Terias conspiratórias na saúde não constituem assunto novo, assim como a difusão de mentiras de variadas naturezas. Com efeito, já há muito tempo há quem denuncie o perigo das vacinas como tramoia dos governos para matar os velhinhos e promover mudanças genéticas em crianças, além do risco de alguém, através delas, se transformar em jacaré, para não falar, no campo do puro fake, dos poderes milagrosos da casca do jequitibá na cura do câncer e na habilidade clínica ou cirúrgica dos médicos como requisito bastante para exercerem o cargo de Ministro da Saúde, bem como, na política em geral, a crença em que um militar relapso e incompetente possa ser um bom Presidente da República. Coisas assim… Mas apesar da longevidade de tal tendência, humana, demasiadamente humana, como diria Nietszche, pesquisas recentes indicam que a crença em tais alegorias está na verdade em declínio na população, embora pareçam cada vez mais visíveis e presentes no imaginário coletivo e também no debate político, como se viu aqui no Brasil no nefasto período bolsonarista, com repercussões até hoje e mesmo em outros cantos do Planeta, como o recente debate entre Trump e Biden bem demonstrou. Está aí um dos aspectos do revival do problema, particularmente na última década, quando muitos líderes políticos em países democráticos se engajarem em tal retórica conspiracionista, sendo Trump o mais proeminente deles e seu êmulo tupiniquim apenas uma imitação barata. E como tal discurso atrai muita atenção, a aparência é de que existam cada vez mais teorias da conspiração entre o céu e a terra, com mais pessoas acreditando nelas, mas isso pode ser enganoso, representando apenas uma retórica que ganha cobertura da mídia. O próprio Papa Francisco se preocupa com o assunto, pois segundo o jornalista Ariel Palacios, é dele a frase: “teorias da conspiração geram delírios porque liberam as pessoas de confrontar-se com a verdade”. Nada mais verdadeiro.
Trago aqui um artigo recente (ver indicação do mesmo no link abaixo) da Revista Questão de Ciência, de autoria do jornalista Carlos Orsi em que tal assunto é dissecado de forma exaustiva. Por ali se vê que em tais casos, sejam ou não totalmente fantasiosos – e mesmo em declínio – a crença das pessoas referente aos mesmos tem impacto no mundo real.
Um bom conceito de teoria da conspiração é o de uma “uma crença que dois ou mais atores coordenaram ações em segredo para atingir um objetivo e que sua conspiração é de interesse público, mas não de conhecimento público” e que, além disso, (a) são ‘contrariantes’, no sentido de que elas contrariam os entendimentos publicamente aceitáveis de eventos; (b) descrevem atos malevolentes ou proibidos; (c) atribuem a ação a indivíduos ou grupos no lugar de forças impessoais ou sistêmicas; (d) são epistemologicamente arriscadas, no sentido de que apesar de não serem necessariamente falsas ou implausíveis, tomadas coletivamente são mais propensas à falsidade do que outros tipos de crenças; e (e) são construtos sociais que não são meramente adotados por indivíduos, mas compartilhados com objetivos sociais em mente, com o potencial não só de representar e interpretar a realidade, mas de fabricar novas realidades sociais.
Elas se apresentam apenas como meras “ideias”, mas se parecem cada vez mais onipresentes, talvez porque o público está dando mais atenção a elas, pois provavelmente as tais teorias já estavam em diversos lugares em décadas passadas, só que não se prestava muita atenção nelas, tendo isso mudado, em parte, pela alta cobertura da mídia sobre tal assunto.
Diante disso, também vem crescendo o interesse de acadêmicos em torno das teorias da conspiração, suas origens e efeitos, os processos que levam as pessoas a acreditar e agir segundo seus preceitos, e como combater sua disseminação e impactos, especialmente os negativos, na sociedade. Existem perspectivas acadêmicas distintas: (1) com foco na exposição que provocam tais teorias, como ponto de partida para a crença e consequentes comportamentos prejudiciais, tendo como desdobramento propostas de maior regulação de redes, ou propondo estratégias como a o que denominam de “inoculação” ou abordagem com foco na Psicologia juntamente com a educação midiática, visando ajudar o público a identificar e resistir ao apelo da desinformação; (2) outros sugerem um modelo sob o qual são as predisposições e características psicológicas, sociais e políticas dos originadas dos próprios indivíduos que moldam suas reações e crenças, exigindo assim abordagens mais amplas para sua compreensão, e sem dúvida colocando maiores dificuldades a seu efetivo combate.
De toda forma, a própria definição do que vem a ser uma teoria da conspiração já traz complicações para o entendimento do fenômeno. Aliás, estudos sistemáticos de tal assunto são relativamente recentes, com maior intensidade nas duas últimas décadas, envolvendo campos diversificados, como as Ciências Sociais, Política. Teoria da Informação, Psicologia, História e Comunicação. Assim, estudo recente sobre a (in)capacidade das pessoas em identificar suas crenças como pertencentes a tal campo aponta características essenciais das mesmas, ou seja, de que há pessoas ou organizações poderosas estão trabalhando em conjunto para atingir um objetivo, às custas de outras pessoas ou da sociedade, enquanto tentam manter suas ações e intenções em segredo. Parece ser também uma boa definição.
Mas haveria como (ou por quê) corrigir tal fenômeno?
Para começar, se o terraplanismo é hoje motivo de piada, o mesmo não pode ser dito de outras crenças conspiracionistas. Isso poderia até parecer uma ideia “inofensiva”, mas ao mesmo tempo pode ser porta de entrada a bolhas informacionais onde circulam teorias mais extremistas e radicais, associadas a comportamentos, escolhas e atitudes prejudiciais para o indivíduo e a sociedade. Assim, muitos estudiosos do assunto defendem objetivamente ações intensivas de combate, mitigação ou prevenção à desinformação. Nisso entram as estratégias de desmascaramento (em inglês debunking) das informações mentirosas enganosas, via checagem de fatos e, alternativamente o prebunking, ou seja, educação midiática e outras formas de “inoculação” (abordagem) via Psicologia, visando a capacitação do público para identificar a desinformação antes mesmo de ela ser exposta à luz, estratégia que tem ganhado força, associada a propostas de regulação das redes sociais.
O impacto na saúde é inquestionável. No Brasil, particularmente as coberturas vacinais despencaram após o período bolsonarista, da mesma forma que as informações sobre o aquecimento global ou os cuidados diante da emergência de pandemias, como a de COVID-19, fazendo com que seus denunciantes sejam tratados muitas vezes como “árbitros não eleitos da verdade” e acusados de provocar “pânico moral”, quando não de representantes do “comunismo”.
No mundo da política, que acaba também por impactar a área da saúde, as distorções são brutais. Assim, por exemplo, nos EUA uma pesquisa mostrou que quase 40% dos americanos em geral – e cerca de 70% dos republicanos – ainda negam a legitimidade das eleições presidenciais de 2020. Isso tem como pano de fundo a ascensão global de políticos populistas, associada à crescente desconfiança de parte do público na palavra de especialistas e cientistas em geral, nivelando “por baixo” os pesquisadores da desinformação, os cientistas climáticos e os especialistas em saúde pública.
Em tal contexto, a palavra verdade passou a ser usada, à maneira orweliana, com sinal oposto. Mas cabe lembrar que mesmo não constituindo um conceito absoluto com algumas de suas alegações não sendo prontamente estabelecidas como verdadeiras ou falsas, certos fatos e ocorrências são inquestionáveis dos pontos de vista científico e histórico. Afinal, o modelo heliocêntrico, a esfericidade do Planeta, a cosmologia baseada no big-bang e a teoria da evolução darwiniana permanecem factuais, por mais que terraplanistas ou criacionistas tentem negar.
É evidente que o conhecimento científico não pode ser visto como absoluto, o que porém não implica que as descobertas científicas são arbitrárias ou não confiáveis, ou de que não existem padrões válidos para corroborar alegações científicas. E mais, que existem certos padrões similares em domínios fora da ciência, nos quais o conhecimento também se acumula através de processos como jornalismo investigativo, procedimentos judiciais, investigações empresariais ou inquéritos públicos formais.
O problema é que em tal mundo da desinformação, já se sabe que alegações falsas ou enganosas são mais críveis quanto mais são repetidas, como já dizia o ministro da (des)informação do Terceiro Reich. Assim, são coisas que podem ter impactos nas crenças, atitudes e comportamentos, tanto direta quanto indiretamente, ao moldarem narrativas ideológicas, e que correções e checagens de fatos são apenas parcialmente efetivas, mesmo quando as pessoas não têm motivações para se agarrarem a uma peça de informação falsa.
Em suma, a abordagem que alguns especialistas defendem refere-se à adoção de ações preventivas, ou seja, que se antecipem à disseminação da desinformação, fundadas na ciência da psicologia, podendo ser baseada em fatos ou na lógica. Exemplo disso é um estudo feito sobre o “efeito conspiração” do discurso antivacina realizado em 2017, em que se observou que a exposição prévia a alertas anticonspiracionistas sobre as vacinas anulou a influência que as teorias da conspiração, porém sendo efetivos apenas se tais argumentos antivacina fossem apresentados de forma prévia, concluindo-se que para ideias e atitudes já estabelecidas as teorias da conspiração podem ser difíceis de corrigir.
A argumentação pode também ser baseada em lógica, a ser usada quando não há uma desinformação específica a ser rebatida ou desmascarada ou incluir exercícios que instruem o público a identificar quando os argumentos têm falhas lógicas – como falsos dilemas, falsas equivalência ou incoerências internas – ou usam táticas enganosas – como apelos à emoção e raciocínios motivados por ideias conspiracionistas.
O artigo em foco destaca ainda a necessidade de se associarem a certas contramedidas, sempre compatíveis com as normas democráticas, e que incluem alertas que busquem focar a atenção dos usuários na veracidade da informação para “reduzir o compartilhamento de material enganoso online, e a implementação de elementos de fricção que brevemente atrapalhem uma pessoa quando ela está interagindo com uma informação online para evitar que ela compartilhe conteúdo sem ler”. Caberia ainda a difusão de normas sociais de uma certa “etiqueta” a respeito de não se fazer alegações sem evidências, bem como intervenções educacionais, como ensinar técnicas de verificação de informações e fontes.
Nem todos especialistas, porém, estão de total acordo com a eficácia de tais intervenções. Entre os que divergem, pondera-se que educação midiática e ensino de pensamento crítico são certamente iniciativas boas e louváveis, mas que pouco vão afetar pessoas cujas identidades e visões de mundo estão investidas em desinformação e teorias da conspiração, constituindo muitas vezes um exercício fútil. Enfim, ninguém faria ou deixaria de fazer uma coisa só porque algum iluminado defende isso, já que as pessoas “reais” continuarão a crer no que quiserem. No limite, a expressão ‘teoria da conspiração’ poderia ser trocada por coisas como ‘Deus’, ‘anjos’, ‘demônios’, ‘fantasmas’, o ‘monstro do Lago Ness. Ou quem sabe o Saci Pererê. Assim é que alguns acreditam que não caberia qualquer tipo de regulação das redes sociais e outras plataformas de comunicação digital, pois isso significaria entregar nas mãos de políticos que já estão fazendo uso de desinformação e teorias da conspiração por razões ideológicas e em benefício próprio o controle sobre estes meios e a decisão sobre o que constituiria ou não a “verdade”. Como disse alguém: “por que dar aos políticos o poder de policiar nosso discurso quando muitas vezes são eles que estão espalhando estas besteiras?”
De acordo com tal visão da questão, a única forma de efetivamente lutar contra as teorias da conspiração seria a criação de alguma máquina ou artefato capaz de ler e alterar o pensamento das pessoas. Mas aí, mas uma vez, ficaria a questão de quem controlaria esta máquina e decidiria como e contra o quê ela deveria ser usada, o que representa uma boa justificativa para (mais) uma teoria da conspiração…
***
Acesse o abaixo o artigo que originou este post:
– As teorias sobre as teorias da conspiração | Questão de Ciência (revistaquestaodeciencia.com.br)
Outras matérias sobre o mesmo tema publicadas neste blog:
– Saúde, fake-news & fake-people – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO! (saudenodf.com.br)
– Boi voador, pode? – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO! (saudenodf.com.br)

