para não sermos iludidos com a propaganda da indústria. Uma nova pedagogia também conta: o ensino na ESCS é baseado em ensinar o estudante a estudar. Somente existem aulas para aprofundar o conhecimento com algum especialista. Mas é uma atividade pouco frequente. Muitas das suas sugestões estão contempladas: ciclo básico e profissional juntos, o ensino integrado em blocos, o foco em resolver problemas. Também não há como fugir dos avanços da tecnologia. A telemedicina é uma delas. Publiquei recentemente um artigo a respeito disso: Luciana Ansaneli Naves, Isabella Naves Rosa, Thomas Alves de Souza Lima, Lidiana Bandeira de Santana, Lucas Faria de Castroand Luiz Augusto Casulari. Implementation and monitoring of telemedicine model in Acromegalic outpatients in a low-income country during COVID-19 pandemic. Telemedicine and e-Health. TMJ-2020-0579-ver9-Naves_3P3d. 16/04/2021. Doi 10.1089/tmj.2020.0579.

ARMANDO: Para mudar a formação é preciso concluir a Reforma da Saúde, retomando a sua proposta a partir  as estruturas e seu funcionamento nos lugares mais remotos ,mais desatendidos, mais esquecidos, para cuidar das pessoas no seu território e de forma intersetorial,  conscientes de que atuar sobre determinantes e condicionantes de saúde, gera muito mais saúde do que a reparação do mal causado pela ausência  do Estado. O desafio é que a cada novo governo há mais e mais demanda pela reparação do mal já causado, há que ter muita dedicação e habilidade política e administrativa pra reparar o não  evitado e evitar o ainda não causado. Tenho uma lista de propostas, também (1°) Desformar os formadores, quanto seja possível. (2°) Exigir Bacharelado em Saúde para ingresso em Medicina; (3°) Aprimorar os bacharelados multiprofissionais existentes, para e dar oportunidade de emprego de egressos do Bacharelado no Sistema de Saúde. (5°) Oferecer a graduação específica em qualquer das 15 profissões consideradas de saúde dentro da estrutura de serviços, nos moldes de residência, que hoje serve apenas para a especialização. Tudo isso de acordo com a crítica atualizada por vocês e com as recomendações pedagógicas revisitadas. Estamos há décadas patinando pra entrar na Era do Cuidado! QUANDO PARA TER DIREITO A SAÚDE NÃO SEJA PRECISO ADOECER!

CARMEM LAVRAS: Trata-se de um assunto sobre o qual tenho me debruçado nos últimos tempos, até em função de testemunhar uma enorme expansão de cursos médicos, particularmente no nosso estado e em nossa região. Vocês apontam questões fundamentais em torno das quais espero, um dia, poder conversar, pessoalmente, de forma mais objetiva. Concordando com a análise que vocês apresentam, só explícito duas preocupações: a primeira, seria como compatibilizar a formação de profissionais aptos a “tratar de gente”, com a também necessária formação de profissionais com domínio de todo um aparato científico e tecnológico cada vez mais especializado. Nesse ponto, considerei pertinentes as colocações do Armando (devemos discuti-las!). A segunda, diz respeito a uma grande preocupação que tenho com as mudanças curriculares, muitas das quais intencionadas, mas com pouco investimento na formação dos docentes e na articulação com a rede SUS. O que, a meu ver, tem banalizado essas iniciativas. Só para você ter ideia, num raio aproximado de 50 km aqui de Campinas temos hoje mais de dez cursos de medicina!

HENRIQUETA: Finalizo com um tema que me é particularmente caro é o das residências multiprofissionais, tendo eu coordenado um projeto como este na SES-DF há alguns anos atrás. Isso permitiria diluir um pouco o “saber” e o “poder” dos médicos sobre as decisões e encaminhamentos associados ao cuidado à saúde, incluindo no processo de atenção não só médicos e enfermeiros, mas também assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais e outros profissionais, através de uma parceria verdadeira e horizontalizada.

 ***

E para terminar, um texto meu, de três anos atrás, sobre um fato verdadeiramente surpreendente, com foco na formação médica, acontecido aqui nesta cidade de Brasília…

E a Medicina, a que será que se destina?

Querido Lucas Carvalho, leio nos jornais que você, com apenas 17 anos conseguiu vaga no curso de medicina na UnB. É um feito e tanto. Parabéns!  E seu merecimento fica ainda maior quando vejo que você é filho de uma diarista e de um entregador de bebidas, que é morador de uma remota periferia do DF e que desde a infância já se virava vendendo brigadeiros na escola. E mais: sonhava ser músico e não deixou por menos, hoje é saxofonista profissional! É muita conquista para uma pessoa só. Parabéns de novo! Nem eu nem a maioria das pessoas conhece, de perto, as intempéries e os acidentes de percurso que você deve ter enfrentado para chegar onde está. Então, você quer ser médico… Sem dúvida, é uma boa escolha. Mas talvez eu, do alto dos meus 71 anos e quase 50 de formado nesta profissão, possa lhe trazer alguma informação que você talvez ainda não tenha recebido ou percebido por si só. Ou talvez já o tenha… De toda forma, me desculpe se repito o que você já sabe e chovo no molhado.

Minhas reflexões vêm de longa data e ficam mais pulsantes quando vejo aqueles garotos nos semáforos, pintados de todas as cores, em trajes sujos, pedindo uma contribuição para o chope grupal, pelo momentoso fato de terem passado no vestibular de medicina. Não tanto por razões moralistas, do tipo “afinal de contas não ficam bem tais atitudes em futuros médicos”. A minha questão é outra: a preocupação com as ilusões de que aqueles jovens – você agora entre eles – se alimentam e, de quebra, a classe média e média-alta a que pertencem (neste caso, exceção feita a você…). Ilusões, aliás, compartilhadas por boa parte da sociedade.

A primeira dessas miragens deriva do fato de já termos, aparentemente, médicos demais. Aqui no DF, inclusive, tais profissionais existem em proporções cubanas ou israelenses, que são padrões mundiais em tal quesito. Mas formar muitos médicos é apenas um detalhe, pois é preciso saber onde eles estarão, de fato, na prática. Aqui no DF, por exemplo, estatisticamente eles são estão em excesso, mas quantas unidades da periferia, principalmente, têm suas vagas não preenchidas? Como você pode perceber, “formar” é uma coisa, “atender necessidades da população” é bem outra.

Mas isso acontece em quase toda parte no Brasil. E nem resta mais o consolo daquela palavra de ordem de décadas passadas – a necessidade da interiorização da medicina. Com o advento do SUS e a decorrente expansão dos serviços de saúde nos municípios, mesmo pequenos, graças à política de descentralização (sim, há coisas bem-sucedidas na saúde em nosso país), menos de 10% dos municípios brasileiros permanecem sem médicos. Alguns deles se situam a menos de 100 km da Capital Federal, acredita? Mas da mesma forma que não há médicos ali, não há enfermeiros, dentistas, engenheiros, agências de banco, internet, Uber e Netflix. Enfim, tudo que se associa à vida civilizada e inserida no mundo do consumo e do acesso à informação.

Bem que se tenta, no Brasil, promover a ida de profissionais de saúde para lugares assim. O Programa Mais Médicos foi, sem dúvida, um alento. Bem-sucedido, embora de sustentabilidade duvidosa. Até que vieram esses caras que acreditam que “ideologia” é algo que só existe na cabeça dos outros, daqueles que eles veem como inimigos, e disseram que não era nada disso. Expulsaram os cubanos e quem ficou no lugar deles? Muito  poucos, até agora. Boas intenções, ilusões sem apoio na realidade, falações, tramas conspiratórias e papelório não preenchem vagas de médicos, esta é a verdade. E os médicos formados no Brasil, infelizmente (e até quando?), são mais parte do problema do que da solução para tanto.

E ainda falando em ilusões, acho que você deve ir se preparando para o modo como receberá sua formação profissional. Aqui fala alguém que militou durante mais de 30 anos no ensino médico, associando sua prática docente à gestão de serviços públicos de saúde. Uma pergunta que tal vivência me trouxe e que continua pulsando é: esta turma está sendo formada para qual sistema de saúde? Para quais tipos de necessidades populacionais? Para o que demanda a realidade da saúde no Brasil certamente não é.

Resulta disso, Lucas, é que os médicos, em sua maioria, são preparados para agir e pensar como especialistas, na melhor das hipóteses como especialistas em partes do corpo humano, abstraindo-se de uma totalidade ou dos fatores que o rodeiam, o ambiente ou o modo de vida, por exemplo. Na pior situação, como operadores de tecnologias voltadas para determinado órgão ou sistema, quando não apenas para moléculas ou outras partículas que compõem a máquina humana. E acima de tudo, praticando um enfoque exclusivo sobre a doença – e não sobre a saúde – de cada indivíduo que lhes consegue acessar, não das pessoas em geral. Assim, o médico, que deveria ser um real profissional de saúde, se transforma em mero profissional da doença.

Para não me delongar muito, diria ainda a você que a saúde representa na verdade o produto de quatro condições fundamentais: a biologia da pessoa; o ambiente em que ela vive; os estilos de vida que assume e a oferta de serviços de saúde a que está exposta. Um bom curso de medicina teria, por obrigação, que se dedicar a estes quatro componentes da saúde. Mas o que acontece na realidade é bem diferente disso. Os cursos de medicina atuais possuem foco absoluto nos fatores biológicos, na patologia individual e no ambiente hospitalar. Nada de abordagens mais amplas, por exemplo, em comunidades, famílias, aspectos sociais e culturais, para não falar da promoção de verdadeira saúde e da prática nos serviços de saúde básicos e nos múltiplos ambientes onde a vida de fato acontece.

Mas não desanime! Ter consciência das coisas, mesmo que possamos fazer pouco para muda-las de imediato, já é um passo adiante. Sua história, ou a parte dela que conheci pelo Correio Braziliense, mostra que você é uma pessoa que tem têmpera para não se render a ilusões, ou embarcar na ilusão de que a tecnologia é tudo na carreira de um médico. Afinal, você não terá pais abonados para adquirir os sofisticados equipamentos de que grande parte dos alunos de medicina sonha em poder dispor para ganhar a vida. Neste quesito, você terá mais dificuldades do que aqueles, mas em compensação, poderá fazer pela sua vida e pela vida das pessoas que lhe procurarem algo muito maior, uma realização verdadeira, na qual a prática de medicina faz parte de um todo, que tem a ver com a conquista da verdadeira cidadania.

Tenho pena, Lucas, de não ser mais professor da UnB para assistir sua entrada naquele ambiente elitizado e ter você como aluno. Sua simples presença ali já será uma gloriosa lição para seus colegas e seus professores. Que você não abra mão e nem deixe pelos corredores da Universidade a esplêndida bagagem de que é portador.

Muito sucesso, Lucas. Você merece!

3 respostas para “Um diálogo sobre a formação médica na atualidade”

  1. Flavio, muito interessante este diálogo sobre formação médica. Folgo em saber que colegas tão admiráveis estão buscando referências humanistas no âmbito acadêmico mas que, com certeza, reverbererá no cuidado com a população.

    Convoco aqui neste veículo informativo e formativo, que versa sobre saúde em várias dimensões, outros profissionais que participam da assistência à saúde. E faço o convite: Que tal ampliarmos este diálogo, incluindo temas comuns a nossa prática ?

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  2. Que diálogo fantástico !!!
    Investir nas referências humanistas no mundo acadêmico e um grande salto para uma melhor assistência à saúde da comunidade.
    Parabéns!!!

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  3. Precisamos de mudar o paradigma, e estudar saúde em vez da doença. Ainda não temos disciplinas de abordagem o ser humano em suas reais dimensões. Uma disciplina interativa,

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