Vitor Machado: in memoriam

Como disse Brecht, há homens imprescindíveis. Perdemos um desses na última semana: Vitor Machado, meu amigo de muitos anos . Registrei meus sucessivos encontros com ele em uma passagem de meu livro de memórias Vaga, lembrança e trago isso aqui de volta, para homenagear este cara fundamental em minha vida e na vida de muita gente mais. Eu o conheci em 1982, quando eu era professor na Universidade Federal de Uberlândia. Ali eu fazia parte de um projeto de extensão universitária e naquele momento era membro de uma banca de seleção de coordenador de uma das Unidades de Saúde integradas ao mesmo. Os candidatos eram, de maneira geral, revestidos da maior previsibilidade: médicos já atuantes na rede que desejavam, mais do que uma posição de poder, o adicional de salário que tal função lhes conferiria. E foi então que surgiu aquele sujeito que viera de fora, um pouco sisudo, mas muito bem articulado. Uma daquelas pessoas que te olham de frente – e ele o fazia com leveza e confiabilidade, seus olhos cinza-esverdeados pareciam demonstrar isso. Foi aprovado para a única vaga existente e pouco depois conseguiu outra função, para o que teve que reduzir sua carga horária na tal unidade. Assim, honra-me muito dizê-lo, ele foi preencher a vaga que eu havia deixado na Diretoria Regional de Saúde, por ter sido, naquele momento, nomeado Secretário Municipal de Saúde.

Vitor Machado, mineiro de Araguari, médico formado em Brasília – ecce homo. Vivíamos ali em Uberlândia, naqueles anos agitados de começo de construção do novo sistema de saúde no Brasil, algumas aventuras e desventuras, que vale a pena transmitir aos de hoje, que acham que vivemos no Brasil atual o pior em matéria de política. Fiquem tranquilos meus amigos que alguma coisa mudou para melhor! Pelo menos antes das eras Dilma, Temer e, principalmente, do ignóbil Bolsonaro. Mas aconteceu, na ocasião, que as lideranças políticas do PMDB na cidade, partido do meu prefeito Zaire Rezende, e que estava com o mando de jogo na ocasião, resolveram implicar com Vitor, alegando ser ele ligado ao PT. Isso até podia ser – e era – verdade, mas o que movia aqueles políticos de aldeia era o fato de que a nomeação que tradicionalmente era deles lhes escapara das mãos. E o autor de tal façanha foi Ricardo de Freitas Scotti, técnico de carreira da SES-MG, naquele momento Diretor Regional de Saúde. Scotti teve que se explicar penosamente aos tais políticos e não muito tempo depois entregou, não sua cabeça, já que era funcionário de carreira, mas o cargo em Uberlândia.

Vitor estava vindo de fora, do interior de Goiás, onde trabalhava com um grupo médico ligado à Igreja Católica, sob a proteção de D. Tomaz Balduíno. Numa atitude natural, decorrente da posição militante do mentor do grupo, bem como da maioria de seus membros, aceitou o sacrifício de se candidatar a prefeito da pequena Itapuranga. Não ganhou e ainda foi perseguido. Estava em Uberlândia praticamente como um exilado, com a vantagem de estar próximo da família e ter conseguido dois empregos. Depois da estrada em Uberlândia ele retornou a Goiás, desta vez com destino a Ceres, ainda integrado no mesmo grupo balduinista. 

No início do século XXI nos reencontramos, eu na UnB e ele em Ceres. Já nas primeiras conversas levantei com ele a possibilidade de que nossos alunos do sexto ano de medicina fossem estagiar na cidade goiana. Daí à ação transcorreram poucos meses. Sucesso absoluto, com Vitor na liderança, muito bem acompanhado por pessoas notáveis, tais como o casal Evando Queiroz e Esther Albuquerque, a médica Mila Cintra e outros. O apoio da UnB sempre foi mais simbólico do que prático, de maneira que os elogios devem ir, de fato e de direito, para este grupo de abnegados. Vitor persistiu no acompanhamento desses alunos por quase duas décadas, sendo muito querido por eles. Em 2014 foi um dos homenageados principais dos formandos, fato inédito na história do curso de Medicina, no qual a regra sempre foi a de homenagear professores do quadro.

Voltando a mim, devo dizer que essa história de Ceres me é muito marcante e me abastece, mesmo passados tantos anos, a autoestima. Aliás, posso dizer que foi a melhor coisa – quase a única! – em que logrei obter real sucesso nos oito anos que passei como docente nas faculdades de Ciências da Saúde e Medicina da UnB.

2 respostas para “Vitor Machado: in memoriam”

  1. Professor, muito importante este resgate histórico, afinal foram muitos anos que Dr Vitor trabalhou voluntariamente na UnB. Eu o conheci como docente, e essa abnegação me intrigava um tanto. Um dia perguntei a ele porque de tudo isso, e ele me respondeu que a UnB tinha dado a ele tudo na vida (pela medicina), fiquei emocionada e pensativa. Sem saber, ele me ajudou a voltar ser médica.

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  2. Dr Vitor foi um homem que veio com um propósito de transformar vidas. As vidas de todos que os cercavam, e eu falo em nome dos alunos dele, como professor, ele era e sempre será absurdamente diferenciado, humano e sensível. Só gratidão por todos os ensinamentos.

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