Escuta cidadã qualificada versus “controle” social

Com todo respeito, quando leio as leis e regulamentos existentes sobre a participação da sociedade nas políticas públicas no Brasil, especialmente na saúde, o que vejo são fórmulas burocráticas. Podem até ser bem intencionadas, mas seu caráter pesadamente formal e burocrático as torna pouco funcionais. Refiro-me diretamente, por exemplo, ao que nos oferece a Lei Orgânica do SUS, na qual se fala em paridade e poder deliberativo, além de conselhos formados por representações institucionais formais, mas não necessariamente representativas do conjunto dos interesses da sociedade. Não se preocupem, não me tornei, de repente, um herege em relação ao nosso sistema de saúde (embora pense que uma boa dose de crítica possa fortalecê-lo mais do que destrui-lo). É que essas coisas já estão superadas, se é que foram cogitadas, em realidades mais avançadas e dinâmicas do que a brasileira, em termos de democratização do Estado. Em tais questões, para mim seria o caso de nos esforçarmos em deixar de “fazer mais do mesmo”, em troca de inovar e incrementar métodos e conteúdos que valorizariam uma das mais importantes fatores introduzidos na administração pública contemporânea, quais sejam os mecanismos de instrumento de participação social. Vamos então, ao invés de “controle social” e outras alegorias congêneres, tão ao gosto da militância do SUS, pensar em Processos de Ausculta Cidadã Qualificada, nos quais a escolha dos cidadãos deve partir de requisitos menos formais, tendo como foco o interesse direto dos mesmos, seu grau de informação ou até mesmo sua representatividade em termos estatísticos.

Informações mais contemporâneas, baseadas na literatura e em evidências internacionais, indicam e reforçam que há evidências de que o homem comum e profano, o famoso leigo, também tem condições de opinar em questões científicas. Isso se aplica a qualquer cidadão comum, não apenas a representantes institucionais formais. Se vale para ciência, energia e ambiente, como ali se propõe, há de valer também para a saúde. Isso está resumido em um artigo de Ricardo Abramovay, pesquisador da USP, que os leitores poderão acessar no link ao final.

É claro que tal raciocínio deve ser feito com relativa cautela, para não cairmos na armadilha de que meras opiniões e pontos de vista pessoais não se transformem em um “eu-achismo” rudimentar. Algo assim, ainda mais quando ciência e tecnologia estão em jogo, não seria só imprudente, mas também bastante perigoso. E o próprio Abramovay adverte: “Tomar decisões com base na opinião imediata das pessoas é um gigantesco risco para a própria estabilidade das relações políticas em qualquer sociedade. Esta é uma das razões que explica a existência não só da Constituição, mas de outros órgãos do Estado que não dependem do humor instantâneo da opinião pública. […] Ao mesmo tempo, limitar a escuta social ao que dizem as urnas a cada dois anos tampouco ajuda no enfrentamento de nossos maiores desafios, e faz com que só elites especializadas participem das decisões, ainda mais quando esses desafios envolvem ciência e tecnologia”. E eu acrescento: tal assertiva vale claramente também para a saúde, na qual, afinal, estão presentes questões que dependem essencialmente de ciência, mas que envolvem diretamente o dia a dia das pessoas comuns.

Artigo publicado na revista Science (ver link), uma das mais prestigiadas do mundo, trata exatamente da “consulta cidadã” sobre nada menos do que o genoma humano, mostrando bons resultados de tal processo. Aliás, já existe vasta experiência com tais técnicas de ausculta aos cidadãos comuns em debates científicos, que já se contam às centenas, segundo trabalho recente da OCDE (ver link). Como exemplos, a França realizou recentemente uma “Convenção Cidadã para o Clima” com 149 propostas práticas de políticas públicas (link); o UK realizou um processo semelhante e nos EUA foi formada, em 2010, uma rede de Avaliação por Especialistas e Cidadãos sobre Ciência e Tecnologia (link).

Existem diversas técnicas para esta escuta qualificada, com foco em questões políticas diversas. A grande surpresa é que tais fóruns não possuem a característica burocrática que lhes é dada no Brasil, com representantes formais de entidades diversas (nem todas devidamente qualificadas, diga-se de passagem), mas sim (pasmem-se mais uma vez!), de cidadãos sorteados de forma aleatória. Estes depois de debaterem com intensidade vão, por sua vez, convocar os especialistas no tema para ajustar a proposta final. Os especialistas, então, respondem às perguntas dos leigos que assim adquirem informação mais qualificada. Na sequência os cidadãos comuns debatem entre si e se obrigam a ouvir aqueles que têm opiniões diferentes.

Sem dúvida, isso representa um fértil e pedagógico exercício de tolerância e apreensão da realidade, totalmente contrário à polarização irracional e desinformada, além de burocrática, coisas que atualmente, no Brasil, nos fazem padecer com seu enorme custo social e político.

Sobre esta polêmica escolha por sorteio, acredita-se que nela seria mais expressiva a diversidade social do que, por exemplo, nos parlamentos – e nos conselhos de saúde, por que não? – o que não significa que tal assembleia de cidadãos sorteados tenha o monopólio da representação política. Esta modalidade de seleção, favorece, além do mais, as chances de que aí estejam presentes os mais diferentes pontos de vista, configurando um caminho para avaliar diferentes lados de questões complexas. É assim que funcionam as pesquisas de opinião – as honestas, claro!

É claro que tudo isso produz impacto sobre os militantes do SUS, gente acostumada (para não dizer viciada) ao raciocínio baseado em certezas não comprovadas empiricamente e com uma crença avassaladora no exercício do mais do mesmo e do eu acho.

Voltando ao caso da Saúde no Brasil, penso que que a lei 8.142, dita “Orgânica do SUS”, que apregoa como atributos da participação em saúde a paridade e o poder deliberativo, já se esgotou. Tal poder não é verdadeiro e a tal da paridade muitas vezes é antidemocrática. Mas tem mais… A participação social em saúde, que os militantes chamam triunfalmente de “controle social” acumula, em seus quase trinta anos de história alguns equívocos que merecem, sem dúvida, um reboot. São eles: a) a autonomização, que levanta a expectativa de que nos conselhos de saúde residiria, de fato e de direito, um quarto poder; (b) a plenarização, que os quer transformar em fóruns de debates entre os diversos segmentos sociais, procurando minimizar a presença (e a atuação) do Estado; (c) a parlamentarização, ou seja, a formação de blocos ideológicos e partidários com tomadas de decisão por voto, não por consenso; (d) a profissionalização, que abre caminho para militantes full-time, excluindo outros menos devotados, embora também interessados; além de certa (e) auto-regulação, uma particularidade praticamente exclusiva da área da saúde.

Para terminar, seguem algumas ideias sobre tal assunto, já defendidas por mim em texto anterior (ver link):

  1. Inclusão de novos atores, espaços e instrumentos de participação, de modo a compor um quadro compatível com uma “nova gramática social”, ao mesmo tempo com ultrapassagem e superação do formalismo vigente.
  2. Ênfase especial conferida às tecnologias da informação, que compõem um cenário de ferramentas participativas diversas, de baixo custo e ampla assimilação contemporânea.
  3. Necessidade de valorização cada vez mais ampla do saber profano e da lógica do usuário face ao domínio habitual do conhecimento dos técnicos e dos especialistas.
  4. Ampliação do sentido da “deliberação”, ampliando-o e revitalizando-o, em termos do alcance coletivo do processo e também das possibilidades de debate e troca de argumentos, com foco na produção de decisões justas e corretas, com participação ativa e refletida dos atores sociais, mediante processos que não produzam apenas a unanimidade, mas sim a revelação da razão pública e seu atrelamento à vontade coletiva.
  5. Melhor compreensão do fenômeno da participação dentro de um panorama mutante, de reduzida estabilidade e imprevisibilidade das condições de vida e de trabalho da população, com seu cortejo de precariedade, fragmentação social, volatilidade das relações, segregação urbana, além de confrontos culturais diversos.
  6. Da mesma forma, apreensão, compreensão e sistematização dos diversos componentes pedagógicos e conscientizadores, bem como as possibilidades de trocas racionais e intersubjetivas de argumentos nos momentos deliberativos, característicos das boas práticas participativas, dentro de um contexto de ausculta qualificada e participação informada.
  7. Enfrentamento dos dilemas da crise da representação política, ou seja, o reconhecido distanciamento entre representantes e representados, com o advento de estratégias que promovam o aprimoramento de tal representatividade, a capilaridade dos efeitos deliberativos, bem como, a maior equalização das oportunidades de participação.
  8. Valorização do protagonismo social nas experiências participativas, com incorporação de boas práticas inovadoras acrescidas de ações complementares para garantia de sustentabilidade dos processos participativos.
  9. Distinção de escalas micro e macro nos processos participativos, admitindo-se as diferentes lógicas inerentes a elas, com maior ênfase na escala microterritorial, na qual os atores participantes estarão engajados em repertórios diversos de controle de políticas públicas que lhe dizem respeito, embora não necessariamente orientados de forma setorial.
  10. Foco no surgimento de novos instrumentos de deliberação, por exemplo: ausculta “informada” aos desejos e demandas dos cidadãos; interação construtiva, soluções inovadoras e criativas; técnicas de resolução de conflitos, além de outras.

Em suma, é preciso ampliar o sentido daquele “poder deliberativo” apenas formal que está na lei 8.142, para o que se faz necessária a extrapolação da moldura normativa vigente, com a criação de novos fóruns de debates, tais como comitês, conselhos de unidades, grupos de cidadãos, estratégias de mobilização massiva, novas formas de democracia direta, utilização intensiva de tecnologia de informação, mecanismos pontuais de consulta, arregimentação de interesses de grupos específicos. Paridade? Isso é meramente um arranjo para garantir decisões tomadas por voto, em disputas ferrenhas, não por consenso ou argumentação para convencimento amplo e duradouro. Assim, defendo a busca de arranjos participativos diversificados que ponham em destaque a magnitude e a variedade de múltiplos atores e um conjunto de problemas inéditos nos registros originais da participação social, tais como a pauta relativamente restrita das demandas por mais inclusão e autodeterminação.

Fiquem tranquilos. Não estou propondo cancelar a participação social que a Constituição assegura na Saúde. Mais do que isso, defendo seu aperfeiçoamento, através de modalidades de participação informada, qualificada e cidadã, ao invés desse “controle social” pretensioso, ilusório e burocrático.  

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Saibam mais:

– Conheça o artigo de Ricardo Abramovay:

– Sobre o artigo da revista Science:

– Posição da OCDE sobre o tema Escuta Qualificada de Cidadãos:

– Escuta Qualificada de Cidadãos: Relatório francês sobre o Tema do Clima:

– Escuta Qualificada de Cidadãos: Relatório inglês sobre o sobre o Tema do Clima:

– Escuta Qualificada de Cidadãos: EUA (tema: Ciência e Tecnologia):

– Texto anterior de minha autoria em que defendo ideias “diferentes” (off label, se quiserem…) sobre participação social em saúde no SUS:

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2 respostas para “Escuta cidadã qualificada versus “controle” social”

  1. Flavio, lendo teu texto desta semana reforço minha proposta como cidadã, primeiramente, e como médica: as soluções são coletivas; elas surgem da complementação de ideias, de vontades, de esforços e de sonhos. Me faz lembrar a musica: “Somos flecha e somos arco. Todos nós no mesmo barco. Não há nada pra temer. Ao meu lado há um amigo. Que é preciso proteger…”       Os idealistas, sonhadores, pessoas que fazem a diferença no mundo, são seres conscientes que integram realidades e necessidades de um coletivo. Sabem que sozinhas não responderão pela ânsia de uma humanidade mais harmônica, solidária e justa. “Sonho que se sonha só é só um sonho… sonho que se sonha junto é realidade”.                         As Leis são importantes para organizar dinamicamente uma proposta, mas elas também são objetos de mudanças da realidade e delas próprias, porque são também suscetiveis de transformação, como um trampolim para novos patamares. Que sejamos incansáveis e persistentes na vontade de sermos um instrumento de mudança e não de acomodação; que sigamos a inspiração de Dom Helder Câmara “Diante do colar, belo como um sonho, admirei, sobretudo, o fio que unia as pedras e se imolava, anônimo, para que todos fossem um…” Henriqueta Camarotti

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    1. Obrigado Henriqueta! Vc tem sido uma leitora atenta e generosa deste blog e isso me deixa muito feliz. Seus comentários reforçam e ampliam os meus pensamentos. Fico muito feliz com isso!

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